“O direito fundamental do acesso à justiça está distante das
pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e injustiçada”, dizem as advogadas
do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de
Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH.
Ao contrário do que se possa imaginar, a população de rua
“não é composta por mendigos e pedintes”, esclarecem Luana Ferreira Lima e
Maria do Rosário de Oliveira Carneiro à IHU On-Line. Os moradores de rua são
“trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, trabalhadores sazonais
(migrantes e trecheiros), famílias que perderam a moradia, vítimas de
vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental, drogadição e uso abusivo
de álcool e outras drogas”, informam em entrevista concedida por e-mail.
Na avaliação delas, a realidade das pessoas em situação de
rua é resultado de “fenômenos complexos com origem, sobretudo, no processo
histórico de exclusão social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo
e que se perpetua com os modelos de desenvolvimento econômico atuais”.
Apesar de a Política Nacional da População em Situação de
Rua ter sido instituída pelo governo federal há quatro anos, as advogadas
informam que “boa parte dos municípios brasileiros ainda não a implementou”. E
concluem: “Os governos precisam compreender que a saída das ruas começa com o
estabelecimento de políticas estruturantes que garantam a saída das ruas de
maneira digna, com a garantida de acesso a direitos fundamentais como moradia,
saúde, educação, cultura, entre outros”.
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
são advogadas do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em
Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável – CNDDH, um projeto da
Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República em parceria
com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, com o Ministério
Público do Estado de Minas Gerais. Além disso, tem parceria com o Movimentos
Nacional de População em Situação de Rua – MNPR e com o Movimento Nacional de
Catadores de Material Reciclável – MNCR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – É possível traçar um perfil de quem são os
moradores de rua?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– A população em situação de rua (ou simplesmente PSR) pertence a um grupo
extremamente heterogêneo. Entretanto, tem como característica a pobreza extrema
e o “despertencimento” à sociedade formal. Situados à margem da sociedade, são
vítimas de descaso, discriminação, preconceito e desprezo que resultam, em
muitos casos, em ações violentas de agressão e mesmo homicídios. Além disso, o
desconhecimento sobre a situação das pessoas em situação de rua contribui para
a formação de um conceito equivocado que criminaliza pessoas em razão de sua
condição social. Verificamos a invisibilidade social e, na perspectiva do
direito, a ausência de políticas públicas estruturantes e emancipatórias.
IHU On-Line – Quando se trata de populações em situação de
rua no Brasil, que
diagnóstico pode ser feito? É possível estimar quantas
pessoas vivem na
rua?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– A pesquisa publicada em abril de 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento e
Combate à Fome – MDS aponta um perfil. A maioria das pessoas em situação de rua
é do sexo masculino (82%) e jovem, entre 25 e 44 anos, de cor declarada parda
ou preta, sendo composta por trabalhadores excluídos do mercado de trabalho,
trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perderam a
moradia, vítimas de vulnerabilidade social, pessoas com sofrimento mental,
drogadição e uso abusivo de álcool e outras drogas. O desemprego aparece em 30%
das citações, e os conflitos familiares, com 29%, compõem o quadro de razões
que os levam a viver nas ruas. Dos entrevistados, 88,5% não têm acesso a
programas governamentais, como aposentadoria, Bolsa Família, Benefício de
Prestação Continuada, cesta básica, vale transporte ou outro. Sobre a questão
do trabalho, a partir da pesquisa podemos concluir que a maior parte das
pessoas em situação de rua possui uma ocupação ou um trabalho, 72% afirmam que
exercem alguma atividade remunerada, a maior parcela (28%) é catadora de
materiais recicláveis. A atuação como flanelinha (guardadores de carro),
carregador, na construção civil e no setor de limpeza são outros tipos de
trabalho mais citados. Os dados revelam que a população de rua não é composta
por mendigos e pedintes.
Com relação às pessoas em situação de rua no Brasil, é
difícil apontar um número. Vítimas da invisibilidade, eles ainda não foram
contados em nenhum Censo. Segundo a pesquisa do MDS feita em 71 municípios com
mais de 300 mil habitantes, destacamos que não foram contabilizadas as capitais
de São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Porto alegre, foi identificada a
presença de 31.922 pessoas adultas em situação de rua, mas o Movimento Nacional
da PSR estima um número em torno de 150 mil pessoas em situação de rua no
Brasil. É preciso destacar a Portaria n. 824 de 2012, da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos, que institui o Grupo de Trabalho para Pesquisa/Censo – IBGE,
com fins de incluir a PSR na contagem do próximo Censo, o que pode constituir
um avanço ao acesso de direitos.
