sábado, 6 de julho de 2013

Com o Diabo não se brinca


Estou notando que grupos conservadores da Igreja Católica estão tentando desvirtuar os gestos e as falas do papa Francisco. Ao invés de aprofundarem as suas palavras e deixarem-se tocar profundamente por suas atitudes, ficam despistando a mente das pessoas, "adocicando” as falas do papa e "domesticando” seus gestos, com o propósito de não permitir que o povo perceba a transformação que isso pode ocasionar na Igreja.


Por José Lisboa Moreira de Oliveira

Tal desvirtuamento é feito, sobretudo, pela mídia católica, lamentavelmente ainda nas mãos de grupos ultraconservadores, salvo qualquer honrosa exceção. Confesso que não costumo ser fã de personagens eclesiásticos, nem mesmo do papa. Sempre desconfiei de todo culto à personalidade, mesmo porque tal desconfiança é bíblica (Lc 17,10). Ainda estou avaliando as palavras e os gestos do atual papa. Em minha opinião ele precisa, o quanto antes, desarticular certos setores da Igreja e articular outros. Não serão suficientes suas comedidas palavras e seus gestos. A burocracia eclesiástica, se não for desmontada, irá engessando-o aos poucos e, em breve, ele será refém do sistema religioso.

Há anos venho afirmando em meus escritos que no interior da Igreja existem estruturas de pecado que a impedem de se converter e de seguir o pobre carpinteiro de Nazaré. O grande teólogo José Comblin denunciou isso várias vezes e por muitos anos. Tem-se falado muito em estruturas de pecado, mas toda vez que se fala disso pensa-se somente na sociedade e no mundo fora da Igreja. Porém, como mostram os fatos recentes, no interior da Igreja Católica existem verdadeiras estruturas pecaminosas, organizadas com o propósito de impedir qualquer renovação, qualquer mudança. São estruturas solidificadas pelo carreirismo, pelo personalismo, pelo culto à personalidade, pelo amor ao dinheiro, pela corrupção, pela mentira, pela insensibilidade, pelo silêncio obsequioso, pela falta de atenção aos sinais dos tempos.

Entre os diversos exemplos de tentativa de desvirtuar os gestos e as palavras do papa Francisco, quero mencionar um que aconteceu há poucos dias atrás. O papa estava na Praça de São Pedro acolhendo as pessoas, abraçando-as e falando com elas. Alguém lhe apresentou um jovem dizendo-lhe que o rapaz estava "possesso”. O papa pousa a mão sobre a cabeça do jovem, faz uma brevíssima oração. Poucas horas depois já circulava na internet a notícia de que o pontífice havia praticado um exorcismo em plena Praça de São Pedro. O papa, de repente, foi elevado à categoria de "carismático” e de "espanta diabo”.

Considero um desvirtuamento do gesto do papa, antes de tudo porque a prática de exorcismos na Igreja não é uma coisa banal, embora não faltem exaltados que, vendo o diabo por toda parte, arroguem para si essa prerrogativa. Há todo um ritual previsto pelas normas da Igreja para se realizar exorcismos, começando pela verificação criteriosa de que se trata realmente de uma possessão diabólica. Pessoas, escolhidas a dedo, são nomeadas pelos bispos das dioceses e autorizadas a realizar os exorcismos. Segundo depoimentos destes exorcistas oficiais, os casos de verdadeiras possessões são raríssimos. O resto não passa de histeria ou de problemas de ordem psicológica, hoje tão comuns num mundo de pessoas estressadas e cansadas.

Atribuir a um simples gesto do papa uma prática de exorcismo é o mesmo que dizer que o papa está usando de leviandade, uma vez que em plena praça ele fez uma coisa que a Igreja não permite fazer publicamente e de qualquer jeito, a qualquer hora e em qualquer lugar. Fazer tal afirmação é expor o papa ao ridículo e desvirtuar por completo um gesto tão simples e tão significativo. O correto seria divulgar a forma carinhosa, simples, humana, afetiva e profunda com a qual o bispo de Roma acolhe os fiéis, de modo particular aqueles e aquelas que estão vivendo situações de sofrimento. Mas espalhar o boato do exorcismo só serve para confundir as pessoas mais simples e menos informadas.

