Dos rincões miseráveis do Brasil emergiram as vozes de mais
de uma centena de mulheres. Beneficiárias do Bolsa Família, essas brasileiras
abriram as portas de seus casebres e, não raro, a própria alma, para contar
suas vivências e aprendizados com os recursos transferidos regularmente pelo
governo federal no âmbito de seus mais extenso programa destinado a mitigar a
pobreza.
Os densos e francos relatos, que em muitas ocasiões
adquiriram contornos de pungentes confidências, permitiram trazer à luz
resultados muito mais abrangentes na vida dessas mulheres que a subsistência
proporcionada pelo auxílio financeiro. O recebimento da renda monetária e o
controle exercido por elas sobre o dinheiro – pois são as titulares do cartão
que permite sacar o benefício na boca do caixa – modificaram substancialmente a
percepção que tinham sobre a própria vida. Houve ganho de autonomia e liberdade
de escolha, de dignidade e respeitabilidade na vida local. Em suma, passaram a
ter voz em regiões secularmente identificadas com a submissão feminina.
As profundas mudanças comportamentais no universo feminino
do Bolsa Família constituem os achados de um estudo de fôlego desenvolvido a
quatro mãos pela socióloga Walquiria Gertrudes Domingues Leão Rêgo, professora
titular do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e pelo filósofo italiano Alessandro Pinzani,
professor adjunto de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Concebida com a finalidade de averiguar se, como e em
que medida a nova renda e sua regularidade incidiam sobre a vida cotidiana das
famílias e, em particular, das mulheres, a pesquisa completa estará disponível
em breve no livro Vozes do Bolsa Família, a ser lançado pela Editora Unesp.
Walquiria chama a atenção para o fato de a pesquisa ter sido
conduzida por autores provenientes de formações intelectuais distintas
(filosofia e ciências sociais), além de provir de diferentes países (Itália e
Brasil). Um dos motivos principais da cooperação foi a tentativa, por um lado,
de aproximar a filosofia política da análise empírica da realidade social e,
por outro, de fortalecer o diálogo interdisciplinar existente desde a fundação
da sociologia. De acordo com ela, a simbiose resultou em uma diferença de olhar
e de perspectiva teórica que proporcionaram ênfases e tons diversos ao tema
abordado.
“Consideramos o estudo como um experimento interpretativo,
no qual estiveram presentes o diálogo entre várias teorias contemporâneas
normativas de cidadania, de democracia e de autonomia e seu confronto com a
realidade das mulheres em estado de extrema pobreza, alvos do Bolsa Família”,
enfatiza.
Impactos do dinheiro
Foi de Walquiria a iniciativa da empreitada, a partir de sua
percepção de que o programa teria impactos na subjetividade das mulheres, pelo
fato de o Bolsa Família conceder benefícios monetários. Segundo a “Sociologia
do Dinheiro” – uma das várias teorias que ofereceram respaldo conceitual e
analítico na avaliação do material empírico recolhido pelos docentes na
pesquisa – o dinheiro é uma instituição diferente, capaz de transformar os
indivíduos. Desse modo, argumenta a cientista, a destinação de um valor
financeiro é completamente diferente da entrega de uma cesta básica, porque
possibilita o desenvolvimento de determinadas capacidades e competências que o
dinheiro, em sua função comunicativa e simbólica, acaba estimulando, como a
liberdade de escolher minimamente a forma de utilizar o recurso.
A investigação requereu viagens de pesquisa ao longo de
cinco anos, desde 2006, que Walquiria empreendeu a princípio sozinha e mais
tarde acompanhada de Alessandro, nas quais foram entrevistadas 150 mulheres que
recebem o Bolsa Família em regiões tradicionalmente consideradas as mais
desassistidas do país: sertão nordestino (Alagoas), zona litorânea de Alagoas,
Vale do Jequitinhonha (MG), periferia da cidade do Recife, interior do Piauí,
interior do Maranhão e periferia de São Luís (MA). São lugares onde a população
é em sua maioria semianalfabeta, os níveis de escolaridade são baixíssimos, não
existem opções de emprego e o Estado é pouco atuante.
“Escolhemos entrevistar beneficiárias que moram em áreas
rurais ou em pequenas cidades do interior, por entender que sua situação se
diferencia muito da dos pobres urbanos, objeto já de inúmeros estudos. É muito
diferente ser pobre em algumas daquelas regiões e ser pobre na periferia de São
Paulo, por exemplo, onde bem ou mal existem alternativas. Os pobres rurais se
deparam com problemas diferentes, começando pelo isolamento geográfico que
resulta, quase sempre, na impossibilidade de ter acesso a serviços públicos
básicos, como escolas e postos de saúde”, justifica a professora.
