A estilista e advogada Vana Lopes conta como recebeu a
notícia da prisão do ex-médico Roger Abdelmassih no Paraguai. Uma das 35
pacientes que o denunciaram por estupro, diz como contribuiu para as
investigações que levaram ao paradeiro dele, condenado em 2010. Sob ameaça, ela
passou os últimos 20 dias fora do país.
Por Nathalia Tavolieri
“Fui a primeira vítima a saber da prisão de Abdelmassih.
Coordeno uma página na internet que reúne outras mulheres e familiares vítimas
daquele monstro. Por meio dela, recebia informações e pistas anônimas sobre o
paradeiro de Abdelmassih, como ele recebia dinheiro no exterior e quem o
ajudava. Foram mais de 300 documentos. Vinham de muitas pessoas para quem ele
fizera mal no passado: ex-funcionários, ex-empregadas domésticas, conhecidos e
outros familiares e amigos de vítimas que, como eu, tinham sede de justiça. Eu
compilava e encaminhava essas informações à Secretaria de Segurança do Estado
de São Paulo, por meio do secretário Fernando Grella, à Interpol e a outros
órgãos envolvidos na investigação, além de jornalistas que não haviam esquecido
o caso.
Cada um estava fazendo a sua parte para tentar montar aquele
quebra-cabeça. Foi uma força-tarefa. Parecia coisa de filme. Nos últimos meses,
mantivemos trocas de emails e ligações quase que diariamente. Sabíamos que o
cerco estava se apertando para ele. A cada dia, crescia em mim a expectativa de
ele ser pego. Vai ser amanhã, ou depois de amanhã. O grande dia está chegando.
Comprei até um champanhe.
Informava às outras vítimas, pela internet, sobre o
andamento das investigações. Como a página é pública, comecei a receber ameaças
de morte. Os telefonemas diziam: Você conhece o doutorzinho. Não vai sair viva
dessa história. Não era a voz de Abdelmassih, mas não tenho dúvidas de que foi
a mando dele. Seguindo orientações da polícia, para minha segurança e também
para não comprometer essa fase final da investigação, passei os últimos 20 dias
no exterior, em silêncio. Não queria morrer antes de ver aquele monstro preso.
Esperei 20 anos por justiça. Meu marido e eu procuramos a
clínica de Abdelmassih em 1993. Eu já tinha uma filha adotiva, mas ainda sim
insistia em engravidar. Optamos pela fertilização in vitro. Passei pelas três
tentativas de aplicação dos embriões fecundados no útero. Sempre sedada, como
as outras pacientes. Lembro que acordei no meio da terceira, sentindo dor no
ânus. Ainda meio anestesiada, percebi que ele havia ejaculado sobre as minhas
pernas. Ele fez sexo anal comigo enquanto eu estava sedada. Em decorrência da
penetração, tive uma peritonite aguda, infecção causada pela bactéria
Escherichia coli, comum em casos de estupro. A doença me fez perder as trompas
e parte do ovário. O embrião não vingou. Meu casamento, assim como o de outras
tantas pacientes abusadas por ele, também não.
Ele não violentou só a mim. Agrediu a minha família. Fiquei
deprimida, tive síndrome do pânico. De alguma forma, ele ainda me assustava, me
coagia, mesmo à distância. O medo não passava. Pensei que meu caso fosse
isolado. Mais de dez anos depois, começaram a vir à tona denúncias de outras
mulheres. Eu acreditava no que elas diziam porque havia passado pelo mesmo
pesadelo. Decidi que precisava lutar por justiça. Denunciei, expus meu rosto na
imprensa. Entrei na faculdade de direito -
ato que considero de legítima defesa.
Quando recebi o telefonema com a notícia da prisão, estourei
o champanhe que estava na geladeira. Vou brindar ao início de uma nova vida que
está começando para mim.
Somos vítimas, não coitadas. Agimos racionalmente. Nosso
grupo ganhou força e vítimas de outros médicos, padres pedófilos e estupradores
começaram a nos procurar. Nós vamos ajudá-las. A luta não acabou. Ele, sim. Não
vai mais sair de lá.”
