Para captar o íntimo dos lares divididos por domésticas e famílias, o cineasta Gabriel Mascaro concebeu o documentário “Doméstica”. A partir dos olhares de sete jovens, que filmaram o trabalho das domésticas em suas casas, o filme se desenrola, trazendo também para o diálogo a perspectiva do diretor.
O documentário estreia no 45º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro, em meio à tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Doméstico, na Câmara dos Deputados. A proposta inclui 16 direitos para as domésticas, que possuem apenas nove dos 34 direitos trabalhistas.
O diretor Gabriel Mascaro conta, em entrevista à
Radioagência NP, que o filme busca, através da singularidade de cada relação,
dar visibilidade ao tema. Para ele, “convivemos ainda com uma situação de um
eco escravocrata no Brasil”. Mascaro espera que o documentário possa contribuir
no debate e aprovação de mais direitos às trabalhadoras domésticas.
Radioagência NP: Gabriel, vamos começar com uma apresentação
do documentário “Doméstica”.
Gabriel Mascaro: O documentário “Doméstica” é um filme sobre
a relação de afeto-trabalho no ambiente familiar no Brasil. Nós escolhemos sete
personagens para participar dessa missão. Seriam sete jovens que filmariam as
empregadas domésticas deles e entregariam esse material bruto para nós fazermos
um filme com essas imagens.
Radioagência NP: Como
foi o seu processo enquanto diretor de tentar aplicar um pouco do seu olhar
sobre esse processo?
GM: Todo o processo de receber essas imagens gerava em nós
uma expectativa muito grande. Nós ficávamos sempre curiosos para saber o que
estava sendo filmado, como estavam ocorrendo as filmagens, como os jovens
estavam conseguindo construir um olhar sobre as empregadas. E nós, como
construiríamos um olhar nosso sobre esse material novo que fosse chegando.
Então, na verdade, o filme é um grande conjunto de partilhas, que, no final,
nós conseguimos criar um documentário que dialoga, que se conecta, mas que
também constroi uma visão particular, minha também, sobre esse tema ao elencar
essas histórias em conjunto. Mais do que aquela ideia de dirigir um filme, ir
lá, filmar, criar uma história, para contar uma história; neste caso, é como se
fosse agenciar esses pequenos encontros que foram surgindo. Desde encontros
entre os jovens e as empregadas, desde a equipe [de produção] com os jovens, da
minha equipe comigo, a partir desses pequenos pedaços nós fomos construindo o
que viria a ser o filme como um todo.
Radioagência NP: Como surgiu a ideia para esse filme?
GM: Eu tinha muita curiosidade em acessar esse universo das
empregadas domésticas e essa relação confusa que é na juventude, na
pós-adolescência, esse contato com a empregada doméstica no ambiente familiar.
Sei que é muito forte essa relação que existe entre jovens e as empregadas,
desde confidência, desde tensão, ou desde descoberta sexual, passando por
várias questões. Desde àquela pessoa que é cúmplice, parceira, amiga; é também
mãe, uma segunda mãe. É tudo muito confuso nos sentimentos. Então, é um filme
que tem como premissa entrar nessa complexidade que são os sentimentos da
juventude em relação às empregadas.
GM: São cinco cidades brasileiras: São Paulo (SP), Rio de
Janeiro (RJ), Recife (PE), Manaus (AM) e Salvador (BA).
Radioagência NP: E você sente que existe uma diferença no
tratamento ou no pensamento de acordo com cada cidade?
GM: A diferença que para mim apareceu não é por cidade. Cada
ambiente doméstico, cada casa constroi uma relação diferente. Toda relação é
muito singular, não dá para generalizar uma relação pensando a partir do
contexto de cidades. Claro que algumas cidades se relacionam historicamente,
algo muito mais preciso pela relação do passado da região, a relação com as
famílias tradicionais, com os engenhos. O que dá para perceber no filme como um
todo, mais do que criar uma generalização do que são as relações, é perceber
como é específica e singular, cada encontro, cada relação entre empregado e
esses jovens nos ambientes das casas em que eles residem, convivem, que
negociam esse espaço diariamente.
