terça-feira, 12 de novembro de 2013

“Cura gay” e criminalização da prostituição, mas e Hannah Arendt com isso?

Eichmann fora enforcado em Israel, porém a racionalidade que lhe movia não. Assombrosamente a realidade confirma isso. Ele ainda vive em nós. Não nos faltam argumentos para julgar, legislar e até condenar o diferente. Isso fica muito evidente quando interpretamos as intenções dos dois deputados à luz do pensamento de Hannah Arendt.


Por Álcio Crisóstomo Magalhães

Dessas coisas que parecem coincidência, nos deixam sem entender, e muito nos fazem pensar. Eis que lendo as manchetes do jornal, na fila do caixa da panificadora identifico três notas estranhas. Na “sessão de cultura” um filme incomum (considerando esses tempos de quase totalitarismo da indústria cultural), na parte de política dois deputados federais. Sobre o filme, muito sinteticamente  chamava-se a atenção para a estreia de Hannah Arendt. A história de uma filósofa que ao cobrir jornalisticamente o julgamento do homem responsável pela solução final nazista descobre uma preciosidade: o indivíduo mais comum possível, aquele que faz o que tem de ser feito, isto é, cuida da família, vai ao supermercado, leva o cão para passear, apara a grama, presta culto à sua doutrina, desempenha com esmero sua tarefa burocrática diária, é o mesmo que em nome da lei não se recusa nem mesmo a tirar a vida, ou melhor, vidas, não uma, duas ou três, mas milhões. Arendt descobrira que a Era moderna inaugurou  aquilo que ela mesma definira por banalidade do mal. No tocante aos parlamentares as manchetes destacavam dois projetos polêmicos. Um em defesa da aprovação de um projeto de “cura gay” e o outro propondo a criminalização da prostituição, ou do direito da mulher fazer o que bem desejar do seu próprio corpo.


Para não cometer nenhuma injustiça ao dono da padaria na qual me encontrava, antes de colocar-me a pensar sobre as três breves leituras que houvera feito, fui de pronto verificar a data do periódico e para minha surpresa o jornal não estava vencido. Não era do século passado. Eram notícias de um belo dia do século XXI. Estranho, muito estranho! Entre eu e o meu pãozinho sagrado das manhãs de domingo Hannah Arendt, e uma história de banalidade do mal, e dois deputados enfurecidos com os homossexuais e com as garotas de programa. Mas o que teria haver uma coisa com a outra, se é que teria? Que confusão era aquela? Teriam alguma relação aquelas três manchetes? Diante da falta de respostas imediatas e da estranheza que me causara aqueles três assuntos, não tive outra alternativa se não sacrificar o meu inocente café e fazer uma leitura mais detida sobre tudo novamente.


Sobre o filme de Hannah Arendt logo descobri que se tratava de uma adaptação para o cinema de um livro da filósofa alemã, escrito a partir daquilo que ela havia interpretado do julgamento de Adolf Eichmann, o homem responsável pela máquina de morte hitlerista, a câmara de gás. Escalada a atuar como correspondente de um importante jornal norte-americano, Arendt teve a oportunidade de acompanhar em Israel o polêmico tribunal do júri de um expressivo criminoso nazista e ao fazê-lo percebeu que uma vez elaborados, os mecanismos de produção da barbárie continuavam vivos entre nós. A filósofa percebera o modo como a Era moderna se notabilizara por criar um procedimento racional que legitima até mesmo o crime contra a vida. Isto é, como o Estado burocrático e positivo “justifica” mesmo o homicídio. Tudo se torna aceitável quando orientado por metas superiores (nobres) e nada pode impedir o fluxo do organograma. Arendt assim, desenvolve a categoria banalidade do mal para expressar sua elaboração.

 Eichcmann, conforme mostra Hannah Arendt, não era um “ser de mais ou de menos”, mas sim um “ser comum”, que diante daquilo que considerava seu dever não titubeava. Assim dera cabo à estratégia “mirabolante” criada para promover a gestão do processo de universalização da raça ariana, ou seja, dizimar sem muito custo e de forma extremamente racional e científica (objetiva e precisa) os diferentes ou impuros, nos caso os judeus.