IHU On-Line – A situação dos moradores de rua é um reflexo
de quais circunstâncias?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– Compreendemos que a realidade das pessoas em situação de rua é resultado de
fenômenos complexos com origem, sobretudo no processo histórico de exclusão
social, deslanchando com o desenvolvimento do capitalismo e que se perpetua com
os modelos atuais de desenvolvimento econômico. Na contemporaneidade, a
utilização dos logradouros e espaços públicos como moradia se desencadeia em
decorrência de vários fatores: ausência de vínculos familiares, desemprego,
violência, perda da autoestima, alcoolismo, uso de drogas, doenças mentais e
falta de acesso à moradia convencional e regular, entre outros.
IHU On-Line – Em 2012, os dados apontavam Belo Horizonte
como a capital líder em
assassinatos de moradores de rua. O que mudou neste último
ano?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– De fato, o número de homicídios em Belo Horizonte é alarmante. De fevereiro
de 2011 a março de 2013 já ocorreram 85 homicídios e 21 tentativas de
homicídios na capital mineira. O CNDDH trabalha com um banco de dados próprio.
Recebe denúncias de forma direta (as pessoas vêm ao CNDDH), mas também recebe
denúncias de outras fontes como a mídia, movimentos populares e cidadãos/ãs
sensíveis ao tema. Em Belo Horizonte outra fonte de recebimento de denúncias de
homicídios é a Polícia Civil, departamento de homicídios. Talvez este seja o
motivo pelo qual o número em Belo Horizonte se apresente de maneira mais
acentuada. Também, como a sede do CNDDH está em Belo Horizonte chegam mais dados.
Importante destacar que não podemos fazer comparações entre os estados pelos
motivos acima citados, mas exclamamos nosso profundo repúdio ao alto índice de
violência contra a população em situação de rua em Belo Horizonte, assim como
em todo o Brasil.
IHU On-Line – Com frequência são denunciados casos de
violência contra moradores de
rua em todo o país. Como compreender essas agressões?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– Nos dados do CNDDH a violência física está em primeiro lugar (com os
homicídios, as tentativas de homicídios e lesão corporal) e, em segundo lugar,
vem a violência institucional, que corresponde à violência policial ou
praticada por instituições de segurança, o abuso de autoridade, a demora
excessiva ou desídia no atendimento, a ausência de acesso aos serviços
públicos, prisão ilegal, homofobia institucional e omissão ou ineficácia das
políticas públicas. A ausência de políticas que garantam direitos fundamentais
sociais a essa população na maioria dos casos contribuem para o aumento da
violência. Boa parte dos municípios brasileiros ainda não implementou a
política para a População em Situação de Rua instituída pelo governo federal
por meio do Decreto n. 7.053/09. Em alguns municípios, mesmo naqueles que instituíram
a política, os serviços para a PSR são insuficientes ou ineficazes. Direitos
como os de moradia, saúde, acesso à justiça, educação, apoio familiar, ainda
lhes são extremamente negados e, em muitos casos, os equipamentos como
albergues e repúblicas estão fora da tipificação do Sistema Único de
Assistência Social – SUAS. Vemos abrigos, albergues e repúblicas com
superlotações e com metodologias que dificultam a socialização e a organização
para a saída das ruas, o que precisa urgentemente ser repensado.
IHU On-Line – Quais são as outras políticas públicas
existentes para a população em
situação de rua?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– Como dito acima, existe a Política Nacional da População em Situação de Rua,
instituída pelo governo federal por meio do Decreto no. 7.053/09. Partindo da
Política Nacional, os estados e municípios devem instituir a política local, o
que ainda anda de maneira muito vagarosa. A Política Nacional, em seu Art. 7º,
dentre outros objetivos, garante os seguintes:
• Assegurar o
acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as
políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social,
moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda.
• Implantar centros
de defesa dos direitos humanos para a população em situação de rua.
• Criar meios de
articulação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único de
Saúde para qualificar a oferta de serviços.
• Implementar ações
de segurança alimentar e nutricional suficientes para proporcionar acesso
permanente à alimentação pela população em situação de rua, alimentação com
qualidade.
O CNDDH é um dos objetivos da Política Nacional da PSR:
“implantar centros de defesa dos direitos humanos para a população em situação
de rua”. Com a especificidade dessa população, sobretudo a ausência de endereço
residencial, muitas vezes se torna difícil o acesso à justiça. O CNDDH, com o
objetivo de combater a violência contra esta população e garantir-lhe o acesso
à justiça, trabalha articulado com as Defensorias Públicas, o Ministério
Público e demais espaços de defesas de direitos e redes de proteção social,
diminuindo as distâncias e facilitando a participação nos processos judiciais e
administrativos em que a PSR figura como parte.
