A frase utilizada como introdução a este breve estudo
amolda-se com perfeição à infeliz realidade, cada dia mais comum na sociedade
contemporânea: a exposição de vídeos íntimos nas mídias eletrônicas e nas redes
sociais.
Por Vitor Guglinski
Notícia veiculada no dia 23 de outubro de 2013 revela o caso
de uma jovem de 19 anos, moradora de Goiânia, a qual passou cerca de dois meses
reclusa, em razão da divulgação e disseminação viral de um vídeo em que ela e o
ex-namorado mantinham relações sexuais.
A faceta mais chocante desse fato advém da divulgação do
nome completo, do endereço do trabalho e do número do celular da vítima.
Segundo a reportagem, ao menos 500 mil pessoas já acessaram o vídeo. Como
resultado da indevida exposição, a jovem ofendida parou de estudar, de
trabalhar, não sai mais de casa e nem atende ao telefone.
Ainda conforme noticiado, o Deputado João Arruda (PMDB/PR)
encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta cujo conteúdo prevê que a Lei
Maria da Penha (Lei 11.340/06) seja estendida a crimes dessa natureza. Segundo
o Deputado, "qualquer divulgação de imagens, informações, dados pessoais,
vídeos ou áudios obtidos no âmbito de relações domésticas, sem o expresso
consentimento da mulher, passe a ser entendido como violação da
intimidade".
De plano, penso que não deve passar em branco o registro de
que a tecnologia, fruto do saber humano, da investigação voltada à evolução e
ao bem viver, tem, em verdade, se tornado uma nova "arma" para a
prática de todo o tipo de atrocidade contra nossos semelhantes. Em seu tempo,
Aldous Huxley concluíra que "as palavras nos permitiram elevar-nos acima
dos animais, mas também é pelas palavras que não raro descemos ao nível de
seres demoníacos". Transportando o pensamento do festejado escritor para
os dias atuais, junto às palavras vem a tecnologia permitir que os
inescrupulosos desçam a tais níveis demoníacos.
Pois bem, em suas disposições preliminares, a Lei Maria da
Penha dispõe em seu artigo 2º:
"Artigo 2º. Toda mulher, independentemente de classe,
raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e
religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe
asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar
sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e
social."
Mesmo a leitura mais rasa do dispositivo permite concluir
que a divulgação de vídeos íntimos na internet viola os direitos mais sagrados
da mulher, em especial a sua saúde mental. O caso em comento deixa isso
bastante claro, ao revelar que a jovem que teve sua intimidade devassada pelo
ex-namorado, de forma tão hedionda, retraiu-se, permanecendo em casa, sem
estudar, sem trabalhar, sem comunicar por telefone, enfim, pode-se dizer que a
vitalidade dessa jovem foi brutalmente subtraída. Assim, claro está que sua
saúde mental foi violada.
Adiante, no artigo 4º, o mesmo diploma legal estatui que:
"Artigo 4º. Na interpretação desta Lei, serão
considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as
condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e
familiar."
Na ementa da lei, está claro que o seu fim social é
"coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher". Nesse
sentido, a norma deve ser interpretada de modo a garantir à mulher a mais ampla
proteção contra os atos de violência contra ela praticados. Assevera-se que,
como a própria lei deixa claro, a violência de que trata não se circunscreve à
violência física, ao ato de sofrer espancamentos ou de ser privada do direito
de ir e vir. Em muitos casos, a violência psicológica é tão devastadora quando
a mácula física em si. A violência moral quase sempre deixa marcas indeléveis
no ser humano. Tanto é verdade que, hodiernamente, ganha força em nossos
tribunais a tese do "direito ao esquecimento", tão marcantes que são
as recordações dolorosas que nos acompanham ao longo da vida.
Sobre o sofrimento psicológico advindo da violência
praticada contra a mulher, o dispositivo subsequente o prevê expressamente,
sendo que, no inciso III, estende a aplicação da lei a "qualquer relação
íntima de afeto", havendo ou não coabitação. Eis o teor das normas (grifos
meus):
"Artigo 5º. Para os efeitos desta Lei, configura
violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial:
(...)
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o
agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação."
Extrai-se, ainda, do conteúdo normativo em comento, detalhe
bastante relevante: não é necessário que o agressor conviva coma vítima; é
suficiente que o agente tenha convivido com a ofendida, como ocorreu no
presente caso, em que o vídeo íntimo foi supostamente divulgado pelo
ex-namorado da jovem, aparentemente em razão de não ter aceitado o fim do
relacionamento. Aliás, é muito comum que atos dessa natureza, isto é, a
exposição da intimidade do casal após um rompimento não desejado por parte do homem,
resultem na exposição pública da mulher, a qual, culturalmente, em razão de um
deletério e odioso machismo ainda enraizado em muitos "homens", em
situações como esta ainda é enxergada de forma preconceituosa, lamentavelmente
recebendo a pecha de "galinha", "puta",
"piranha", "vagabunda", etc.
