sexta-feira, 29 de março de 2013

Dicas de cinema para Semana Santa (II) :O Evangelho Segundo São Mateus de Pasolini



O filme é de uma simplicidade comovente. É feito como se um documentarista acompanhasse Jesus, desde o nascimento até sua morte, tendo em mãos apenas uma máquina filmadora.

Fiel ao traço do neorrealismo italiano, essa obra de Pasolini traduz uma comovente simplicidade e, sobretudo, uma intenção precisa de retratar o caminho de Jesus sob o ponto de vista do evangelho de Mateus. Distanciando-se claramente das imagens idealizadas de Jesus, presentes em obras anteriores, Pasolini busca descrever um Jesus humano, profundamente humano, dotado de paixão, doçura e serenidade, mas também de revolta e ira. Dirá Pasolini que uma frase de Cristo que é chave para compreender seu filme é: “Não vim trazer paz, mas espada” (Mt 10,34). Rompe-se com a imagem tradicional de um Jesus Cristo star, dos cabelos longos e loiros, que tangencia a história no seu esplendor extra-humano. Para o papel do personagem, escolheu um catalão, Enrique Irazoqui, que quebra nitidamente a dinâmica iconográfrica estabelecida. Sua figura impressiona, apresentando-nos um Jesus magro, rude, de ombros recurvados, fartas sobrancelhas pretas, pele bem morena e cabelos curtos. Um Jesus, cujo olhar profundo permanece vivo na lembrança dos que assistiram ao filme. 

O toque da fotografia, dos cenários mínimos e enquadramentos simples, com muitas filmagens em primeiro plano, contribuem para marcar essa presença viva e profética de um Jesus derradeiramente humano. Esse artista espanhol que interpretou Jesus tinha inaugurado com o filme o seu trabalho de representação, assim como todo o elenco, composto por pessoas do povo. Sem uma preocupação muito incisiva de “reconstituição histórica”, Pasolini optou por deixar falar as imagens, com os personagens comuns, “protegidos pela neutralidade”, portadores de uma naturalidade comovente, favorecendo ao espectador sensações novidadeiras e emoções genuínas. Impressiona também a figura singular de Maria, de olhar terno e sereno, e com sua bela imagem o filme se inicia. 

Contagiante o seu olhar de acolhida e aconchego. Para representar a personagem, em seus dois tempos, Pasolini convidou Marguerita Carusa (para a jovem Maria) e Susana Pasolini (mãe do diretor – que representou Maria aos pés da Cruz). A jovem e rural Maria, de Pasolini, é bem diferente da moderna Maria de Godard, uma mulher da cidade, filha de um frentista e jogadora de basquete. Contribui igualmente para aclimatar a história, uma trilha sonora solene, com peças de Bach, Mozart, Prokofiev e Webern.


Trata-se de um Jesus que vive e participa das tramas de nossa “aldeia” humana, e que enquanto demasiadamente humano traduz para nós as marcas do divino. E Pasolini quis apresentar esse Jesus, passo a passo, acompanhando de perto sua jornada pessoal, sob a guia do olhar de Mateus. O diretor preferiu não usar roteiro, optando por seguir a descrição de Mateus, página por página. Privilegia os grandes discursos de Jesus, que é um traço peculiar do evangelista, e em particular o Sermão da Montanha, que é a “composição mais grandiosa de Mateus” (R. Brown), visando apresentar o ensinamento ético e religioso do grande profeta de Nazaré. Um dos bons momentos do filme, emocionante, ocorre justamente na passagem das Bem Aventuranças, com o enquadramento do rosto de Jesus em primeiro plano. Quando há distanciamento do texto literário de Mateus é para poder acentuar ainda mais o lado humano dos personagens, o conflito de cada um, como no caso do acréscimo dos dramas humanos de André e Maria. Diferentemente do filme de Mel Gibson  sobre Jesus – rodado quarenta anos depois, nas mesmas locações – onde todo o acento vem dado no sofrimento de Jesus, a obra de Pasolini privilegia seus ensinamentos, o poder de suas palavras. Não se apaga ou nega a dor de Jesus, o sofrimento de sua paixão, mas esse processo vem descrito sem tanto sangue, mas guardando integralmente sua realidade e crueza.
Faustino Teixeira
Fonte: Ihu

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