Importante no processo de seleção e localização das
entrevistadas, segundo ela, foi o apoio de contatos locais (pessoas diretamente
responsáveis pela aplicação do programa, como assistentes sociais, gestores,
prefeitos, ou ainda integrantes de movimentos sociais e intelectuais), que
intermediaram encontros com muitas das famílias ouvidas. Mas na maioria das
vezes as beneficiárias foram procuradas livremente, a fim de evitar direcionamentos
de qualquer natureza. Conforme observa ainda a socióloga, não procederam a uma
pesquisa estatística ou quantitativa, mas fundamentalmente qualitativa.
“Aplicamos em nosso trabalho de coleta de dados a técnica da
entrevista aberta, e não a do questionário fechado, pois julgamos ser a única
possível nesse tipo de investigação, exatamente porque pretendíamos alcançar
alguns níveis da estrutura subjetiva dos entrevistados, buscando apreender
mudanças mais profundas, morais e políticas, proporcionadas pelo benefício.
Realizamos então longas entrevistas, munidos apenas de um roteiro de questões e
na audição atenta da fala mais livre possível dos entrevistados”, esclarece a
pesquisadora.
O método impôs a necessidade da realização de repetidas
conversas e do estabelecimento de uma relação de confiança com os
entrevistados, o que significou a dedicação de tempos longos tanto na coleta
dos depoimentos, com o retorno ao campo ao menos mais de uma vez – o propósito
era o de acompanhar a adaptação das famílias e, em particular, das mulheres à
nova situação econômica proporcionada pelo programa –, quanto na reflexão sobre
o material recolhido. Walquiria frustrou-se por não ter recebido apoio
financeiro da Universidade e decidiu custear a pesquisa com recursos próprios,
agendando as viagens em períodos de férias.
Economia doméstica
Conforme observam os autores do estudo, a pobreza é um
problema complexo e, como tal, não admite uma solução fácil. Portanto, não pode
ser resolvida simplesmente por meio de um programa de transferência direta de
renda. Do mesmo modo, é um equívoco pensar que o Bolsa Família se limita a
garantir a sobrevivência material de famílias destituídas e extremamente
pobres, embora, salientam, a medida governamental tem o mérito de enfrentar importantes
questões ligadas à pobreza. Uma delas é o início da superação da cultura da
resignação, ou seja, da espera resignada pela morte por fome e doenças
relacionadas à miséria: com o valor recebido, podiam comprar comida para a
família e já não passavam tanta “necessidade” (termo este muito usado pelas
entrevistadas para falar de carências e privações).
“Pudemos constatar nas entrevistas a imprescindibilidade da
bolsa para continuarem vivendo”, apontam os docentes. “Na grande maioria das
famílias pesquisadas, o repasse representa o único rendimento monetário
percebido e, em vários casos, constitui a primeira experiência regular de
obtenção de rendimento. Antes disso, a vida se resumia à luta diária para obter
comida, que poderia vir desde a sua caça como da ajuda de familiares. Todas
reconheceram que, se suas vidas eram duras, sem a bolsa o seriam ainda mais.”
Dona Amélia que o diga. Moradora de Pasmadinho (MG), 41
anos, mãe de dez filhos, com marido desempregado que faz bicos quando estes
aparecem, ela salienta que agora a família já não passa fome, pois antes “às
vezes, não tinha para jantar ou não tinha para almoçar”. Ao responder sobre o
papel da renda na mudança da vida dura, não pestaneja: “Porque a gente tem mais
liberdade no dinheiro. Pode comprar mais o que a gente quer.”
A dupla afirma que, em diferentes níveis, praticamente todas
as mulheres registraram mudanças relevantes em sua vida material, embora um
número importante entre elas se queixasse do valor insuficiente do auxílio
(muitas o definiram como “uma ajuda”) para obter outras melhorias na vida e
ganhar mais liberdade na escolha dos bens de consumo, e quase todas afirmassem
preferir um trabalho regular.
De forma geral, a bolsa (cujos valores são periodicamente
reajustados) é utilizada para comprar gêneros alimentícios básicos: arroz,
farinha, feijão, macarrão, carne e leite. Mas à medida que as usuárias aprendem
a planejar minimamente o uso do dinheiro, desenvolvem também a capacidade de
fazer escolhas e passam a buscar opções capazes, por exemplo, de variar o
cardápio familiar (“como optar por comer macarrão ou batata uma vez por
semana”, ilustra Walquiria) e até a se permitir algumas “extravagâncias”
impensáveis até então, como comprar bolachas e iogurtes para as crianças. Nesse
processo em que se aprimoram no gerenciamento adequado dos recursos recebidos,
acabam gradualmente por conseguir acesso a outros bens e confortos para a
família. Para aqueles de quem a miséria extirpou qualquer chance de escolha, os
avanços são notáveis.