Feita uma leitura um pouco mais atenta de alguns outros detalhes do filme, seria necessário agora ver com pouco mais vagar a história dos dois deputados. Sem adentrar muito na polêmica, logo percebi que não se tinha muito mais a acrescentar. Por mais descabido que pudesse parecer era aquilo mesmo. O primeiro entendia que qualquer opção sexual diferente da sua deveria ser interpretada como doença, desvio de conduta e, como tal deveria ser tratado. Voluntariamente ou não era preciso ser salvo, ou melhor, curado. Quanto ao segundo, a compreensão era de que qualquer mulher que se apresentasse em situação que se caracterize como prostituição deveria ser submetida aos rigores da lei. Em ambos os casos uma coincidência, além de líderes religiosos os dois eram representantes de milhares de vontades comuns. Suas falas deixavam muito claro isso, não se esquivavam em destacar que legislavam com a legitimidade de quem fora conduzido ao Congresso Nacional brasileiro por um sem número de eleitores. E não é que eles tinham razão mesmo? De acordo com os princípios da democracia de forma (representativa) ambos eram portadores de uma vontade coletiva.

Feito esse movimento fez-se a luz. Não se tratava apenas de coincidência,  inculcação da minha parte ou leitura apressada. Aquelas três manchetes intrigantes dialogavam entre si. Não foi difícil descobrir não só que história era aquela de banalidade do mal ou de mal radical ao qual Hannah Arendt se referira, como também não foi fácil concordar que ela tinha razão. A maldade não estava em Israel, na Alemanha, nos Estados Unidos, em outro lugar, ou em homens sui generes, “muito especiais”. Ela estava ali estampada em uma realidade que mais próxima impossível. Bastava apenas, para perceber isso, aceitar o duro desafio que proposto por Arendt, qual seja, não se recusar ou omitir-se de pensar. Curiosamente não era a esquerda que fazia aquela revelação brilhante, era o pensamento liberal vivo que proclamava estarmos entregues à Era no qual o mal se tornara algo tão banal, ou da esfera do quotidiano, que nem sequer o percebíamos. Uma judia salva por muito pouco do extermínio nazista e que proclamara os Estados Unidos da América como o verdadeiro paraíso, é quem nos chamava a atenção.

Eichmann fora enforcado em Israel, porém a racionalidade que lhe movia não. Assombrosamente a realidade confirma isso. Ele ainda vive em nós. Não nos faltam argumentos para julgar, legislar e até condenar o diferente. Isso fica muito evidente quando interpretamos as intenções dos dois deputados à luz do pensamento de Hannah Arendt. E o pior de tudo, não se trata aqui de juízo de valor acerca de um ou de outro. Até por isso não faz diferença quem sejam e a qual partido pertençam. O que importa nesse caso é que trata-se de um pensamento vivo que tem respaldo entre muitos de nós. Nenhum dos dois fala em nome próprio. Deixam muito claro isso. Recusam os diferentes, conforme bem apontam, em nome de uma multidão que os elegeu. De uma vontade coletiva, que por sua vez se ancora nos valores cristãos, na família, no amor, na Justiça para condenar quem não reflete sua imagem e semelhança.

Parece que é isso mesmo que descobriu Arendt já nos anos 1960, o mal não está em um ser do outro mundo, no indivíduo dotado do gene da crueldade. Ele habita em latência o moderno homem comum, cumpridor de suas obrigações. O ser que de forma alguma atenta intencionalmente contra “a” ou “b”, no caso gays ou prostitutas, mas que apenas cumpre seu dever, seja de líder religioso, seja de guardião da família e da honra, seja de arauto do desenvolvimento, do progresso e da raça pura. Tudo é feito em nome do sistema, do respeito à hierarquia, dos cronogramas, da burocracia impessoal e “justa”. A história recente é rica em elementos que comprovam isso. Sempre nos apoiamos em “argumentos” para renegar negros, índios, nordestinos, estrangeiros, pobres e agora os homossexuais e as prostitutas. Se Hannah Arendt estiver mesmo certa em sua tese de que o passado ilumina o presente e, por conseguinte, projeta o futuro, cabe nos perguntarmos hoje: quem serão os próximos doentes e “foras da lei” do próximo projeto de salvação?
Fonte: DIÁRIO DA MANHÃ

 (Álcio Crisóstomo Magalhães, professor da Universidade Estadual de Goiás e da Rede básica de educação em Goiânia; doutorando em Educação pela Universidade Federal de Goiás)

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