Estou notando que grupos conservadores da Igreja Católica
estão tentando desvirtuar os gestos e as falas do papa Francisco. Ao invés de
aprofundarem as suas palavras e deixarem-se tocar profundamente por suas
atitudes, ficam despistando a mente das pessoas, "adocicando” as falas do
papa e "domesticando” seus gestos, com o propósito de não permitir que o
povo perceba a transformação que isso pode ocasionar na Igreja.
Por José Lisboa Moreira de Oliveira
Tal desvirtuamento é feito, sobretudo, pela mídia católica,
lamentavelmente ainda nas mãos de grupos ultraconservadores, salvo qualquer
honrosa exceção. Confesso que não costumo ser fã de personagens eclesiásticos,
nem mesmo do papa. Sempre desconfiei de todo culto à personalidade, mesmo
porque tal desconfiança é bíblica (Lc 17,10). Ainda estou avaliando as palavras
e os gestos do atual papa. Em minha opinião ele precisa, o quanto antes,
desarticular certos setores da Igreja e articular outros. Não serão suficientes
suas comedidas palavras e seus gestos. A burocracia eclesiástica, se não for
desmontada, irá engessando-o aos poucos e, em breve, ele será refém do sistema
religioso.
Há anos venho afirmando em meus escritos que no interior da
Igreja existem estruturas de pecado que a impedem de se converter e de seguir o
pobre carpinteiro de Nazaré. O grande teólogo José Comblin denunciou isso
várias vezes e por muitos anos. Tem-se falado muito em estruturas de pecado,
mas toda vez que se fala disso pensa-se somente na sociedade e no mundo fora da
Igreja. Porém, como mostram os fatos recentes, no interior da Igreja Católica
existem verdadeiras estruturas pecaminosas, organizadas com o propósito de
impedir qualquer renovação, qualquer mudança. São estruturas solidificadas pelo
carreirismo, pelo personalismo, pelo culto à personalidade, pelo amor ao dinheiro,
pela corrupção, pela mentira, pela insensibilidade, pelo silêncio obsequioso,
pela falta de atenção aos sinais dos tempos.
Entre os diversos exemplos de tentativa de desvirtuar os
gestos e as palavras do papa Francisco, quero mencionar um que aconteceu há
poucos dias atrás. O papa estava na Praça de São Pedro acolhendo as pessoas,
abraçando-as e falando com elas. Alguém lhe apresentou um jovem dizendo-lhe que
o rapaz estava "possesso”. O papa pousa a mão sobre a cabeça do jovem, faz
uma brevíssima oração. Poucas horas depois já circulava na internet a notícia
de que o pontífice havia praticado um exorcismo em plena Praça de São Pedro. O
papa, de repente, foi elevado à categoria de "carismático” e de
"espanta diabo”.
Considero um desvirtuamento do gesto do papa, antes de tudo
porque a prática de exorcismos na Igreja não é uma coisa banal, embora não
faltem exaltados que, vendo o diabo por toda parte, arroguem para si essa
prerrogativa. Há todo um ritual previsto pelas normas da Igreja para se
realizar exorcismos, começando pela verificação criteriosa de que se trata
realmente de uma possessão diabólica. Pessoas, escolhidas a dedo, são nomeadas
pelos bispos das dioceses e autorizadas a realizar os exorcismos. Segundo
depoimentos destes exorcistas oficiais, os casos de verdadeiras possessões são
raríssimos. O resto não passa de histeria ou de problemas de ordem psicológica,
hoje tão comuns num mundo de pessoas estressadas e cansadas.
Atribuir a um simples gesto do papa uma prática de exorcismo
é o mesmo que dizer que o papa está usando de leviandade, uma vez que em plena
praça ele fez uma coisa que a Igreja não permite fazer publicamente e de
qualquer jeito, a qualquer hora e em qualquer lugar. Fazer tal afirmação é
expor o papa ao ridículo e desvirtuar por completo um gesto tão simples e tão
significativo. O correto seria divulgar a forma carinhosa, simples, humana,
afetiva e profunda com a qual o bispo de Roma acolhe os fiéis, de modo
particular aqueles e aquelas que estão vivendo situações de sofrimento. Mas
espalhar o boato do exorcismo só serve para confundir as pessoas mais simples e
menos informadas.
