Nos últimos anos, o debate sobre o tráfico de pessoas tem
ocupado um crescente espaço no debate público, nas agendas governamentais e na
sociedade civil organizada, incluindo o movimento feminista. A provocadora e
instigante análise de Thaddeus Gregory Blanchette nos ajuda a compreender, desde outra perspectiva, algumas nuances deste fenômeno.
Por Thaddeus Gregory
Blanchette
Turismo sexual e questões mais gerais sobre a prostituição e
o comércio sexual têm sido uma das áreas de estudo desenvolvidas por mim e por
minha esposa, Profa. Dra. Ana Paula da Silva. De fato, a pauta do tráfico de
pessoas veio se impondo em nosso campo
desde o início da primeira década do século, devido à afirmação constante, mas
pouco refletida e às vezes francamente equivocada, de que a interação entre
sexo e turismo forma um campo privilegiado, tanto para o tráfico quanto para o seu combate.
Desde o início dos nossos estudos sobre sexo e turismo em
Copacabana, Ana Paula e eu nos defrontamos com a visão popular de que gringos
itinerantes costumam recrutar moças brasileiras ingênuas para o trabalho sexual
escravo no exterior. Chamamos essa afirmação de “O Mito da Maria: uma traficada
exemplar” e achamos que tal mito tem sido responsável, nos últimos anos, pela
deflagração de uma série de ações policiais e restritivas no campo das
migrações, cuja natureza anticonstitucional e violenta é ocultada pelo discurso
de direitos humanos adotado pelos militantes antitráfico e seus aliados
políticos no aparato repressivo global.
Nossas pesquisas etnográficas no Rio, em conjunto com as
protagonizadas por Adriana Piscitelli e diversos outros acadêmicos, têm
revelado dados consistentes que contradizem o Mito da Maria e, ao mesmo tempo,
desvendam uma série de problemas e violências enfrentadas por trabalhadores
sexuais, particularmente quando tomam a decisão de migrar para o exterior. Pelo
menos condicionalmente, nossas pesquisas permitem afirmar que os maiores
perigos enfrentados por esses homens e mulheres têm relação com os efeitos
diretos de sua situação como imigrantes irregulares ou ilegais, envolvidos num
tipo de trabalho – a prostituição – que é muitas vezes ilegal e quase sempre
estigmatizado. Ser migrante brasileiro na Europa ou nos Estados Unidos e
rabalhar como puta, michê ou travesti significa se expor a uma série de
preconceitos que são incorporados à estrutura jurídico-social por meio de leis
xenófobas e sexofóbicas e que se manifestam em violências orquestradas pelo
aparato repressivo do Estado. Evitar essa violência torna-se, assim, a
principal preocupação dos trabalhadores sexuais brasileiros; para isso, ativam
uma série de relações com indivíduos e instituições que prometem proteção,
trabalho e mobilidade, e que são rotulados de “mafiosos” pelos agentes do
Estado, precisamente (e tautologicamente) por causa de suas interações com os
trabalhadores sexuais.
Em termos de nossa produção acadêmica, essa situação acabou
se impondo, transformando-se de uma preocupação marginal para uma questão
central e estruturante em nossos trabalhos atuais. Descobrimos, como acadêmicos
e seres humanos, que não podemos simplesmente testemunhar a crescente onda da
ilegalização da migração em função do trabalho sexual: precisávamos agir em
prol dos trabalhadores sexuais e do seu direito constitucional e humano de ir e
vir livremente, um direito que, a nosso ver, está sendo progressivamente
erodido pelas alterações na legislação e pela atuação das forças de segurança,
em escala global, ocasionada pelo crescente pânico moral do tráfico de pessoas.
Como parte da nossa atuação diante dessa questão, formamos
uma aliança produtiva com a organização de prostitutas Davida, de modo a contribuir
com a resposta, no campo jurídico-legal e cultural, às acusações de que ser
prostituta e migrar significa ser uma vítima do tráfico. Os militantes de
Davida acompanham nossas pesquisas e são sempre convidados a criticá-las e até
a participar como coprodutores e autores. Ademais, os resultados de nossos
trabalhos são disponibilizados para Davida, para que a organização possa usálos
para articular alternativas políticas, com base científica, às atuais políticas
antitráfico patrocinadas pelo Estado brasileiro e seus aliados e interlocutores
internacionais.
Um foco particular desse trabalho em conjunto tem sido, não
tanto as mudanças na legislação brasileira referente ao tráfico de pessoas, mas
as permanências. Refiro-me aqui do Artigo 231 do Código Penal, que continua a
ser o único dispositivo legal brasileiro que se refere ao tráfico. O Artigo 231
é um artefato interessante, pois não só contradiz a letra e o intuito do
Protocolo de Palermo – o tratado que orienta a luta transnacional contra o
tráfico – como, em suas sucessivas modificações, de 2005 e 2009, reforça e
amplia seu caráter como dispositivo especificamente dirigido à repressão da
prostituição. Enquanto o movimento antitráfico brasileiro vem reconhecendo cada
vez mais a insuficiência da legislação vigente, alguns dos mesmos atores –
particularmente, o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres – são simultaneamente ativos na reformulação e ampliação do
Artigo 231 como código antiprostituição.
