Eichmann fora enforcado em Israel, porém a racionalidade que
lhe movia não. Assombrosamente a realidade confirma isso. Ele ainda vive em
nós. Não nos faltam argumentos para julgar, legislar e até condenar o
diferente. Isso fica muito evidente quando interpretamos as intenções dos dois
deputados à luz do pensamento de Hannah Arendt.
Por Álcio Crisóstomo Magalhães
Dessas coisas que parecem coincidência, nos deixam sem
entender, e muito nos fazem pensar. Eis que lendo as manchetes do jornal, na
fila do caixa da panificadora identifico três notas estranhas. Na “sessão de
cultura” um filme incomum (considerando esses tempos de quase totalitarismo da
indústria cultural), na parte de política dois deputados federais. Sobre o
filme, muito sinteticamente chamava-se a
atenção para a estreia de Hannah Arendt. A história de uma filósofa que ao
cobrir jornalisticamente o julgamento do homem responsável pela solução final
nazista descobre uma preciosidade: o indivíduo mais comum possível, aquele que
faz o que tem de ser feito, isto é, cuida da família, vai ao supermercado, leva
o cão para passear, apara a grama, presta culto à sua doutrina, desempenha com
esmero sua tarefa burocrática diária, é o mesmo que em nome da lei não se
recusa nem mesmo a tirar a vida, ou melhor, vidas, não uma, duas ou três, mas
milhões. Arendt descobrira que a Era moderna inaugurou aquilo que ela mesma definira por banalidade
do mal. No tocante aos parlamentares as manchetes destacavam dois projetos
polêmicos. Um em defesa da aprovação de um projeto de “cura gay” e o outro
propondo a criminalização da prostituição, ou do direito da mulher fazer o que bem
desejar do seu próprio corpo.
Para não cometer nenhuma injustiça ao dono da padaria na
qual me encontrava, antes de colocar-me a pensar sobre as três breves leituras
que houvera feito, fui de pronto verificar a data do periódico e para minha
surpresa o jornal não estava vencido. Não era do século passado. Eram notícias
de um belo dia do século XXI. Estranho, muito estranho! Entre eu e o meu
pãozinho sagrado das manhãs de domingo Hannah Arendt, e uma história de
banalidade do mal, e dois deputados enfurecidos com os homossexuais e com as
garotas de programa. Mas o que teria haver uma coisa com a outra, se é que
teria? Que confusão era aquela? Teriam alguma relação aquelas três manchetes?
Diante da falta de respostas imediatas e da estranheza que me causara aqueles
três assuntos, não tive outra alternativa se não sacrificar o meu inocente café
e fazer uma leitura mais detida sobre tudo novamente.
Sobre o filme de Hannah Arendt logo descobri que se tratava
de uma adaptação para o cinema de um livro da filósofa alemã, escrito a partir
daquilo que ela havia interpretado do julgamento de Adolf Eichmann, o homem
responsável pela máquina de morte hitlerista, a câmara de gás. Escalada a atuar
como correspondente de um importante jornal norte-americano, Arendt teve a
oportunidade de acompanhar em Israel o polêmico tribunal do júri de um
expressivo criminoso nazista e ao fazê-lo percebeu que uma vez elaborados, os
mecanismos de produção da barbárie continuavam vivos entre nós. A filósofa
percebera o modo como a Era moderna se notabilizara por criar um procedimento
racional que legitima até mesmo o crime contra a vida. Isto é, como o Estado
burocrático e positivo “justifica” mesmo o homicídio. Tudo se torna aceitável
quando orientado por metas superiores (nobres) e nada pode impedir o fluxo do
organograma. Arendt assim, desenvolve a categoria banalidade do mal para
expressar sua elaboração.
Feita uma leitura um pouco mais atenta de alguns outros
detalhes do filme, seria necessário agora ver com pouco mais vagar a história
dos dois deputados. Sem adentrar muito na polêmica, logo percebi que não se
tinha muito mais a acrescentar. Por mais descabido que pudesse parecer era
aquilo mesmo. O primeiro entendia que qualquer opção sexual diferente da sua
deveria ser interpretada como doença, desvio de conduta e, como tal deveria ser
tratado. Voluntariamente ou não era preciso ser salvo, ou melhor, curado.