Ainda com relação à violência psicológica, a Lei Maria da
Penha não se limitou apenas a declarar que a ofensa psíquica configura
violência doméstica e familiar; foi além, definindo no artigo 7º, II, o que é a
violência psicológica, estando os dispositivos assim redigidos:
"Artigo 7º. São formas de violência doméstica e
familiar contra a mulher, entre outras:
(...)
II – a violência psicológica, entendida como qualquer
conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo
à saúde psicológica e à autodeterminação".
Pois bem, vejamos a situação da jovem citada na reportagem à
luz da norma acima transcrita:
1. A vítima deixou de sair de casa após o ocorrido: isso
evidencia constrangimento, humilhação, isolamento, ridicularização e limitação
do direito de ir e vir;
2. A vítima parou de estudar: nesse caso, resta clara a
perturbação do pleno desenvolvimento, já que a educação é um direito
fundamental, inscrito na Constituição da República como um direito social
(Artigo 6º da CRFB/1988);
3. A vítima parou de atender ao telefone: isso implica na
limitação de suas ações, já que a liberdade de falar ao telefone restou
suprimida, certamente por receio de ser ainda mais humilhada por pessoas que,
como o autor da ofensa, seja ele quem for, são inescrupulosas;
4. A vítima se declarou humilhada: consoante trecho da
entrevista, a garota revelou que "Moralmente e virtualmente, o que eu
consegui ler e o que eu consegui receber é humilhante".
No campo do direito material, não restam dúvidas quanto à
possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha à violência praticada pelo
meio virtual. Isso fica bem claro quando se lê no inciso II do artigo 7º da
lei, que estará caracterizada a violência psicológica quando a ofensa for
praticada mediante qualquer conduta causadora dos danos descritos na referida
regra. Ora, se qualquer conduta é apta a deflagrar a violência, dentre todas as
possibilidades nelas está compreendida a exposição não autorizada de vídeos
íntimos.
Prosseguindo, passa-se a uma breve análise das medidas de
urgência a serem adotadas em casos tais, com vistas a fazer cessar ou ao menos
diminuir os efeitos do ato danoso.
Sendo o caso levado ao conhecimento do juiz, prevê o artigo
22, e seu §1º, da lei em comento:
"Artigo 22. Constatada a prática de violência doméstica
e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de
imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas
protetivas de urgência, entre outras:
(...)
§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a
aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da
ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada
ao Ministério Público."
Pois bem, o leitor que se remeter ao rol de medidas protetivas
inscritas nos incisos do artigo em referência verificará que eles não preveem
solução específica para os casos em que a violência é praticada com a
utilização de meios eletrônicos.
Nada obstante, o § 1º, acima transcrito deixa claro que o
juiz poderá lançar mão de outros expedientes previstos na legislação em vigor
(grifei). O destaque retro serve para demonstrar que o juiz, valendo-se do
chamado "poder geral de cautela", está autorizado a investigar em
outras fontes normativas a existência de medidas aptas a garantir a segurança
da ofendida, devendo-se observar que, nesse caso, o vocábulo segurança deve ser
interpretado de forma ampla, pois, tratando-se de violência psicológica,
praticada por meio virtual, fica claro que o isolamento e o direito de ir e vir
da vítima podem ser entendidos como uma insegurança psíquica resultante da
ofensa.
Sendo assim, o juiz pode, por exemplo, determinar, de
imediato, que o administrador da página responsável por hospedar o conteúdo não
autorizado (foto, vídeo, etc.) o retire do ar, eis que sua divulgação também
configura ilícito civil, cuja responsabilização é independente da penal. Nesse
caso, não há óbice para que, observando o fim social da Lei Maria da Penha, o
juiz se valha, por exemplo, de soluções previstas na lei civil, já que o
fragmento "legislação vigente" abrange todo o arcabouço legislativo.
Como exemplo, cite-se o artigo 21 do CC/2002, in verbis:
"Artigo 21. A vida privada da pessoa natural é
inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências
necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma."
Por todo o exposto, não restam dúvidas de que a Lei Maria da
Penha é aplicável aos casos de crimes virtuais. A exposição da intimidade
alheia, sem autorização, seja a que título for, jamais deve ser tolerada. Pior
ainda quando a exposição pública se dá com o especial fim de humilhar,
degradar, coisificar a mulher, alçando-a a um suposto patamar de criatura
indigna de respeito. Os fins sociais da Lei 11.340/06 autorizam ao Poder
Judiciário, seja por meio de suas próprias disposições, seja por meio de outros
diplomas legais em vigor, a rechaçar todo ato de violência contra a mulher. Ao
mesmo tempo em que há aqueles que se valem da velocidade e facilidades da
internet para a prática do mal, com o mesmo vigor, e na forma da lei, deve o
Estado garantir à mulher existência digna.
O mal praticado é o mesmo; somente o meio é novo. Cabe ao
Estado, através das autoridades competentes, ministrar um novo remédio.
---
Fonte: Consultor Juridico
*Vitor Guglinski é advogado, pós-graduado com especialização
em Direito do Consumidor. Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de
Fora-MG. Colaborador permanente dos principais periódicos jurídicos do país.
Colunista da revista Direito e Atualidade (ES). Professor-conteudista do site
Atualidades do Direito.
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