Em Inhapi (AL), Dona Luisa, com 41 anos, mãe de oito filhos
e avó de uma menina de 2 anos, conseguiu pintar a casa e comprar sofás e
televisão com a bolsa de R$ 160,00 (valor em 2011) e mais algum dinheiro
proveniente dos “bicos” do marido, ajudante de pedreiro, relata a pesquisa.
Testemunhou com alegria a melhora que a bolsa trouxe a sua vida (ela e a
família comiam melhor e de fato a vida melhorara bastante, contou) e revelou
como conseguira se organizar para adquirir novos colchões. Economizara tostão
por tostão, não contou para ninguém, e, de repente, comprou um colchão e
depois, usando do mesmo procedimento, comprou os demais. Demonstrava muita
satisfação com sua proeza e, principalmente, pelo fato de agora todos eles
dormirem sobre “camas de verdade”. Os planos para o futuro incluíam a compra de
uma geladeira.
“A casa e a aparência dessa família demonstravam pobreza,
mas tinham tido um grande ganho na dignificação de suas vidas, que se
manifestava nos gestos e modos de falar das melhorias da residência e da dieta
alimentar. Disso se depreende que o Bolsa Família não se limita a sustentar as
famílias que o recebem, mas dá a elas um certo fôlego que lhes estaria
permitindo sair da sua atual situação de privação absoluta de bens”, analisa
Walquiria.
Batom e separações
O fato de o emblemático cartão amarelo do Bolsa Família
estar em nome das mulheres é considerado positivamente pela quase totalidade
delas. A clássica resposta sobre essa questão é a de que elas são melhores
gestoras das finanças familiares e de que seus maridos normalmente são
incapazes de fazer compras adequadas às necessidades familiares ou gastariam o
dinheiro em bebidas. No entanto, muito mais que referendar essa justificativa,
a decisão do governo em destinar o benefício do programa às mulheres (muitas
passaram a dispor de uma renda fixa pela primeira vez) representou, para as
destinatárias, a conquista de maior independência e segurança. Em sua maioria,
afirmaram se sentir mais livres (ou “à vontade”, nas palavras delas) e menos
angustiadas no que diz respeito à capacidade de adquirir bens primários para
suas famílias. Quase nenhuma delas entrega o dinheiro para o marido.
“A gente fica mais independente quando coloca [o cartão] no
nome da pessoa mesmo”, afirmou de forma positiva e entusiasmada Dona Neusa, 36
anos e mãe solteira de três filhos, moradora no bairro do Carvão, em Maragogi
(AL). “É, [ela] fica com mais direito, né? Porque a gente vive com mais
direito. Já que as mulheres não têm nada, não trabalham, aí elas têm esse
direito, né?”, ressaltou Dona Maria, de 29 anos, casada, com uma enteada de 9
anos, também da mesma região. “Tá certo assim, pois a mulher é mais econômica
que o homem”, resumiu Dona Rosangela, do bairro Anjo da Guarda, na periferia de
São Luís do Maranhão.
O caráter liberatório da disponibilidade de renda monetária
pode ser também aferido no aumento de autoestima e de autonomização na gestão
das próprias vidas e destinos das mulheres ouvidas. Passou a existir espaço
para cuidados antes proibitivos com a vaidade – ainda que a compra de um
simples batom ou creme para cabelo fosse carregada de um injustificado
sentimento de culpa por um “desvio” na finalidade do dinheiro recebido –,
sentiram-se mais à vontade para tomar decisões sobre o próprio corpo – houve aumento
no número de mulheres que procuram por métodos anticoncepcionais – e algumas
poucas tomaram inclusive decisões morais difíceis, como conseguir desfazer
casamentos infelizes, ainda mais em regiões onde é raro a mulher tomar a
iniciativa de separações.
“A vida delas mudou porque o universo de escolhas se ampliou
consideravelmente. E exercer o direito de escolha é uma questão fundamental
para a democracia”, argumenta Walquiria. Com um orçamento da ordem de R$ 24
bilhões estimado para este ano e atendendo a um universo de 50 milhões de
pessoas, o Bolsa Família e seus beneficiários são alvo de polêmicas que, na
opinião de Walquiria, constituem um bom exemplo da repetição histórica do
preconceito e da força dos estereótipos em relação aos pobres.