Quanto ao segundo, a compreensão era de que qualquer mulher que se apresentasse
em situação que se caracterize como prostituição deveria ser submetida aos
rigores da lei. Em ambos os casos uma coincidência, além de líderes religiosos
os dois eram representantes de milhares de vontades comuns. Suas falas deixavam
muito claro isso, não se esquivavam em destacar que legislavam com a
legitimidade de quem fora conduzido ao Congresso Nacional brasileiro por um sem
número de eleitores. E não é que eles tinham razão mesmo? De acordo com os
princípios da democracia de forma (representativa) ambos eram portadores de uma
vontade coletiva.
Feito esse movimento fez-se a luz. Não se tratava apenas de
coincidência, inculcação da minha parte
ou leitura apressada. Aquelas três manchetes intrigantes dialogavam entre si.
Não foi difícil descobrir não só que história era aquela de banalidade do mal
ou de mal radical ao qual Hannah Arendt se referira, como também não foi fácil
concordar que ela tinha razão. A maldade não estava em Israel, na Alemanha, nos
Estados Unidos, em outro lugar, ou em homens sui generes, “muito especiais”.
Ela estava ali estampada em uma realidade que mais próxima impossível. Bastava
apenas, para perceber isso, aceitar o duro desafio que proposto por Arendt,
qual seja, não se recusar ou omitir-se de pensar. Curiosamente não era a
esquerda que fazia aquela revelação brilhante, era o pensamento liberal vivo
que proclamava estarmos entregues à Era no qual o mal se tornara algo tão
banal, ou da esfera do quotidiano, que nem sequer o percebíamos. Uma judia
salva por muito pouco do extermínio nazista e que proclamara os Estados Unidos
da América como o verdadeiro paraíso, é quem nos chamava a atenção.
Eichmann fora enforcado em Israel, porém a racionalidade que
lhe movia não. Assombrosamente a realidade confirma isso. Ele ainda vive em
nós. Não nos faltam argumentos para julgar, legislar e até condenar o
diferente. Isso fica muito evidente quando interpretamos as intenções dos dois
deputados à luz do pensamento de Hannah Arendt. E o pior de tudo, não se trata
aqui de juízo de valor acerca de um ou de outro. Até por isso não faz diferença
quem sejam e a qual partido pertençam. O que importa nesse caso é que trata-se
de um pensamento vivo que tem respaldo entre muitos de nós. Nenhum dos dois
fala em nome próprio. Deixam muito claro isso. Recusam os diferentes, conforme
bem apontam, em nome de uma multidão que os elegeu. De uma vontade coletiva,
que por sua vez se ancora nos valores cristãos, na família, no amor, na Justiça
para condenar quem não reflete sua imagem e semelhança.
Parece que é isso mesmo que descobriu Arendt já nos anos
1960, o mal não está em um ser do outro mundo, no indivíduo dotado do gene da
crueldade. Ele habita em latência o moderno homem comum, cumpridor de suas
obrigações. O ser que de forma alguma atenta intencionalmente contra “a” ou
“b”, no caso gays ou prostitutas, mas que apenas cumpre seu dever, seja de
líder religioso, seja de guardião da família e da honra, seja de arauto do
desenvolvimento, do progresso e da raça pura. Tudo é feito em nome do sistema,
do respeito à hierarquia, dos cronogramas, da burocracia impessoal e “justa”. A
história recente é rica em elementos que comprovam isso. Sempre nos apoiamos em
“argumentos” para renegar negros, índios, nordestinos, estrangeiros, pobres e
agora os homossexuais e as prostitutas. Se Hannah Arendt estiver mesmo certa em
sua tese de que o passado ilumina o presente e, por conseguinte, projeta o
futuro, cabe nos perguntarmos hoje: quem serão os próximos doentes e “foras da
lei” do próximo projeto de salvação?
Fonte: DIÁRIO DA MANHÃ
(Álcio Crisóstomo
Magalhães, professor da Universidade Estadual de Goiás e da Rede básica de
educação em Goiânia; doutorando em Educação pela Universidade Federal de Goiás)
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