“Há um longo caminho a ser percorrido para que a diversidade
possa de fato ter cidadania nas estruturas da Igreja Católica Romana”, disse
Ivone Gebara (foto), a religiosa brasileira e feminista.
“Precisamos de mais tempo para avaliar as posições
e ações do novo pontificado”, disse, numa entrevista ao jornal Página/12, a
partir de Camaragibe, periferia de Recife, onde reside. Durante décadas, no
nordeste do Brasil, tem vivido uma vida de “inclusão” em bairros populares.
“Especulações podem ser feitas, mas, de modo geral, são
opiniões muito subjetivas, tendo mais a ver com alguns de nossos desejos do que
com as reais condições de possibilidade de mudanças numa estrutura tão complexa
como a do Vaticano. Há pequenos sinais que podem ser interpretados como esforços
simbólicos para devolver credibilidade à Igreja, como a escolha do nome
Francisco, a opção pelos pobres, a quebra de alguns protocolos. Contudo, ainda
é cedo para ter juízo em relação às novas políticas e teologias do Papa”,
adverte Gebara. E propõe que Francisco e aqueles que o rodeiam para governar a
Igreja Católica, em todo o mundo, “escutem, sintam, vejam, duvidem de suas
interpretações e perguntem às pessoas sobre o que vivem e querem da
instituição”.
Gebara é uma freira diferente. Não usa hábito e prega a
teologia feminista, que entrecruza com uma perspectiva filosófica humanista. É
muito prazeroso escutá-la, em razão do seu tom de voz, mas principalmente por
suas ideias, que soam a revolução dentro de uma instituição historicamente
machista, conservadora e misógina. Doutora em Filosofia pela Universidade
Católica de São Paulo e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de
Lovaina, Bélgica, pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora Cônegas de
Santo Agostinho.
A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada no jornal
Página/12, 24-03-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Como você interpreta a eleição de um papa latino-americano?
Penso que a eleição de um novo papa, sobretudo no contexto
do mundo atual, não é um ato sem um prévio pensamento do Conclave. Com isso,
quero dizer que o papa Bento XVI antes de renunciar, assim como seus
companheiros de trabalho, os mais próximos, já tinham desenhado a sucessão. É
minha suspeita. Isto quer dizer que houve mais ou menos uma definida linha
sucessória que começou, a partir da escolha dos atuais cardeais, por João Paulo
II e Bento XVI. Ao deixar o pontificado, eu acredito que Ratzinger possuía um
desejo para a sucessão. Um homem inteligente como ele não deixaria as coisas
totalmente soltas, assim que deixou seu ministério papal. É neste sentido que
entra a eleição de um papa latino-americano.
Nos últimos 20 anos, os governos da América Latina tomam uma
direção política popular, ou seja, se abrem para projetos políticos que
favorecem as populações marginalizadas, com todas as contradições que esse
caminho pode ter. E também favorecem as mulheres e as pessoas LGBT, assim como
a outros grupos ativistas em direitos humanos. Nesse caminho, também se
desenham no horizonte muitos movimentos sociais que contestam a autoridade da
Igreja. Penso especialmente nos movimentos feministas que se libertam da tutela
masculina, inclusive, na Igreja. A Igreja Católica institucional foi uma dos
bastiões de resistência contra a emancipação das mulheres, uma emancipação que
significou se apropriar de seu corpo, de sua sexualidade, de suas escolhas
pessoais, de uma vida profissional para além do mundo doméstico.
Muita coisa nova está sendo feita sem o consentimento
explícito da Igreja hierárquica masculina. Basta também nos darmos conta da
diminuição do número de fiéis católicos. Um papa latino-americano poderia
reequilibrar este jogo de forças, sobretudo, se vem com um discurso e uma
prática dos pobres e se é uma figura simpática capaz de tocar nossas entranhas
e dar certa segurança aos fiéis. Uma figura com maior proximidade humana,
consciente do pluralismo cultural que se vive, do novo momento na política e
economia nas Américas. Acredito que algo disto foi pensado no processo de
eleição. A partir disto, pode se falar de geopolítica.
Num artigo que você publicou, nestes dias, sobre a eleição
do Papa, refere-se à geopolítica do segredo. Você poderia explicar o conceito?
Falo de geopolítica do segredo para sublinhar o elemento
“segredo” não apenas na maneira de escolher o papa, mas também nas muitas
formas de atuação da Cúria Romana. A geopolítica do segredo significa que a
ideologia religiosa se apresenta como se estivesse envolvida com elementos
atribuídos à vontade divina; apresenta maneiras de atuar de forma secreta,
embora seja no nível simbólico. Esta vontade parece ser mais conhecida por
alguns varões. Apenas varões votam, pois Deus é varão. Apenas os anciãos votam,
pois se acredita que possuem mais sabedoria. Não há discussão pública.