Em 2005, por exemplo, sob os auspícios da remoção da
linguagem sexista do Código Penal brasileiro, a lei foi ampliada, por meio do
Artigo 231a, para definir as migrações internas de “explorados sexuais” como
“tráfico”. Em 2009, o Artigo foi novamente modificado, dessa vez especificamente
para equacionar os termos “exploração sexual” e “prostituição”, de modo tal que
– até onde eu saiba, pela primeira vez na legislação brasileira – acabaram
situados como sinônimos.
Ao mesmo tempo em que toda essa atividade reformadora
acontecia no âmbito do Artigo 231, refinando-o como arma antiprostituição, não
houve o mesmo grau de promoção prática e efetiva de projetos de lei, de longa
data arquivados pelo Congresso, que prefiguraram a reforma urgente dos códigos
brasileiros referentes à imigração e à regulamentação do trabalho sexual. Como
a antropóloga e pesquisadora Maia Sprandel, funcionária do Congresso Nacional,
tem comentado em várias ocasiões, a preocupação com o tráfico de pessoas e sua
crescente associação com a vigilância da migração e da prostituição parece ter
sido um dos principais fatores na marginalização política desses outros dois
projetos de lei: o 98/2003, que permite o funcionamento de casa de
prostituição, e o 5655/2009, chamado de “Lei do Estrangeiro”.
Mas seria incorreto dizer que a crescente repressão das
migrações dos trabalhadores do sexo no e para fora do Brasil é fruto de grandes
modificações legais: nossas pesquisas mais recentes, durante a última rodada de
comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre o tráfico, indicam que boa
parte dessa repressão está acontecendo extra-legalmente, manifestando-se, em
muitos casos, por meio de instituições e disposições sócio-culturais criadas ou
reforçadas pelo movimento antitráfico e veiculadas por este como necessárias
para a defesa dos direitos humanos. A mais importante delas é a efetivação do
Mito da Maria como orientação pragmática das forças de segurança e de seus
aliados na sociedade civil brasileira.
Aqui devo parar, parenteticamente, para descrever esse mito.
Basicamente, ele enquadra como “traficada típica”, ou exemplar, a Maria
(geralmente dos Santos ou da Silva), uma jovem e bonita mulata ou cabocla de
origem popular que, iludida pelas falsas promessas de aliciadores estrangeiros,
é “extraviada” para fora do Brasil, onde é forçada a se prostituir como escrava
sexual. (Imagens 1, 2 e 3, reproduções de panfletos do Projeto Trama.) A
proposição fundamental desse mito é que Maria – como brasileira pobre, de cor,
ignorante e, por fim, escrava – não tem agência alguma e não é capaz de
refletir ou de agir sobre sua situação. Maria é tão “objetificada” por sua
experiência como escrava que ela nem ajuda a polícia na captura e perseguição
de seus algozes, pois ela os teme de modo absoluto.
(Em outra variante do mito, Maria simplesmente não entende
que é vítima e, portanto – nas palavras de um servidor do Ministério da Justiça
–, “precisa ser educada para se identificar como vítima e, através disto, se
empoderar”.)
De qualquer maneira, ignorante ou medrosa, a única esperança
de liberdade que a Maria tem está na intervenção dos agentes do Estado. Como,
porém, ativar esses agentes se Maria, em sua, prostração, não pode contatá-los?
A resposta é simples: através dos bons cidadãos, devidamente “capacitados” por
educadores a perceber a situação da Maria como traficada e a denunciá-la às
autoridades.
E é justamente aqui que o movimento antitráfico está fazendo
uma intervenção decisiva na repressão, através da educação do público
brasileiro e, particularmente, de “parceiros estratégicos”, tais como
assistentes sociais, policiais, agentes de turismo e funcionários do setor
hoteleiro. Por meio de inúmeros “cursos de capacitação e educação”, esses
“parceiros” são ensinados que Maria tem gênero, cor, classe e condição: que ela
é tipicamente pobre, preta e puta. Identificadas em trajetória de migração,
particularmente se essa for internacional, “vítimas suspeitas” devem ser
denunciadas à polícia, utilizando os números de telefone disque-denúncia,
convenientemente estampados nos materiais dos cursos e veiculados em cartazes
distribuídos em aeroportos, escolas e outros pontos estratégicos” pelo governo
federal. (Imagens 4 e 5, cartazes produzidos pelo governo federal e ONU.)
Assim, quando Maria chega ao aeroporto, ela é devidamente
interceptada pela polícia, sequestrada para uma sala repleta de agentes, e
avisada de que “houve informações” de que ela “está embarcando para participar
de um empreendimento criminoso”, e que, na opinião da polícia, ela deve
desistir da viagem. Temos indícios de que às vezes ela é mantida nessa sala,
ouvindo tais “avisos”, até a decolagem do seu avião.
