quarta-feira, 3 de julho de 2013

Como uma política de direitos humanos está sendo utilizada para reprimir as prostitutas

Nos últimos anos, o debate sobre o tráfico de pessoas tem ocupado um crescente espaço no debate público, nas agendas governamentais e na sociedade civil organizada, incluindo o movimento feminista. A provocadora e instigante análise de Thaddeus Gregory Blanchette nos ajuda a compreender, desde outra perspectiva,  algumas nuances deste fenômeno.


Por Thaddeus Gregory Blanchette

Turismo sexual e questões mais gerais sobre a prostituição e o comércio sexual têm sido uma das áreas de estudo desenvolvidas por mim e por minha esposa, Profa. Dra. Ana Paula da Silva. De fato, a pauta do tráfico de pessoas veio se  impondo em nosso campo desde o início da primeira década do século, devido à afirmação constante, mas pouco refletida e às vezes francamente equivocada, de que a interação entre sexo e turismo forma um campo privilegiado, tanto para o  tráfico quanto para o seu combate.
Desde o início dos nossos estudos sobre sexo e turismo em Copacabana, Ana Paula e eu nos defrontamos com a visão popular de que gringos itinerantes costumam recrutar moças brasileiras ingênuas para o trabalho sexual escravo no exterior. Chamamos essa afirmação de “O Mito da Maria: uma traficada exemplar” e achamos que tal mito tem sido responsável, nos últimos anos, pela deflagração de uma série de ações policiais e restritivas no campo das migrações, cuja natureza anticonstitucional e violenta é ocultada pelo discurso de direitos humanos adotado pelos militantes antitráfico e seus aliados políticos no aparato repressivo global.
Nossas pesquisas etnográficas no Rio, em conjunto com as protagonizadas por Adriana Piscitelli e diversos outros acadêmicos, têm revelado dados consistentes que contradizem o Mito da Maria e, ao mesmo tempo, desvendam uma série de problemas e violências enfrentadas por trabalhadores sexuais, particularmente quando tomam a decisão de migrar para o exterior. Pelo menos condicionalmente, nossas pesquisas permitem afirmar que os maiores perigos enfrentados por esses homens e mulheres têm relação com os efeitos diretos de sua situação como imigrantes irregulares ou ilegais, envolvidos num tipo de trabalho – a prostituição – que é muitas vezes ilegal e quase sempre estigmatizado. Ser migrante brasileiro na Europa ou nos Estados Unidos e rabalhar como puta, michê ou travesti significa se expor a uma série de preconceitos que são incorporados à estrutura jurídico-social por meio de leis xenófobas e sexofóbicas e que se manifestam em violências orquestradas pelo aparato repressivo do Estado. Evitar essa violência torna-se, assim, a principal preocupação dos trabalhadores sexuais brasileiros; para isso, ativam uma série de relações com indivíduos e instituições que prometem proteção, trabalho e mobilidade, e que são rotulados de “mafiosos” pelos agentes do Estado, precisamente (e tautologicamente) por causa de suas interações com os trabalhadores sexuais.
Em termos de nossa produção acadêmica, essa situação acabou se impondo, transformando-se de uma preocupação marginal para uma questão central e estruturante em nossos trabalhos atuais. Descobrimos, como acadêmicos e seres humanos, que não podemos simplesmente testemunhar a crescente onda da ilegalização da migração em função do trabalho sexual: precisávamos agir em prol dos trabalhadores sexuais e do seu direito constitucional e humano de ir e vir livremente, um direito que, a nosso ver, está sendo progressivamente erodido pelas alterações na legislação e pela atuação das forças de segurança, em escala global, ocasionada pelo crescente pânico moral do tráfico de pessoas.
Como parte da nossa atuação diante dessa questão, formamos uma aliança produtiva com a organização de prostitutas Davida, de modo a contribuir com a resposta, no campo jurídico-legal e cultural, às acusações de que ser prostituta e migrar significa ser uma vítima do tráfico. Os militantes de Davida acompanham nossas pesquisas e são sempre convidados a criticá-las e até a participar como coprodutores e autores. Ademais, os resultados de nossos trabalhos são disponibilizados para Davida, para que a organização possa usálos para articular alternativas políticas, com base científica, às atuais políticas antitráfico patrocinadas pelo Estado brasileiro e seus aliados e interlocutores internacionais.