Não se apresentam como os governos que nós conhecemos, mas
são envolvidos numa espécie de aura sagrada. Apresentam-se como se fossem um
governo com um componente decisório divino, onde as mulheres e o povo simples
não são aceitos. Existe um cerimonial particular: queimam-se os votos de papel,
comunica-se com os fiéis por meio de uma fumaça negra ou da fumaça branca. Há
todo um clima produzido para indicar que aquilo que fazem de diferente até pode
ser interpretado pelos fiéis como algo superior, que vem de uma esfera celeste
e que, na realidade, não corresponde aos costumes introduzidos em diferentes
épocas. Alguns destes costumes são cópias de comportamentos de reis ou
imperadores do passado. Ter o segredo como elemento político da eleição é a sua
maneira de se posicionar no conjunto de nações. Por isso, fala-se de
geopolítica do segredo. Os meios de comunicação tiveram um papel importante
para acompanhar e revelar as origens destes costumes cheios de segredo.
Nos meios de comunicação dominantes, destaca-se a
simplicidade do papa Francisco como um grande valor...
De fato, a simplicidade na forma como o papa Francisco se
apresentou toca os corações. Entretanto, penso que é muito pouco tempo de
pontificado para tirar conclusões. É realmente simpático, tem calor humano,
simplicidade, ardor, mas é preciso ver o que acontecerá dentro de alguns meses.
Não sei se posso dizer que estas são mudanças na Igreja. São características
pessoais do novo papa, seu estilo de viver, e espero que poderão servir ou
contribuir para introduzir as mudanças necessárias nas estruturas da Igreja.
Por que é tão difícil que a Igreja católica acompanhe as
mudanças na sociedade e se apresente como uma instituição tão distanciada da
vida das pessoas comuns, que se divorciam, usam preservativos, possuem relações
sexuais antes do casamento, são homossexuais ou podem enfrentar um aborto?
A visão desenvolvida na Igreja Católica, fruto de antigas
filosofia que se embutiram no cristianismo, é a de que existe uma ordem de
comportamentos humanos petrificada e estes comportamentos correspondem ao mais
correto. Isto significa que, a partir das Escrituras, são deduzidos
comportamentos considerados de acordo com a vontade de Deus ou segundo o desejo
de Jesus Cristo. Nesta perspectiva, são estabelecidos comportamentos de justiça
social ou de ética sexual a partir de uma ordem que se chamou de vontade de
Deus.
Homossexuais, divorciados, mulheres que fazem aborto e
outros comportamentos nesta linha são considerados como desordem na ordem
querida por Deus. Na mesma linha, abrir espaço para as mulheres dentro da hierarquia
católica significa introduzir uma desordem de representatividade. Deus
masculino, Jesus masculino, não podem ser representados a partir de um corpo
feminino frágil e tentador. Ao mesmo tempo em que falam em ter misericórdia com
os pecadores e marginalizados, desenvolvem um sistema legal que impede a
misericórdia através de fatos. O paradoxo é flagrante! É claro, esta é uma
forma de pensar que não resiste a uma racionalidade moderna, nem às buscas de
muitos grupos, sobretudo, de mulheres em vista da afirmação de sua dignidade.
Há um longo caminho a ser percorrido para a diversidade, de fato, ter cidadania
nas estruturas da Igreja Católica Romana. Há muito caminho a andar e um caminho
que precisa contar com a colaboração de muitas e muitos.
E o que você espera de Francisco?
A partir desse contexto, não sei dizer o que espero apenas
de Francisco, ou seja, dele como papa, mas, sim, posso dizer o que espero dele
com sua equipe ampliada, nos diferentes cantos do mundo. Espero que escutem,
sintam, vejam, duvidem de suas interpretações, perguntem às pessoas sobre o que
vivem e o que querem da instituição. Penso que temos uma diversidade de
aspirações e que uma instituição como a Igreja Católica Romana tem
possibilidades de se abrir não apenas para a diversidade de culturas, de
orientações sexuais, de gênero, mas também à diversidade de expressões da mesma
fé cristã.
Atrevo-me a dizer que algumas coisas parecem importantes: a
possibilidade de que alguns grupos expressem sua fé a partir de outras
referências filosóficas, a partir de outra linguagem, a partir da diversidade
de experiências especialmente das mulheres. Que o critério não seja a
formulação teórica, a partir de uma linguagem preestabelecida, mas o cuidado, a
relação de amor e justiça entre as pessoas. Muitas pessoas continuam abraçando
os valores cristãos, mas já não podem expressá-los com a linguagem dos dogmas
ou com a linguagem mágica das liturgias atuais. Estas coisas lhes agridem a
razão e o coração.
Poder expressar o amor, a justiça, a misericórdia, em
concreto na história, não significa ter que reduzir estas vivências às
linguagens abençoadas pela hierarquia católica. Voltar à linguagem cotidiana,
expressar-se a partir do vivido, encontrar no ordinário da vida o
extraordinário da própria vida. Sair de uma linguagem masculina de mistérios
metafísicos e se encontrar com o simples, com o inesperado que nos enche de
beleza e mistério. Este tipo de linguagem produz um poder diferente do
hierárquico. É um poder que todas as pessoas podem viver. O que espero não é
que se imponha esta forma como a verdadeira, mas que se permita sua inclusão
como uma maneira a mais de expressar o amor que sustenta nossas vidas. Neste
contexto, espero que os muitos grupos fundamentalistas católicos, presentes no
mundo e no Vaticano, não impeçam as reformas necessárias da Igreja. Que o bem
comum prevaleça. Que o Papa não sucumba diante deles e de seus interesses, mas
que seja firme, e que nós possamos ajudá-lo nesta firmeza de fé.
Fonte: Ihu
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