As mulheres são as maiores vítimas das guerras da água. Na Índia, se o custo de transportar água, que é de 150 mulheres/dia, fosse adicionado ao PIB, ele subiria 10 bilhões de rupias (US$ 180 milhões). Mas as mulheres não são apenas as transportadoras de água do mundo, são também o sustento das famílias. Água e alimento estão juntos desde sempre. As mulheres produzem mais da metade dos alimentos em oferta no mundo - na África, 80%. Seu papel como responsáveis por toda a cadeia alimentar contrasta de modo marcante com sua falta de direitos no que se refere à aquisição e propriedade da terra e acesso a empréstimos, sementes e assistência técnica.
1 bilhão não têm acesso à água, sequestrada pela
privatização, agricultura industrial e desperdício
A água é hoje objeto de guerras, algumas bem visíveis,
outras menos. Entre as menos visíveis estão os conflitos gerados pelo modelo
industrial de agronegócio. A agricultura industrial é sedenta e 70% da água do
planeta vão para irrigação intensiva.
A agricultura industrial utiliza dez vezes mais água na
produção de alimentos que a ecológica. Para isso, hidrelétricas são
construídas, rios desviados, pessoas deslocadas e água subterrânea, extraída.
Cada desvio de rota de um rio importante gera um conflito entre países e
regiões.
Nos anos 1970, o Banco Mundial (BM) forneceu enormes
empréstimos para a Índia fomentar a captação de águas subterrâneas. Isso
obrigou Estados como Maharashtra a abandonar plantações que demandam pouca água
- caso do milho, que precisa de apenas 250 mm do líquido - e se dedicar àquelas
que bebem muita água, como a cana-de-açúcar, que consome 2.500 mm. Numa região
com 600 mm de chuva, dos quais apenas 10% penetram no solo, essa é uma receita
para fome de água.
Um estudo realizado por Matthew Rodell, do Goddard Space
Flight Centre, da Nasa, em Maryland, publicado na revista Nature, mostra que os
níveis de água no norte da Índia, onde a revolução verde foi implementada,
caíram 4 cm centímetros por ano de 2002 a 2008. Mais de 109 km³ de água
subterrânea desapareceram.
Uma outra guerra da água é provocada pelas mudanças
climáticas, que vêm intensificando as secas, inundações e ciclones. O Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas avalia que o custo gerado para o
mundo é de US$ 80 bilhões por ano.
O desperdício de água pela agricultura industrial, química,
não só contribuiu para a escassez e poluição das águas, mas agravou a crise,
acelerando mudanças no clima. Como escrevi em meu livro Soil, not Oil, 40% de
todas as emissões de gases do efeito estufa provêm de uma agricultura e um
sistema alimentar industrializados, globalizados.
A mudança climática não é uma ameaça futura. Ela já vem
matando pessoas no sul da Ásia. Em 2010 testemunhamos os extremos e trágicos
impactos das mudanças do clima. Duas mil pessoas morreram no Paquistão em
consequência de inundações na bacia do Ganges. No deserto de Ladakh, Estado
indiano da Caxemira, chuvas e inundações arrastaram casas e mataram 200
pessoas.
As mudanças climáticas também provocaram um derretimento dos
glaciares do Himalaia. O glaciar Gangotri, fonte do Rio Ganges, tem recuado
entre 20 e 23 metros por ano.
A privatização da água é outra causa de guerras e conflitos
pelo líquido. Projetos de privatização são uma tramoia financeira e política
intermediada pelo BM, em que as concessionárias públicas e os cidadãos ficam
presos a um sistema em que a sociedade paga para uma empresa global tarifas
altíssimas pela água que nos pertence e é fornecida por meio das
concessionárias.