“Nos mais variados ambientes sociais eles são acusados de
preferir viver do dinheiro da bolsa, em vez de trabalhar; de fazer filhos para
ganhar mais dinheiro do Estado, entre outras. Essas acusações estereotipadas
provêm, na maioria dos casos, de pessoas que não dispõem de informações a
respeito do programa, como o valor da bolsa, por exemplo, que com certeza não
poderia substituir um salário regular; ou sobre o fato de que as famílias
recebem no máximo ajuda para três filhos, recentemente para mais dois em idade escolar
e uma ajuda para dois adolescentes, entre 16 e 17 anos, enquanto os outros
ficam excluídos; ou sobre o fato de que os beneficiários não dispõem de
capacitações, pois em sua grande maioria são analfabetos ou pouco
escolarizados; portanto, dificilmente conseguem emprego”, defende.
Controvérsias à parte, as mudanças na subjetividade das
mulheres constatadas ao longo dos cinco anos da pesquisa convenceram Walquiria
de que o Bolsa Família pode ser considerado uzi como um longo processo, uma
construção da identidade, que altera a subjetividade –, ainda que de forma
incipiente e observada a ressalva de que o programa estaria apenas começando a
alterar a forma como estes indivíduos se enxergam.
Conforme salienta, se a alimentação e outras conquistas no
campo da subjetividade estão sendo asseguradas, por outro lado as famílias
ainda carecem do acesso a demais direitos sociais básicos – assistência social,
saúde e educação – associados à transferência do benefício estatal.
Para ela, contudo, o fato de ser ainda muito insuficiente
como tal não permite ignorar suas possibilidades de se tornar uma consistente
política de formação de cidadãos, se complementadas por um conjunto mais amplo
de políticas que visem aos direitos garantidos na Constituição de 1988. Nesse sentido,
destaca, o Bolsa Família começa pela mais preliminar de todas as prerrogativas
da cidadania, porque diz respeito ao mais preliminar direito: o direito à vida.
O campo de atuação de Alessandro Pinzani é a filosofia
política. Ele ocupa-se, em particular, das teorias da justiça social. O convite
da professora Walquiria para participar da pesquisa deveu-se a esse interesse
específico. Ao explicar em que aspectos o BolQmília, como objeto de pesquisa,
tornou-se importante e trouxe contribuições para as suas investigações, ele
observa que, em geral, os estudos de filosofia política no Brasil tendem a
permanecer em certo nível de abstração.
Há exceções importantes, frisa, como os projetos de pesquisa
social realizados pelo Cebrap ou pelo Centro Brasileiro de Pesquisas em
Democracia de Porto Alegre, entre outros. A tendência, no entanto, é a de
estudar modelos teóricos sem preocupar-se muito com sua aplicabilidade à
realidade social, econômica e política brasileira.
Ainda de acordo com ele, os modelos contemporâneos mais
pesquisados no Brasil – como a teoria da justiça como equidade, de Rawls, ou a
teoria discursiva do Estado e do direito, de Habermas – partem de pressupostos
que no país são dados só parcialmente. Em particular, pressupõe-se que todos os
cidadãos tenham alcançado e ultrapassado um nível mínimo de qualidade de vida.
“Mas a situação brasileira é diferente, com quase um terço da população que
vive perto da linha da pobreza definida pelo FMI. Minha intenção era investigar
o que isso significa para a elaboração de uma teoria da justiça mais preocupada
com sua concreta aplicação em uma realidade social específica”, salienta
Pinzani.
“Ao mesmo tempo, analisar os efeitos de um programa de
transferência direta de renda monetária como o Bolsa Família, me ofereceu a
possibilidade de estudar a relação entre dinheiro e autonomia individual, que
já foi tematizada por Marx e Simmel, entre outros, e que me interessava desde
que comecei a ocupar-me da teoria das capabilities de Amartya Sen e Martha
Nussbaum”, complementa.
Segundo ele, todos esses autores foram fundamentais para
elaborar os fundamentos teóricos a partir dos quais foi possível interpretar os
dados empíricos recolhidos na pesquisa de campo. Finalmente, era sua intenção
voltar a um aspecto importante de uma tradição teórica, na qual ele afirma se
reconhecer bastante: a Teoria Crítica.
“Os membros da chamada primeira geração de tal teoria,
Adorno e Horkheimer, em primeiro lugar, acreditavam na importância de conjugar
pesquisa empírica e teoria social e parece-me que esta visão seja ainda
valiosa”, argumenta.
