Na ponta desse negócio estão o aliciador e o aliciado. O primeiro sabe que suas promessas e o mundo de oportunidades que apresenta não são reais, pior ainda, sabe que a vida daquele que ele ou ela tenta convencer nunca mais será a mesma se a ‘transação’ se concretizar. De fato o destino daquela criança, homem, mulher ou travesti quase nada significam, pois se trata apenas de um comércio regido pelas inflexíveis regras da oferta e da procura. Pouco lhe importa que isso seja tráfico de pessoas!
O tráfico de pessoas é semelhante a uma teia/rede, composta
for uma infinidade de fios que se cruzam e se entrelaçam. Em cada um deles está
uma pessoa, que tem uma história, um lugar de onde partiu e que agora vive
marcada por uma trama muito maior do que tudo o que tenha sonhado ou desejado.
No tênue fio de um menino nascido no interior do Norte do
Brasil há uma infância marcada por tantas dificuldades que é difícil dizer por
qual razão o sonho de mudar a realidade foi crescendo, até se tornar um desejo
de sair daquele lugar, de arriscar tudo por algo melhor. Uma de suas poucas
alegrias era o futebol, onde o giro da bola, o drible e a magia do gol, faziam
sorrir e pensar que viver valia a pena.
Noutro fio, tão tênue quanto o primeiro está uma jovem
mulher, bonita e pobre ou como algumas vezes gostam de dizer, "com poucos
recursos”. À sua volta a realidade é de privação, senão da comida ou do
conforto, mas ainda assim, ausência de um futuro em que ela se veja feliz. Ela
teima em querer e buscar o que deveria ter por direito ou por muito desejar.
O fio de um homem adulto que vê a seu redor uma situação que
lhe causa dor e sofrimento. Forte para trabalhar, mas sem emprego ou sem a possibilidade
de viver dignamente com aquilo que lhe oferecem. O pouco estudo não o intimida
e está disposto a arriscar o que for necessário para melhorar de vida.
Outro fio, tecido num corpo que foi sendo modificado e agora
já é difícil afirmar se é ele ou ela, também habitam sonhos e desejos de uma
vida melhor, ainda que isso signifique uma quantidade a mais de sacrifício
pessoal e distanciamento de sua terra.
Em cada um desses fios e nos tantos outros que fazem a
teia/rede dos que buscam, querem ou são levados a acreditar que fora de sua
terra, seja em outra região do país, seja em outro lugar do mundo estão as
respostas que procuram, Eles não percebem, mas para olhos cobiçosos, eles são
mercadoria humana, de um dos negócios mais lucrativos que existe e que
curiosamente poucas vezes dá errado, e resulta em criminalização e efetiva
punição.
Na ponta desse negócio estão o aliciador e o aliciado. O
primeiro sabe que suas promessas e o mundo de oportunidades que apresenta não
são reais, pior ainda, sabe que a vida daquele que ele ou ela tenta convencer
nunca mais será a mesma se a ‘transação’ se concretizar. De fato o destino
daquela criança, homem, mulher ou travesti quase nada significam, pois se trata
apenas de um comércio regido pelas inflexíveis regras da oferta e da procura.
Pouco lhe importa que isso seja tráfico de pessoas!
Para o ou a aliciada a realidade é totalmente outra, pois é
a perspectiva de finalmente ter uma oportunidade que ocupa seus pensamentos.
Ele ou ela não se ilude facilmente, pois nada na vida lhe chegou de modo fácil
ou sem esforço. Mas o que leva um e outra a seguir em frente é uma profunda
esperança, em alguns casos bem próxima ao desespero, de sair definitivamente de
tudo o que o/a oprime ou reduz. Seu horizonte é, portanto, muito maior do que a
realidade imediata oferece.
Os fios dessa teia/rede estão interligados entre si e também
com realidades que englobam a sociedade e até mesmo o conjunto dos países. O
tráfico humano não acontece apenas porque foram feitas escolhas erradas por
algumas pessoas, fossem quais fossem suas motivações; O tráfico também não é
fruto apenas da ganância de alguns em busca do lucro rápido e de uma ética em
que os fins justificam os meios. Há mais envolvidos nesse processo e, no
mínimo, isso significa a presença ou a ausência da sociedade e do estado.
A sociedade, isso é, os grupos humanos e instituições nos
quais estavam inseridos cada um dos fios/pessoas traficadas, tem a imensa
responsabilidade de cuidar dos seus, de ser uma presença integradora e ao mesmo
tempo estruturante das condições de vida. Quanto mais precária e distante dos
direitos fundamentais da pessoa humana, mais a realidade irá propiciar a
existência do tráfico e de pessoas que venham a ser traficadas. É evidente que
na sociedade brasileira predominam conflitos de interesse entre os grupos e
instituições (tal como ocorre de modo geral nas sociedades complexas), mas isso
não nos isenta de responsabilidades e do desafio de viabilizar uma vida social
em que todos tenham seus direitos assegurados e perspectivas de felicidade.
O estado brasileiro é fruto da cidadania de seu povo e deve
refletir em sua legislação e atuação dos órgãos públicos o pleno respeito à
ordem democrática e, portanto, aos direitos inalienáveis da pessoa humana e
suas instituições representativas. Suas políticas públicas devem assegurar o
atendimento das necessidades básicas de todos os que habitam no Brasil - e de
seus filhos e filhas que estão no exterior - e promover a superação de
desigualdades, bem como disponibilizar oportunidades, para todos, de caminhos
adequados à realização de suas potencialidades humanas. Combater o tráfico de
pessoas e todas as outras formas de violência contra os direitos humanos e
ilicitudes é tarefa do Estado e precisa ser implementada a partir de políticas
claramente definidas em conformidade com a realidade atual.
Celebrar o Dia Internacional do Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas (23/09) é sem dúvida afirmar a urgência de mudanças estruturais no que
tange ao desenvolvimento e à distribuição da riqueza. É superar exclusões e
assegurar uma vida com dignidade e possibilidade de sua plena realização. Nesta
direção estão algumas iniciativas e alguns desafios:
a)Promulgar e implementar o II Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas;
b) Estruturar em cada
unidade da Federação Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas;
c) Dar continuidade a
instalação de Comitês de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, criando inclusive
um Comitê Nacional, reforçando a presença da sociedade civil organizada.
d) Construir um
arcabouço normativo/legal que possibilite a efetiva criminalização dos agentes
e demais pessoas envolvidas no Tráfico de Pessoas.
e) Ampliar e/ou
viabilizar iniciativas advindas da sociedade civil no campo da prevenção e da
assistência às vítimas do tráfico de pessoas.
f) Viabilizar
processos de plena integração social às vítimas do tráfico de pessoas, evitando
todo e qualquer processo de revitimização.
Fonte: Adital (William César de Andrade/Membro do Grupo de
apoio ao Setor Mobilidade Humana da CNBB e consultor do Instituo Migrações e
Direitos Humanos (IMDH))
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