Segundo pesquisas do governo federal, nós temos mais de 300 rotas de tráfico de pessoas dentro do Brasil. A maioria sai de lugares muito pobres, em situação de vulnerabilidade social, principalmente do Nordeste. Grande parte são mulheres de descendência negra e pobre. Elas são enviadas para o exterior. Mas nós também enfrentamos a questão do trabalho escravo dentro do país. Uma menina pobre, lá do interior de Minas Gerais, vira empregada doméstica em São Paulo para uma família rica. Isso é aceitável dentro do nosso país.
Entrevista especial com Beatriz Duarte Gomes
Atenta a todas as conferências que discutiam a relação entre
biopoder, biopolítica e vida humana, durante o XI Simpósio Internacional IHU: o
(des)governo biopolítico da vida humana, Beatriz Duarte Gomes buscava
relacionar os temas com o seu trabalho. Ela faz parte da rede social Um grito
pela vida que luta contra o tráfico de pessoas no Brasil e no mundo. Em meio ao
evento, a IHU On-Line entrevistou, pessoalmente, a religiosa para entender como
funciona esse projeto e quais os caminhos do tráfico no país. “Sibilia [1]
falava sobre o capitalismo cognitivo e como vamos entender nossos corpos em
alguns anos. E eu pensava que vamos chegar a ponto em que não vão mais se
vender corpos e sim os cérebros. Haverá um tráfico de pessoas que tem uma certa
inteligência, que possuem aptidão”, previu.
Na entrevista a
seguir ela fala sobre como funciona o trabalho na luta contra o tráfico de
pessoas e revela porque as mulheres são as maiores vítimas desse crime."A
mulher é uma mão de obra barata, inclusive quando ela é uma escrava
sexual", apontou.
A Irmã Beatriz Duarte
Gomes é assessora executiva da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB).
Confira a entrevista.
IHU On-line - Como é
o trabalho com os que sofrem a questão do tráfico de pessoas?
Beatriz Gomes – É um trabalho em rede. A nossa rede tem
muitos focos de ação. Ela se chama “Um grito pela vida”, e tem quatro anos.
Temos trabalhado, principalmente, com as mulheres, que são as maiores vítimas
do tráfico de pessoas. Um dos nossos trabalhos mais fortes é para fazer com que
esse crime seja conhecido pelas pessoas, principalmente nos meios populares.
Nós somos um grupo de religiosas que segue trabalhando diretamente nas
comunidades onde isso existe. Uma das coisas que está por trás desse trabalho
contra o tráfico de pessoas é a defesa da mulher, pois 80% das pessoas
traficadas são mulheres, a maioria bem pobre, que mora em lugares bem
distantes, exatamente onde estão nossas religiosas.
IHU On-line – Para que fins se traficam mulheres?
Beatriz Gomes – O tráfico de pessoas tem várias causas, mas
todas elas estão conectadas. Problemáticas como a social, a miséria, pobreza, a
falta de emprego, a falta de qualificação profissional, falta de perspectiva e
a falta de políticas públicas estão ligadas à questão da discriminação do
gênero. Diante desta questão da violência contra a mulher surge a questão da
“coisificação” das pessoas. Entrando por este lado, a mulher se torna objeto,
como a empregada doméstica que mora na casa da família, tornando-se escrava. A
mulher é o foco por causa desta situação social em que vivemos. E isso não é
uma situação que ocorre somente no Brasil. A mulher é uma mão de obra barata,
inclusive quando ela é uma escrava sexual.
IHU On-line – Aqui no Brasil, onde o problema é maior?
Beatriz Gomes – Segundo pesquisas do governo federal, nós
temos mais de 300 rotas de tráfico de pessoas dentro do Brasil. A maioria sai
de lugares muito pobres, em situação de vulnerabilidade social, principalmente
do Nordeste. Grande parte são mulheres de descendência negra e pobre. Elas são
enviadas para o exterior. Mas nós também enfrentamos a questão do trabalho
escravo dentro do país. Uma menina pobre, lá do interior de Minas Gerais, vira
empregada doméstica em São Paulo para uma família rica. Isso é aceitável dentro
do nosso país. Há quem diga: “Ah, mas ela não tem condições lá, é melhor ela
trabalhar aqui, a família dá tudo para ela, ela consegue estudar um pouco”.
Ninguém vê que isso é exploração, isso é tráfico? Essa menina nunca vai ter
condições de sair dali.
O tráfico é um crime, uma violação grave contra os direitos
humanos e está organizado em rede. Essa organização tem vários personagens e
papéis. Muitas vezes, o aliciador, aquela pessoa que faz o primeiro contato,
também era uma pessoa daquele meio pobre que, para ganhar um dinheiro, não
sofrer tanto, faz esse trabalho. Por isso, existe a dimensão da confiança,
porque você não confia em pessoas distantes, você confia se a pessoa é próxima,
por isso o aliciador tem este perfil, muitas vezes nasceu e cresceu junto com
as vítimas e entrou nesse "ramo" por necessidade também.