Este fato nos oferece a oportunidade de denunciar certa
obsessão de alguns católicos pelo diabo. Escutando tais pessoas têm-se a
impressão de que para elas o demônio é mais forte do que o próprio Deus. Há uma
"demonização” de tudo. O diabo, para tais pessoas, parece ter tomado conta
de tudo, como se a salvação oferecida por Jesus não significasse nada. Convém
salientar que, de acordo com o Novo Testamento, o diabo já foi vencido por
Jesus (Ap 20,1-4), não tendo ele mais poder sobre os seres humanos. Ele foi
julgado e expulso do meio da humanidade pela força libertadora de Jesus (Jo
12,31-32). Em Cristo é o demônio que está condenado e não as pessoas. Pela entrega
da sua vida, a fim de permanecer fiel ao projeto do Pai, Jesus aboliu
definitivamente o pecado, ou seja, quebrou para sempre a potência do diabo (Hb
9,26-28). Cristo nos tornou "perfeitos para sempre” (Hb 10,14). Para o
autor da Carta aos Hebreus, se Cristo já nos perdoou, "não é mais preciso
fazer ofertas pelos pecados” (Hb 10,18). Isso quer dizer que o diabo já foi
aniquilado pelo poder do sangue de Cristo.
É preciso, pois, eliminar tal obsessão pelo diabo. Não ver
num simples problema psicológico, numa manifestação de estresse uma possessão
diabólica. Aliás, convém recordar que os estudos bíblicos mais sérios já
comprovaram que certas situações, tidas como "possessões diabólicas” no
tempo de Jesus, não passavam de simples doenças, como, por exemplo, a
epilepsia. Em alguns casos tratava-se apenas de estresse, de histeria ou de
manifestação de revolta diante de injustiças cometidas. No contexto da época,
no qual não se dispunha dos conhecimentos científicos de hoje, tudo isso era
visto como ação diabólica. Reconhecer isso não diminui a ação de Jesus, mesmo
porque o objetivo dele não era "espantar o diabo”, mas mostrar que o Reino
de Deus tinha chegado para a humanidade, de modo particular para os pobres (Lc
11,20). A intenção de Jesus era mostrar que com a sua chegada dava-se uma
inversão de sistemas. Ele estava implantando um mundo novo onde os excluídos e
excluídas passariam a ter vez e voz.
Infelizmente, quando pessoas das Igrejas ficam obcecadas
pelo diabo e começam a confundir problemas patológicos normais com possessões
diabólicas, terminam se esquecendo de que o demônio pode estar em outros
lugares e situações muito mais graves e sérias. Esquecem, por exemplo, da ação
diabólica que está por trás das injustiças que levam diariamente milhares de pessoas
à morte por fome e inanição. Esquecem a ação diabólica que se manifesta nos
sistemas políticos e religiosos discriminantes, preconceituosos, homofóbicos e
opressores. Esquecem-se dos demônios que levam políticos e lideranças
religiosas a praticarem a corrupção sob a capa da aparência da religiosidade. E
os exemplos podiam ser multiplicados.
Por fim, não devemos esquecer de que a afirmação da
existência do diabo é tardia na religiosidade judaica, da qual nós herdamos
essa crença. Os estudos bíblicos revelam que até o exílio da Babilônia a
teologia israelita não se manifestava sobre a existência de Satanás. Atribuía a
Deus tanto o bem como o mal. A incorporação da crença no diabo se dá depois do
contato dos hebreus, durante o cativeiro da Babilônia, com a religião persa.
"Na Pérsia havia uma demonologia bem desenvolvida. Segundo essa crença,
todos os malefícios, desde males psíquicos e mentais até as doenças, as
tentações e as desgraças, eram atribuídos a demônios. Acreditava-se, inclusive,
que havia um que era o chefe deste exército demoníaco. Este chefe era uma
figura suprema do mal como a divindade suprema persa, Ahura Mazda, era a figura
suprema do bem” (Ildo Bohn GASS, Uma introdução à Bíblia. Exílio babilônico e
dominação persa, São Paulo: Paulus, 2004, p. 172). A introdução da figura do
demônio na literatura bíblica se dá somente a partir do ano 332 a.C., bem
próximo da era cristã. Por isso é preciso muito cuidado, uma vez que quando
exageramos na crença no diabo ficamos muito mais próximos dos cultos persas do
que do cristianismo. E com o Diabo não se brinca!
Fonte: adital
Nenhum comentário:
Postar um comentário