Um foco particular desse trabalho em conjunto tem sido, não tanto as mudanças na legislação brasileira referente ao tráfico de pessoas, mas as permanências. Refiro-me aqui do Artigo 231 do Código Penal, que continua a ser o único dispositivo legal brasileiro que se refere ao tráfico. O Artigo 231 é um artefato interessante, pois não só contradiz a letra e o intuito do Protocolo de Palermo – o tratado que orienta a luta transnacional contra o tráfico – como, em suas sucessivas modificações, de 2005 e 2009, reforça e amplia seu caráter como dispositivo especificamente dirigido à repressão da prostituição. Enquanto o movimento antitráfico brasileiro vem reconhecendo cada vez mais a insuficiência da legislação vigente, alguns dos mesmos atores – particularmente, o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – são simultaneamente ativos na reformulação e ampliação do Artigo 231 como código antiprostituição.
Em 2005, por exemplo, sob os auspícios da remoção da linguagem sexista do Código Penal brasileiro, a lei foi ampliada, por meio do Artigo 231a, para definir as migrações internas de “explorados sexuais” como “tráfico”. Em 2009, o Artigo foi novamente modificado, dessa vez especificamente para equacionar os termos “exploração sexual” e “prostituição”, de modo tal que – até onde eu saiba, pela primeira vez na legislação brasileira – acabaram situados como sinônimos.
Ao mesmo tempo em que toda essa atividade reformadora acontecia no âmbito do Artigo 231, refinando-o como arma antiprostituição, não houve o mesmo grau de promoção prática e efetiva de projetos de lei, de longa data arquivados pelo Congresso, que prefiguraram a reforma urgente dos códigos brasileiros referentes à imigração e à regulamentação do trabalho sexual. Como a antropóloga e pesquisadora Maia Sprandel, funcionária do Congresso Nacional, tem comentado em várias ocasiões, a preocupação com o tráfico de pessoas e sua crescente associação com a vigilância da migração e da prostituição parece ter sido um dos principais fatores na marginalização política desses outros dois projetos de lei: o 98/2003, que permite o funcionamento de casa de prostituição, e o 5655/2009, chamado de “Lei do Estrangeiro”.
Mas seria incorreto dizer que a crescente repressão das migrações dos trabalhadores do sexo no e para fora do Brasil é fruto de grandes modificações legais: nossas pesquisas mais recentes, durante a última rodada de comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre o tráfico, indicam que boa parte dessa repressão está acontecendo extra-legalmente, manifestando-se, em muitos casos, por meio de instituições e disposições sócio-culturais criadas ou reforçadas pelo movimento antitráfico e veiculadas por este como necessárias para a defesa dos direitos humanos. A mais importante delas é a efetivação do Mito da Maria como orientação pragmática das forças de segurança e de seus aliados na sociedade civil brasileira.
Aqui devo parar, parenteticamente, para descrever esse mito. Basicamente, ele enquadra como “traficada típica”, ou exemplar, a Maria (geralmente dos Santos ou da Silva), uma jovem e bonita mulata ou cabocla de origem popular que, iludida pelas falsas promessas de aliciadores estrangeiros, é “extraviada” para fora do Brasil, onde é forçada a se prostituir como escrava sexual. (Imagens 1, 2 e 3, reproduções de panfletos do Projeto Trama.) A proposição fundamental desse mito é que Maria – como brasileira pobre, de cor, ignorante e, por fim, escrava – não tem agência alguma e não é capaz de refletir ou de agir sobre sua situação. Maria é tão “objetificada” por sua experiência como escrava que ela nem ajuda a polícia na captura e perseguição de seus algozes, pois ela os teme de modo absoluto.