Existem outras situações, por exemplo: o aliciador pode agir
por trás de agências de emprego, principalmente de moda ou de turismo. Acontece
muito isso em São Paulo onde bolivianos vêm por agências para trabalhar em
fábricas têxteis na capital. Então, eles vêm para trabalhar, mas não imaginam
que irão ficar trancados, que irão ter uma dívida permanente e que o boliviano,
que era dono da agência, vendeu o trabalhador por 500 reais ou dólares.
IHU On-line – Quem está na ponta desta pirâmide?
Beatriz Gomes – É uma estrutura tão grande formada,
geralmente, por empresários, pessoas que possuem agências de namoro na
internet. Eles têm uma visão de que a pessoa é uma coisa. O maior pecado do
mundo é vender uma pessoa, uma criança, vender alguém que é um ser humano. Isso
tira totalmente a dignidade da pessoa.
IHU On-line – Neste Simpósio, Giuseppe Cocco [2], quando lia
o texto de Andréa Fumagalli [3], falava que nesta nova Era o trabalho é corpo e
o tempo de lazer e o tempo de trabalho já não são mais tão distintos. A ideia
de coisificação da pessoa pode estar ligada a esta nova Era?
Beatriz Gomes – Eu acredito que sim. Essa mercantilização é
algo tão absurdo. Enquanto Cocco falava, eu pensava que se nós hoje somos
capazes de ver o corpo como mercadoria, assim vemos o corpo do outro também.
Isso já acontece no tráfico, que põe no corpo um valor de venda. O aliciador
que vende uma mulher não tem sentimento. Para ele o que impera é o prazer.
Inclusive, para os aliciadores, essa mulher tem um tempo máximo de uso que,
geralmente, é de quatro anos. Porque ou ela arranja uma forma de fugir ou se
mata porque não aguenta mais aquela situação.
Sibilia falava sobre o capitalismo cognitivo e como vamos
entender nossos corpos em alguns anos, e eu pensava que vamos chegar num ponto
em que não vão mais se vender corpos e sim os cérebros. Haverá um tráfico de
pessoas que tem uma certa inteligência, que possuem aptidão. Se passarmos da
Era do corpo para a Era do cérebro, nós vamos chegar em algo absurdo.
Notas:
[1] Maria Paula Sibilia é professora da Universidade Federal
Fluminense (UFF). É graduada em Ciências da Comunicação e em Antropologia pela
Universidade de Buenos Aires. Obeteve o título de mestre em Comunicação pela
UFF. Realizou o doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Também fez doutorado em Saúde Coletiva na Universidade Estadual do Rio
de Janeiro. Durante o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico
da vida humana, conferiu a palestra Biotecnologias, ciências da vida e produção
de subjetividade na sociedade contemporânea
[2] Giuseppe Cocco é professor na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). É também editor das revistas Global Brasil, Lugar comum
e Multitudes (Paris). Coordena as coleções Espaços do Desenvolvimento (ed. DP
& A) e A Política no Império (Civilização Brasileira). É bacharel em
Ciências Políticas pela Universidade de Paris VIII e em Ciência Política pela
Universidade dos Estudos (Pádua, Itália). É mestre em Ciência, Tecnologia e
Sociedade pelo Conservatório Nacional das Artes e Ofícios. Também fez mestrado
e doutorado em História Social pela Universidade de Paris I
(Pantheon-Sorbonne). Junto com Antonio Negri escreveu Global: Biopoder e Lutas
em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005). Também é
autor de MundoBRaz: O Devir Brasil do Mundo e o Devir Mundo do Brasil (Rio de
Janeiro: Record, 2009). Durante o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo
biopolítico da vida humana, apresentou o minicurso Pensar a crise do capitalismo
Global na perspectiva do devir-Brasil do Mundo e fez a leitura do texto de
Andrea Fumagalli intitulado A financeirização como forma de biopoder.
[3] Andrea Fumagalli é professor da Faculdade de Economia da
Università degli Studi di Pavia (Itália). É bacharel em Disciplinas Econômicas
e Sociais pela Universidade L. Bocconi (Milão, Itália) e doutor em Pesquisa em
Economia Política (Milão, Itália). É autor de La Crisi Economica Globale
(Verona: Ombre corte, 2009), Bioeconomia e Capitalismo Cognitivo, Verso un
Nuovo Paradigma di Accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007) e Il Lavoro.
Nuovo e Vecchio Sfruttamento (Milano: Punto Rosso, 2006). Durante o XI Simpósio
Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, Giuseppe Cocco
leu o texto de sua conferência intitulado A financeirização como forma de
biopoder.
Fonte: Ihu
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