278 anos de prisão
Roger Abdelmassih era um dos mais renomados especialistas em
reprodução assistida no Brasil. Casais de todo o país, entre personalidades,
políticos e celebridades, procuravam a clínica do ex-médico nos Jardins, bairro
de luxo da capital paulista, para ter filhos. A partir de uma série de denúncias
de 35 ex-pacientes, foi condenado a 278 anos por 56 abusos sexuais. Após ser condenado, em 2010, chegou a ficar
preso por quatro meses, mas conseguiu autorização do Supremo Tribunal Federal
(STF) para responder ao processo em liberdade.
A Justiça revogou o pedido de habeas corpus no início de 2011, quando
Abdelmassih tentou renovar o passaporte. Desde então, não foi mais visto. Até
que, na terça-feira (19), numa operação conjunta da Interpol, com as polícias
do Brasil e do Paraguai, ele foi preso em Assunção, onde vivia com a mulher e
dois filhos.
Doutor horror
As acusações de estupro não são as únicas contra
Abdelmassih. Ele também é alvo de denúncias de manipulação genética dos materiais
colhidos na clínica. Muitos casais passaram, da noite para o dia, a não ter a
certeza se eram os pais biológicos de seus filhos. Outros viram seus bebês
nascer com doenças genéticas e má formações.
Nelma Luz criou uma página no Facebook para reunir outras
vítimas do ex-médico Roger Abdelmassih (Foto: Arquivo pessoal)
A farmacêutica carioca Nelma Luz, de 50 anos, é uma delas.
Ela e o então marido procuraram Roger Abdelmassih em 2008. Sonhavam em ser
pais. Diferentemente de muitos casais que procuravam a conceituada clínica do
ex-médico, nenhum dos dois tinha problemas de infertilidade. Só que como ela já
estava mais “velha”, tinha 44 anos, queria minimizar os riscos da gravidez. “As
clínicas do Rio de Janeiro cobravam um décimo do valor de Abdelmassih, mas eu
não estava disposta a arriscar. Só queria o melhor para a criança que eu tanto
sonhava em dar à luz”, diz Nelma. O casal vendeu um imóvel para pagar o
tratamento.
Quando vieram à tona as primeiras denúncias de estupro e
manipulação genética na mídia, Nelma já estava no final do segundo mês de
gestação. “Engravidei de primeira. Passei pelo PGD (Diagnóstico Genético
Pré-Implantacional), para identificar possíveis anomalias genéticas e evitar a implantação no útero de embriões com
alterações cromossômicas. A clínica disse que estava tudo certo, que os
resultados garantiriam que meu filho nasceria com saúde. Colheram 12 óvulos
meus. Quatro foram fecundados. Apenas um fertilizou. Não tenho ideia de onde
estão e do que aconteceu com os outros oito óvulos. Quem sabe, deram vida a
crianças em outras famílias. Nunca vou saber.”
O filho de Nelma, Guilherme, nasceu aos sete meses, com a
síndrome de Edwards -- uma doença gravíssima. “Da minha barriga foi direto para
a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal. Lá padeceu por três meses. Não
conheceu sua casa, o quartinho que havíamos decorado, nem mesmo o meu colo.
Sofreu muito naquela incubadora.” Segundo a farmacêutica, o bebê foi submetido
a inúmeras cirurgias e procedimentos penosos. “Coisas que muito marmanjo não
aguentaria.” Depois de três meses, a criança morreu. “Foi justamente para não
passar por isso que eu procurara Abdelmassih”, ela diz.
“Não fui estuprada, como outras dezenas de pacientes. Mas
meu filho sofreu as consequências de minha escolha em ter procurado
Abdelmassih. Não há palavras para descrever o que aquele homem fez contra mim,
contra meu ex-marido e, principalmente, contra Guilherme. Dinheiro nenhum
conseguirá apagar.” Nelma quer agora que a Justiça condene Abdelmassih e outros
profissionais da clínica por crimes relacionados à biossegurança. Sobre esses delitos,
há um inquérito policial, instaurado em 2009, após a finalização da
investigação sobre os abusos sexuais. Agora que o ex-médico será trazido de
volta a São Paulo, ele deverá depor à
polícia sobre essas acusações.
Reportagem de ÉPOCA de novembro de 2010 relatou as denúncias sobre os
procedimentos médicos na clínica de Abdelmassih. “Que Abdelmassih morra na
prisão. Acabou para ele", diz Nelma.
Roger Abdelmassih sempre afirmou ser inocente sobre todas as
acusações, de abusos sexuais e das relacionadas aos procedimentos médicos de
sua clínica.
Fonte: Revista Epoca
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