Este fato nos oferece a oportunidade de denunciar certa obsessão de alguns católicos pelo diabo. Escutando tais pessoas têm-se a impressão de que para elas o demônio é mais forte do que o próprio Deus. Há uma "demonização” de tudo. O diabo, para tais pessoas, parece ter tomado conta de tudo, como se a salvação oferecida por Jesus não significasse nada. Convém salientar que, de acordo com o Novo Testamento, o diabo já foi vencido por Jesus (Ap 20,1-4), não tendo ele mais poder sobre os seres humanos. Ele foi julgado e expulso do meio da humanidade pela força libertadora de Jesus (Jo 12,31-32). Em Cristo é o demônio que está condenado e não as pessoas. Pela entrega da sua vida, a fim de permanecer fiel ao projeto do Pai, Jesus aboliu definitivamente o pecado, ou seja, quebrou para sempre a potência do diabo (Hb 9,26-28). Cristo nos tornou "perfeitos para sempre” (Hb 10,14). Para o autor da Carta aos Hebreus, se Cristo já nos perdoou, "não é mais preciso fazer ofertas pelos pecados” (Hb 10,18). Isso quer dizer que o diabo já foi aniquilado pelo poder do sangue de Cristo.

É preciso, pois, eliminar tal obsessão pelo diabo. Não ver num simples problema psicológico, numa manifestação de estresse uma possessão diabólica. Aliás, convém recordar que os estudos bíblicos mais sérios já comprovaram que certas situações, tidas como "possessões diabólicas” no tempo de Jesus, não passavam de simples doenças, como, por exemplo, a epilepsia. Em alguns casos tratava-se apenas de estresse, de histeria ou de manifestação de revolta diante de injustiças cometidas. No contexto da época, no qual não se dispunha dos conhecimentos científicos de hoje, tudo isso era visto como ação diabólica. Reconhecer isso não diminui a ação de Jesus, mesmo porque o objetivo dele não era "espantar o diabo”, mas mostrar que o Reino de Deus tinha chegado para a humanidade, de modo particular para os pobres (Lc 11,20). A intenção de Jesus era mostrar que com a sua chegada dava-se uma inversão de sistemas. Ele estava implantando um mundo novo onde os excluídos e excluídas passariam a ter vez e voz.

Infelizmente, quando pessoas das Igrejas ficam obcecadas pelo diabo e começam a confundir problemas patológicos normais com possessões diabólicas, terminam se esquecendo de que o demônio pode estar em outros lugares e situações muito mais graves e sérias. Esquecem, por exemplo, da ação diabólica que está por trás das injustiças que levam diariamente milhares de pessoas à morte por fome e inanição. Esquecem a ação diabólica que se manifesta nos sistemas políticos e religiosos discriminantes, preconceituosos, homofóbicos e opressores. Esquecem-se dos demônios que levam políticos e lideranças religiosas a praticarem a corrupção sob a capa da aparência da religiosidade. E os exemplos podiam ser multiplicados.

Por fim, não devemos esquecer de que a afirmação da existência do diabo é tardia na religiosidade judaica, da qual nós herdamos essa crença. Os estudos bíblicos revelam que até o exílio da Babilônia a teologia israelita não se manifestava sobre a existência de Satanás. Atribuía a Deus tanto o bem como o mal. A incorporação da crença no diabo se dá depois do contato dos hebreus, durante o cativeiro da Babilônia, com a religião persa. "Na Pérsia havia uma demonologia bem desenvolvida. Segundo essa crença, todos os malefícios, desde males psíquicos e mentais até as doenças, as tentações e as desgraças, eram atribuídos a demônios. Acreditava-se, inclusive, que havia um que era o chefe deste exército demoníaco. Este chefe era uma figura suprema do mal como a divindade suprema persa, Ahura Mazda, era a figura suprema do bem” (Ildo Bohn GASS, Uma introdução à Bíblia. Exílio babilônico e dominação persa, São Paulo: Paulus, 2004, p. 172). A introdução da figura do demônio na literatura bíblica se dá somente a partir do ano 332 a.C., bem próximo da era cristã. Por isso é preciso muito cuidado, uma vez que quando exageramos na crença no diabo ficamos muito mais próximos dos cultos persas do que do cristianismo. E com o Diabo não se brinca!

Fonte: adital

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