O BM tem papel importante nas guerras da água. Em primeiro
lugar, a instituição condiciona seus empréstimos à privatização. Em segundo,
reduz o acesso das concessionárias públicas e oferece acesso privilegiado à
indústria, como também fornecimento ininterrupto para áreas urbanas ricas. Terceiro,
está desviando a água subterrânea já escassa e limitada das zonas rurais para
as urbanas, subvertendo, portanto, as Metas de Desenvolvimento do Milênio, que
são reduzir pela metade o número de pessoas sem acesso sustentável à água
potável. Em quarto, o Banco Mundial força governos e concessionárias públicas a
aumentar as tarifas e transformar a água em commodity, prejudicando o direito
fundamental das pessoas à água como parte do seu direito à vida. Em quinto
lugar, como os projetos do Banco Mundial se baseiam no uso não sustentável da
água, eles estão malogrando, como ficou patente nos casos da usina de Sonia
Vihar, em Nova Délhi, e o projeto de Veeranam, em Tamil Nadu.
Os empréstimos do Banco Mundial não conseguem levar água às
populações, apenas garantem contratos e lucros para grandes empresas que operam
com água, como Suez, Vivendi, Bechtel.
As condições para ter acesso aos empréstimos do banco
sofreram muitas mudanças de paradigma - como da "água para a vida"
para "água para os lucros", de "democracia da água" para
"apartheid da água", de "uma parte para todos" para
"tudo para alguns".
A privatização foi lançada como aspecto essencial da
liberalização comercial e da globalização, baseada numa tosca ideologia segundo
a qual o que é público é ruim, o que é privado é bom, o doméstico é ruim, o
multinacional é bom. Quando surgiram movimentos contra a privatização da água,
a retórica do BM mudou para "participação do setor privado", e uma
tentativa foi feita no sentido de definir a privatização dos serviços e
contratos de administração como não sendo privatização.
As mulheres são as maiores vítimas das guerras da água. Na
Índia, se o custo de transportar água, que é de 150 mulheres/dia, fosse
adicionado ao PIB, ele subiria 10 bilhões de rupias (US$ 180 milhões). Mas as
mulheres não são apenas as transportadoras de água do mundo, são também o
sustento das famílias. Água e alimento estão juntos desde sempre. As mulheres
produzem mais da metade dos alimentos em oferta no mundo - na África, 80%. Seu
papel como responsáveis por toda a cadeia alimentar contrasta de modo marcante
com sua falta de direitos no que se refere à aquisição e propriedade da terra e
acesso a empréstimos, sementes e assistência técnica. Inúmeros planos de ação
aprovados na ONU atribuíram importância capital ao princípio de que "os
direitos das mulheres são direitos humanos". A igualdade de acesso das
mulheres à água e à terra é um fator chave na luta contra a pobreza e a fome.
Em 28 de julho de 2010, a Assembleia-Geral das Nações Unidas adotou resolução
reconhecendo o acesso à água potável e ao saneamento como um direito humano.
Quando o governo italiano aprovou uma lei para privatizar a
água, os italianos se organizaram e pediram um referendo a respeito. A lei a
ser submetida a referendo estabelecia que o fornecimento de água seria
administrado exclusivamente por empresas privadas em que o investidor privado
detivesse pelo menos 40%. As autoridades locais teriam de diminuir a
participação acionária pública para 30% em 2015.
O referendo foi realizado em junho de 2011. Os italianos
votaram "não" à privatização e "sim" à água como um bem
público comum ao qual os cidadãos têm direito universal. Como disse o padre
Alex Zanotelli durante um rali em Nápoles, "toda vida vem da água, a água
é a mãe de nossa existência e não cabe às multinacionais decidirem como ela
deve ser administrada e distribuída, mas sim às pessoas no mundo. Temos de nos
unir para construir relações humanas e criar uma rede de democracia direta de
maneira a proteger a água e outros bens públicos contra a exploração".
A paz da água e a justiça da água caminham juntas. O direito
à água está no âmago do direito à terra. O direito à água é também um direito
humano.
Fonte: O Estado de São Paulo
VANDANA SHIVA É FÍSICA, ATIVISTA AMBIENTAL INDIANA. DIRIGE A RESEARCH FOUNDATION FOR
SCIENCE ECHNOLOGY AND ECOLOGY, EM NOVA DÉLHI. ELA ESTEVE NO BRASIL PARA
A CONFERÊNCIA FRONTEIRAS DO PENSAMENTO (WWW.FRONTEIRAS.COM)
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