Em relação aos seus achados acerca dos impactos do programa
na autonomia das beneficiárias, Pinzani faz questão inicialmente de ponderar
que o conceito de autonomia é bastante complexo. Existem, em primeiro lugar,
diferentes âmbitos, nos quais é possível falar em autonomia: moral, político,
econômico. Em segundo lugar, autonomia é algo que se pode alcançar em diversos
níveis. Não há necessariamente uma conexão entre o fato de possuir um alto nível
de autonomia econômica, por exemplo, e o de possuir um alto nível de autonomia
moral ou política.
“Em nossa pesquisa, partimos de uma definição mínima de
autonomia, entendida como a capacidade de elaborar planos de vida e de atribuir
direitos e deveres a si e aos outros. Tal definição se aplica aos três âmbitos
anteriormente mencionados e deixa aberta a possibilidade de que o indivíduo
alcance diferentes níveis de autonomia em cada um deles”, esclarece.
“Ao mesmo tempo, incluímos em nossa visão de autonomia a
ideia, defendida em particular por Sen, de que a liberdade individual depende
da existência de circunstâncias subjetivas e objetivas que aumentam ou diminuem
as opções de ação e de formas de ser que os indivíduos consideram valiosas.
Exemplos: a possibilidade de viver livre de doenças endêmicas, como a malária,
implica na existência de políticas públicas dirigidas ao combate de tais
doenças; a possibilidade de encontrar uma profissão que nos sustente depende da
disponibilidade de trabalho na região na qual moramos.” Ao investigar se e em
que medida um programa de renda monetária regular como o Bolsa Família
contribuía para criar condições materiais capazes de permitir aos beneficiários
desenvolver maior autonomia, os resultados coletados deixaram Pinzani
moderadamente otimista: pode-se dizer que na vida das beneficiárias abriram
fendas de liberdade.
“A experiência de uma renda monetária regular, além de
libertá-las da necessidade imperiosz de satisfzazer carências básicas, lhes
permite certa autonomia em relação à planificação da vida delas e de suas
famílias – não somente em sentido estritamente econômico, mas também no que diz
respeito à saída de relações angustiantes de dependência pessoal, particularmente
de dependência dos pais, dos maridos, dos irmãos ou cunhados, ou à esperança de
uma vida melhor para seus filhos”, constata.
O pesquisador verificou que as beneficiárias passam a
assumir uma maior responsabilidade com sua vida, a sentir-se mais “à vontade”,
como afirmaram muitas delas nos depoimentos, passam a se perceber como pessoas
reconhecidas pela sua comunidade, justamente por causa da regularidade da
renda, que faz com que os comerciantes lhes concedam crédito, por exemplo.
“Sem esta possibilidade de planificar pelo menos minimamente
sua vida, um ser humano se parece com um animal preocupado somente em caçar
comida para si e para seus filhotes”, compara Pinzani.
“Neste sentido, na fala de algumas das mais desprovidas
dessas mulheres, emerge a sensação de se ter alcançado somente agora uma
realidade plenamente humana. Mas também as outras reconhecem que suas opções
existenciais aumentaram significativamente – e isso pode ser lido como um
aumento de sua autonomia moral.”
Trecho do livro
Em seguida nos dirigimos para a residência de Dona Madalena,
agora com 35 anos. Encontramo-la “batendo feijão” na sua minúscula propriedade.
Veio nos atender de modo sorridente, muito diferente do ano anterior, quando a
encontramos lacônica, de semblante sombrio, tendo caído em prantos a certa
altura da entrevista. Fotografamo-la juntamente com seus filhos, e neste
momento ela fez questão de contar que no ano anterior a tínhamos encontrado num
dos momentos mais difíceis de sua vida, pois queria se separar do marido.
Agora, havia conseguido a separação e a vida havia melhorado muito.
Perguntamos-lhe quanto estava recebendo pelo programa BF, e ela muito alegre
nos disse: “Estou recebendo R$ 112 com esse pequeno aumento que teve”.
À pergunta sobre o que havia mudado na sua vida após seu
ingresso no programa Bolsa Família, Madalena respondeu: “Adoro, porque eu não
sei o que seria da minha vida sem ele, né? Ia ficar meio difícil, com três
filhos. Acho ótimo, ótimo, porque se não fosse o Bolsa Família, eu não sei o que
seria da família pobre”.
Do ponto de vista das mulheres entrevistadas, salta aos
olhos seu desejo de garantir um futuro melhor a seus filhos. Pode-se dizer que
é essa quase sua única esperança na vida: fazer deles pessoas menos destituídas
de capacitações do que elas, enfim, equipá-los melhor para que busquem outro
destino.
Fonte: Jornal da
Unicamp
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