No que se refere à segurança alimentar, outro objetivo da
Política Nacional e um direito assegurado pela Lei Federal n. 11.346/2006,
convém salientar que em Belo Horizonte o Movimento da PSR conquistou da
prefeitura municipal as refeições gratuitas nos restaurantes populares de
segunda a sexta feira. Contudo, embora haja previsão na legislação municipal,
as refeições não são oferecidas nos finais de semana e feriados, o que tem sido
uma das pautas de reivindicações da PSR em Belo Horizonte. Não temos notícias
de que outros municípios brasileiros assegurem a alimentação à PSR na
modalidade de Belo Horizonte. Entendemos ser esta uma política elementar e
fundamental, devendo ser instituída por todos os municípios brasileiros nos
termos da legislação federal.
Pode-se afirmar que a violência física, como os homicídios e
as tentativas, em tese, é a culminância dos diversos tipos de violências
praticadas contra esta população, sobretudo a violência institucional como a
omissão e ineficácia de políticas públicas que asseguram direitos fundamentais.
IHU On-Line – Muitas denúncias fazem referência a políticas
de caráter higienistas, com retirada forçada de pessoas e pertences pessoais.
Vocês têm recebido este tipo de denúncia no CNDDH?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– Sim. São muitas as denúncias deste tipo. Sobretudo com a aproximação da Copa
das Confederações e da Copa do Mundo, esta última que acontecerá em 2014. São
muitas as ações dos poderes executivos municipais, com apoio de policiais
militares, em vários municípios brasileiros, de retirada forçada das pessoas
das ruas, sobretudo dos centros das cidades. Em muitos casos, nestas retiradas
levam os pertences pessoais, como documentos, remédios, roupas, cobertores etc.
O que em certos casos pode até se caracterizar como um crime de roubo,
considerando a violência e a grave ameaça. Em Belo Horizonte, existe uma
decisão judicial em uma Ação Popular, do Tribunal de Justiça de Minas Gerias,
impedindo este tipo de ação. Apesar disto, o CNDDH continua recebendo denúncias
oferecidas por pessoas que tiveram seus pertences recolhidos pela prefeitura
municipal, com apoio de policiais militares.
IHU On-Line – Como vocês veem as atuais medidas de
intervenção dos governos para a retirada das pessoas das ruas e a política
sobre drogas?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– Usuários de drogas são objetos de práticas higienistas e de segregação em
vários estados. Essas ações atingem sobretudo pessoas que se encontram em
situação de vulnerabilidade, como a população em situação de rua. A retirada forçada
das ruas e a aplicação de medidas de tratamento e internação involuntários, sem
o consentimento do usuário, sem metodologia clara e que contrariam avanços
estabelecidos desde a luta antimanicomial, da reforma psiquiátrica e do Sistema
Único de Saúde – SUS são um atentado aos direitos dos cidadãos. A questão da
droga e da drogadição é complexa e exige do poder público e da sociedade
grandes esforços para a compreensão do tema e, principalmente, na garantia da
dignidade humana e na defesa da cidadania. A proximidade de grandes eventos no
país expõe a PSR a soluções simplistas dos governos que violam direitos, a
liberdade e a cidadania das pessoas. O CNDDH tem tratado do tema com diversos
parceiros como o Ministério Público, Defensorias Públicas, conselhos e
entidades ligadas ao tema e concluímos que os governos precisam compreender que
a saída das ruas começa com o estabelecimento de políticas estruturantes que
garantam a saída das ruas de maneira digna, com a garantida de acesso a
direitos fundamentais como moradia, saúde, educação, cultura, entre outros.
Além disso, é preciso ressaltar que o uso das drogas para a PSR é apenas um
sintoma de todo o estado de violações já sofrido por essa população.
IHU On-Line – Algo a acrescentar?
Luana Ferreira Lima e Maria do Rosário de Oliveira Carneiro
– Nestes dois anos de trabalho no CNDDH, como advogadas da População em
Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis, temos aprendido muito
e enfrentado diversos desafios. Experimentamos como o direito fundamental do
acesso à justiça está distante das pessoas vulneráveis, da classe empobrecida e
injustiçada. Nossa luta é por justiça social com equidade. Para isso, faz-se
urgente superar preconceitos e reinterpretar o direito à luz da dignidade da
pessoa humana.
Fonte: Ihu
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