(Em outra variante do mito, Maria simplesmente não entende que é vítima e, portanto – nas palavras de um servidor do Ministério da Justiça –, “precisa ser educada para se identificar como vítima e, através disto, se empoderar”.)
De qualquer maneira, ignorante ou medrosa, a única esperança de liberdade que a Maria tem está na intervenção dos agentes do Estado. Como, porém, ativar esses agentes se Maria, em sua, prostração, não pode contatá-los? A resposta é simples: através dos bons cidadãos, devidamente “capacitados” por educadores a perceber a situação da Maria como traficada e a denunciá-la às autoridades.
E é justamente aqui que o movimento antitráfico está fazendo uma intervenção decisiva na repressão, através da educação do público brasileiro e, particularmente, de “parceiros estratégicos”, tais como assistentes sociais, policiais, agentes de turismo e funcionários do setor hoteleiro. Por meio de inúmeros “cursos de capacitação e educação”, esses “parceiros” são ensinados que Maria tem gênero, cor, classe e condição: que ela é tipicamente pobre, preta e puta. Identificadas em trajetória de migração, particularmente se essa for internacional, “vítimas suspeitas” devem ser denunciadas à polícia, utilizando os números de telefone disque-denúncia, convenientemente estampados nos materiais dos cursos e veiculados em cartazes distribuídos em aeroportos, escolas e outros pontos estratégicos” pelo governo federal. (Imagens 4 e 5, cartazes produzidos pelo governo federal e ONU.)
Assim, quando Maria chega ao aeroporto, ela é devidamente interceptada pela polícia, sequestrada para uma sala repleta de agentes, e avisada de que “houve informações” de que ela “está embarcando para participar de um empreendimento criminoso”, e que, na opinião da polícia, ela deve desistir da viagem. Temos indícios de que às vezes ela é mantida nessa sala, ouvindo tais “avisos”, até a decolagem do seu avião.
Essa prática tem nome, de acordo com a Polícia Federal: é chamada de “ação preventiva na fiscalização dos aeroportos”. E a PF do Rio de Janeiro insiste que ela é necessária justamente porque a Maria não quer ou não pode testemunhar após a ocorrência do crime de tráfico. A hipótese de que Maria não quer testemunhar porque ela vê, na polícia, agentes de violência mais proeminentes do que as supostas “máfias” não é levantada. De qualquer maneira, tal ação preventiva é uma clara violação dos direitos constitucionais e dos pontos mais básicos da jurisprudência ocidental, pois busca prevenir um crime que ainda não aconteceu na base de denúncias anônimas. Se presumimos que a violação de seus direitos é uma violência, a decisão de Maria de não cooperar com a polícia parece sensata e racional: ela busca evitar uma violência iminente oriunda da polícia e não dá prioridade a uma violência hipotética oriunda de máfias hipotéticas.
A decisão de não-cooperação com a polícia ganha ainda mais em racionalidade quando levamos em consideração a história das interações entre a polícia e os trabalhadores do sexo no Brasil. Como recente tese defendida pelo antropólogo José Miguel Nieto demonstra, essas relações são frequentemente configuradas pela brutalidade, desrespeito e franca ilegalidade por parte de membros das forças de segurança. Nossas pesquisas no Rio indicam que membros da polícia são frequentemente identificados como exploradores de trabalhadores sexuais, extraindo deles dinheiro e “favores” em troca de “proteção”. Deve-se notar aqui que esse papel da polícia está longe de ser uma especialidade brasileira, sendo apontado em pesquisas sobre prostituição em todo o mundo.
Ou seja, falando francamente, quando o negócio é prostituição, a polícia muitas vezes é a máfia.
Esse fato quase nunca é contemplado pelos agentes do movimento antitráfico e, pelo que eu saiba, é completamente ignorado pelo governo brasileiro, que parece agir na crença de que a violência da polícia contra os trabalhadores do sexo é oriunda de alguns indivíduos da “banda podre” e não um fator estruturante social e histórico do mercado do sexo.
Nisso se baseia a minha sugestão e a de Ana Paula para vocês, nossos colegas das ciências sociais, que buscam contemplar o fenômeno do tráfico de pessoas como artefato sociológico que toca em questões sobre os direitos humanos.
A academia brasileira tem uma longa e combativa tradição na defesa dos direitos humanos contra agentes do Estado. Particularmente grandioso nessa tradição tem sido o questionamento da violência policial como ato isolado ou particular. Acho que não estou generalizando quando afirmo que as ciências sociais no Brasil entendem essa violência como algo estruturado e estruturante de e pelas relações sociais, uma violência que defende as “pessoas merecedoras de consideração” dos “indivíduos” ou “cidadãos”, contra qual a lei busca agir “exemplarmente”. Está na hora de retomar essa tradição e focá-la nos estudos do tráfico, questionando a presunção básica de que a polícia e outros agentes do Estado agem em prol dos direitos humanos.
Em particular, Ana Paula e eu achamos que devemos começar a incentivar estudos processuais de como funciona a atuação antitráfico dos agentes do Estado, independentemente da retórica gerada pelo movimento antitráfico. Isto significa focar em quem é apontado como traficado e traficante, por quem, em quais situações e, sobretudo, significa concentrar-se no que é feito e não no que é dito. Ações como a ocorrida no início de 2011 em São Paulo, por exemplo, não podem mais ser chamadas de “ações de resgate da dignidade humana” sem registro e contestação de nossa parte. (Imagem 6.)

Travestis “resgatadas” na operação antitráfico da Polícia Civil de São Paulo, no dia 2/2/2011, sendo colocadas no camburão como criminosas comuns. Apesar de serem rotuladas de “vítimas do tráfico”, as presas não têm seus rostos ocultados, consideração que foi dada à pessoa do lado direito da foto. A leitura clara da situação – tanto pelos policiais quanto pela mídia – é que essas travestis são criminosas (Foto Hélio Torchi, Futura Press).
Nós, das ciências sociais, devemos então agir para desmistificar o tráfico como “questão de polícia” e situá-lo como questão social; como “migration gone wrong” (“imigração que deu errado”), nas palavras de David A. Feingold, um processo que envolve muitos agentes e etapas complexas e não uma “trajetória” ou “rota” linear, dominada pelas figuras da “vítima inocente” e do “algoz mafioso”.



Thaddeus Gregory Blanchette
Professor de Antropologia
UFRJ-Macaé
Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Conservação
macunaima30@yahoo.com.br

Trabalho apresentado no 35º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), Caxambu (MG), em 27/10/2011.

Fonte: Beijo da Rua, abril de 2012, “Copa do Mundo, tráfico de mulheres e prostituição” (PDF)


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