Essa prática tem nome, de acordo com a Polícia Federal: é
chamada de “ação preventiva na fiscalização dos aeroportos”. E a PF do Rio de
Janeiro insiste que ela é necessária justamente porque a Maria não quer ou não
pode testemunhar após a ocorrência do crime de tráfico. A hipótese de que Maria
não quer testemunhar porque ela vê, na polícia, agentes de violência mais
proeminentes do que as supostas “máfias” não é levantada. De qualquer maneira,
tal ação preventiva é uma clara violação dos direitos constitucionais e dos
pontos mais básicos da jurisprudência ocidental, pois busca prevenir um crime
que ainda não aconteceu na base de denúncias anônimas. Se presumimos que a
violação de seus direitos é uma violência, a decisão de Maria de não cooperar
com a polícia parece sensata e racional: ela busca evitar uma violência
iminente oriunda da polícia e não dá prioridade a uma violência hipotética
oriunda de máfias hipotéticas.
A decisão de não-cooperação com a polícia ganha ainda mais
em racionalidade quando levamos em consideração a história das interações entre
a polícia e os trabalhadores do sexo no Brasil. Como recente tese defendida
pelo antropólogo José Miguel Nieto demonstra, essas relações são frequentemente
configuradas pela brutalidade, desrespeito e franca ilegalidade por parte de
membros das forças de segurança. Nossas pesquisas no Rio indicam que membros da
polícia são frequentemente identificados como exploradores de trabalhadores
sexuais, extraindo deles dinheiro e “favores” em troca de “proteção”. Deve-se
notar aqui que esse papel da polícia está longe de ser uma especialidade
brasileira, sendo apontado em pesquisas sobre prostituição em todo o mundo.
Ou seja, falando francamente, quando o negócio é
prostituição, a polícia muitas vezes é a máfia.
Esse fato quase nunca é contemplado pelos agentes do
movimento antitráfico e, pelo que eu saiba, é completamente ignorado pelo
governo brasileiro, que parece agir na crença de que a violência da polícia
contra os trabalhadores do sexo é oriunda de alguns indivíduos da “banda podre”
e não um fator estruturante social e histórico do mercado do sexo.
Nisso se baseia a minha sugestão e a de Ana Paula para
vocês, nossos colegas das ciências sociais, que buscam contemplar o fenômeno do
tráfico de pessoas como artefato sociológico que toca em questões sobre os
direitos humanos.
A academia brasileira tem uma longa e combativa tradição na
defesa dos direitos humanos contra agentes do Estado. Particularmente grandioso
nessa tradição tem sido o questionamento da violência policial como ato isolado
ou particular. Acho que não estou generalizando quando afirmo que as ciências
sociais no Brasil entendem essa violência como algo estruturado e estruturante
de e pelas relações sociais, uma violência que defende as “pessoas merecedoras
de consideração” dos “indivíduos” ou “cidadãos”, contra qual a lei busca agir
“exemplarmente”. Está na hora de retomar essa tradição e focá-la nos estudos do
tráfico, questionando a presunção básica de que a polícia e outros agentes do
Estado agem em prol dos direitos humanos.
Em particular, Ana Paula e eu achamos que devemos começar a
incentivar estudos processuais de como funciona a atuação antitráfico dos
agentes do Estado, independentemente da retórica gerada pelo movimento
antitráfico. Isto significa focar em quem é apontado como traficado e
traficante, por quem, em quais situações e, sobretudo, significa concentrar-se
no que é feito e não no que é dito. Ações como a ocorrida no início de 2011 em
São Paulo, por exemplo, não podem mais ser chamadas de “ações de resgate da
dignidade humana” sem registro e contestação de nossa parte. (Imagem 6.)
Travestis “resgatadas” na operação antitráfico da Polícia
Civil de São Paulo, no dia 2/2/2011, sendo colocadas no camburão como
criminosas comuns. Apesar de serem rotuladas de “vítimas do tráfico”, as presas
não têm seus rostos ocultados, consideração que foi dada à pessoa do lado
direito da foto. A leitura clara da situação – tanto pelos policiais quanto
pela mídia – é que essas travestis são criminosas (Foto Hélio Torchi, Futura
Press).
Nós, das ciências sociais, devemos então agir para desmistificar
o tráfico como “questão de polícia” e situá-lo como questão social; como
“migration gone wrong” (“imigração que deu errado”), nas palavras de David A.
Feingold, um processo que envolve muitos agentes e etapas complexas e não uma
“trajetória” ou “rota” linear, dominada pelas figuras da “vítima inocente” e do
“algoz mafioso”.
Thaddeus Gregory Blanchette
Professor de Antropologia
UFRJ-Macaé
Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Conservação
macunaima30@yahoo.com.br
Trabalho apresentado no 35º Encontro Anual da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), Caxambu
(MG), em 27/10/2011.
Fonte: Beijo da Rua, abril de 2012, “Copa do Mundo, tráfico
de mulheres e prostituição” (PDF)
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