Radioagência NP: Essa relação entre trabalhadoras e
trabalhadores domésticos refletem ainda muito dessa cultura racista, machista e
classista?
GM: Eu acho que o filme tenta trabalhar a camada de adentrar
um pouco mais do que a gente está acostumado a ver nos telejornais, nas
novelas, nos noticiários ou até no senso comum, do que a gente entende, já é
claro, sobre as dificuldades das relações trabalhistas que as empregadas
enfrentam. Só que no filme a gente tenta adentrar um pouco mais nessa
complexidade que é o sentimento que é negociado, partilhado, nas casas das
famílias onde as empregadas convivem, criam relações profissionais e
sentimentais naquele ambiente. Então, é uma relação muito complexa. Nós
tentamos, se não dar conta, nos aproximar da complexidade que o tema exige.
Radioagência NP: O documentário estreia em meio à tramitação
da PEC [Proposta de Emenda à Constituição] do Trabalho Doméstico no Congresso.
Qual você considera a importância desse diálogo entre a arte, no seu caso o
cinema, com questões sociais e políticas?
GM: Para mim é muito bacana, porque é muito bom imaginar que
esse filme possa colaborar de alguma forma com essa adesão do Brasil a uma
convenção internacional, que o Brasil não assinou, que é o acordo da OIT
[Organização Internacional do Trabalho]. Países como a Filipinas e o Uruguai já
assinaram essa Convenção Internacional do Trabalho que prevê a inclusão de mais
direitos, direitos básicos das empregadas domésticas que ainda não são
previstos na Constituição brasileira, que sejam inclusos. Espero que o filme
provoque e dê complexidade ao debate que o tema exige para que isso seja
resolvido e compensado o mais rápido possível. Porque nós estamos convivendo
ainda com uma situação no Brasil de um eco escravocrata muito presente, que
está fazendo parte do nosso cotidiano e nós não estamos, aparentemente,
atentando para isso. 15% das empregadas domésticas do mundo inteiro estão no
Brasil, segundo dados do Ministério do Trabalho. Então, é uma situação em que o
Brasil é uma figura-chave das questões que envolvem as empregadas domésticas.
Espero que o filme ecoe esse debate e presentifique esse tema, que é tão
importante e está presente no cotidiano da gente.
Radioagência NP: E nas suas demais obras e projetos, há esse
olhar crítico, político, há esse engajamento que você propõe nesse filme sobre
as domésticas?
GM: Eu sempre procuro nos meus trabalhos, um tema que me
toca muito é negociar o espaço, negociar a presença nesse espaço. Por exemplo,
essas negociações passam por questionamentos. E pensar esse espaço através do
lar familiar nesse filme “Doméstica”, onde se consegue adentrar nessa camada do
cotidiano, pensando a instituição da empregada doméstica, é muito forte. E,
também atualiza meu trabalho, que já teve outro documentário [“Um Lugar Ao
Sol”, de 2009] em que eu entrevistei pessoas que moravam em coberturas de
prédios, colocando também essa negociação do espaço do ponto de vista das
edificações. Era um documentário que abordava uma elite brasileira que morava
na cobertura de prédios.
Radioagência NP: O documentário estreia no Festival de
Cinema de Brasília, e depois ele acaba percorrendo outros festivais? Como está
essa agenda? E o público que quiser assistir ao documentário, como pode ter
acesso?
GM: O filme estreia no Festival de Brasília e nós estamos
esperando, a partir da repercussão que tiver em Brasília, conseguir fazer uma première
internacional. Tentar colocar o filme, ser selecionado para um grande festival
internacional. Na sequência, começar a pensar nas possibilidades do filme
entrar em cartaz e lançar em DVD. Nós que fazemos filme, queremos que ele seja
visto mesmo, então nós estamos bem ansiosos para que esse tempo de festivais
passe, para que ele chegue realmente ao público. E que o público consumidor
possa ter acesso a esse filme da forma mais fácil possível.
Fonte: Brasil de Fato
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