O filme é de uma simplicidade comovente. É feito como se um
documentarista acompanhasse Jesus, desde o nascimento até sua morte, tendo em
mãos apenas uma máquina filmadora.
Fiel ao traço do neorrealismo italiano, essa obra de
Pasolini traduz uma comovente simplicidade e, sobretudo, uma intenção precisa
de retratar o caminho de Jesus sob o ponto de vista do evangelho de Mateus.
Distanciando-se claramente das imagens idealizadas de Jesus, presentes em obras
anteriores, Pasolini busca descrever um Jesus humano, profundamente humano,
dotado de paixão, doçura e serenidade, mas também de revolta e ira. Dirá
Pasolini que uma frase de Cristo que é chave para compreender seu filme é: “Não
vim trazer paz, mas espada” (Mt 10,34). Rompe-se com a imagem tradicional de um
Jesus Cristo star, dos cabelos longos e loiros, que tangencia a história no seu
esplendor extra-humano. Para o papel do personagem, escolheu um catalão,
Enrique Irazoqui, que quebra nitidamente a dinâmica iconográfrica estabelecida.
Sua figura impressiona, apresentando-nos um Jesus magro, rude, de ombros
recurvados, fartas sobrancelhas pretas, pele bem morena e cabelos curtos. Um
Jesus, cujo olhar profundo permanece vivo na lembrança dos que assistiram ao
filme.
O toque da fotografia, dos cenários mínimos e enquadramentos simples,
com muitas filmagens em primeiro plano, contribuem para marcar essa presença
viva e profética de um Jesus derradeiramente humano. Esse artista espanhol que
interpretou Jesus tinha inaugurado com o filme o seu trabalho de representação,
assim como todo o elenco, composto por pessoas do povo. Sem uma preocupação
muito incisiva de “reconstituição histórica”, Pasolini optou por deixar falar
as imagens, com os personagens comuns, “protegidos pela neutralidade”,
portadores de uma naturalidade comovente, favorecendo ao espectador sensações
novidadeiras e emoções genuínas. Impressiona também a figura singular de Maria,
de olhar terno e sereno, e com sua bela imagem o filme se inicia.
Contagiante o
seu olhar de acolhida e aconchego. Para representar a personagem, em seus dois
tempos, Pasolini convidou Marguerita Carusa (para a jovem Maria) e Susana
Pasolini (mãe do diretor – que representou Maria aos pés da Cruz). A jovem e
rural Maria, de Pasolini, é bem diferente da moderna Maria de Godard, uma
mulher da cidade, filha de um frentista e jogadora de basquete. Contribui
igualmente para aclimatar a história, uma trilha sonora solene, com peças de
Bach, Mozart, Prokofiev e Webern.
Trata-se de um Jesus que vive e participa das tramas de
nossa “aldeia” humana, e que enquanto demasiadamente humano traduz para nós as
marcas do divino. E Pasolini quis apresentar esse Jesus, passo a passo,
acompanhando de perto sua jornada pessoal, sob a guia do olhar de Mateus. O
diretor preferiu não usar roteiro, optando por seguir a descrição de Mateus,
página por página. Privilegia os grandes discursos de Jesus, que é um traço
peculiar do evangelista, e em particular o Sermão da Montanha, que é a
“composição mais grandiosa de Mateus” (R. Brown), visando apresentar o
ensinamento ético e religioso do grande profeta de Nazaré. Um dos bons momentos
do filme, emocionante, ocorre justamente na passagem das Bem Aventuranças, com
o enquadramento do rosto de Jesus em primeiro plano. Quando há distanciamento
do texto literário de Mateus é para poder acentuar ainda mais o lado humano dos
personagens, o conflito de cada um, como no caso do acréscimo dos dramas
humanos de André e Maria. Diferentemente do filme de Mel Gibson sobre Jesus – rodado quarenta anos depois,
nas mesmas locações – onde todo o acento vem dado no sofrimento de Jesus, a
obra de Pasolini privilegia seus ensinamentos, o poder de suas palavras. Não se
apaga ou nega a dor de Jesus, o sofrimento de sua paixão, mas esse processo vem
descrito sem tanto sangue, mas guardando integralmente sua realidade e crueza.
Faustino Teixeira
Fonte: Ihu
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