A web teve um impacto geográfico
assimétrico e desigual na prostituição internacional. Beneficiou algumas poucas
profissionais em países de alto padrão de vida, mas condenou um número imenso
de mulheres de países da Ásia, África e América do Sul a conviver com a
escravidão imposta por exploradores contemporâneos dessa nova modalidade de
tráfico de cativas capturadas por meio de falsas promessas de uma vida melhor.
Por Sergio da Motta e Albuquerque
A revista The Economist por vezes
assume posições que parecem ir contra a postura editorial (conservadora) do
semanário. Eu respeito o jornalismo que eles praticam, mesmo quando discordo
das conclusões de seus articulistas. Quase sempre divirjo de tudo o que eles
publicam, com todo o respeito devido ao histórico semanário. Seu passado
deveria ser conhecido por todo o universo do jornalismo mundial – um
tradicional informativo britânico que não só assistiu, mas também contribuiu
para a consolidação do capitalismo moderno na Inglaterra. É um ferrenho
defensor do mercado, que às vezes até tenta fugir do lugar-comum imposto pelo
encanto das forças do mercado livre.
A revista inglesa é um periódico
que pratica jornalismo engajado. Toma partido. Apoia candidatos políticos em
outros países além da Inglaterra. Apoiou José Serra e sempre fez dura oposição
a Dilma Rousseff. Reprova ministros no Brasil e em outros países. Pediu a
cabeça de Guido Mantega em 2012, o que trouxe desconforto à atual administração
(8/12). A publicação tem grande credibilidade e muita gente não gostou. Mas
jornalismo deste tipo é preferível àquele que pretende objetividade e
imparcialidade, e acaba em oposição desleal e no vale-tudo das denúncias não
apuradas do jornalismo declaratório.
Problema insolúvel
No início de agosto, a matéria de
capa (9/8) da Economist abordou um tema importante: a (suposta) segurança que a
web possibilitou às mulheres que ganham a vida com o comércio do próprio corpo.
Sem susto ou assombro, o artigo comentou as vantagens que a web trouxe para as
prostitutas, que agora, com a internet, “podem controlar suas próprias agendas
e negócios”. Através de websites, elas “podem colocar-se no mercado, vender a
si mesmas e construir suas marcas”, acredita a revista inglesa.
“Garotas de programa” estariam
livres dos gigolôs e das cafetinas no maravilhoso mundo da prostituição na web,
segundo a publicação inglesa. A revista analisou 190 mil perfis de um site
alemão que vende sexo. Comprovou o óbvio: homens preferem as louras, que por
sua vez lucram com isso (ganham 11% mais que as morenas). Gostam mais de
mulheres saudáveis, e não das magrelas das passarelas e da TV. “Prostitutas são
como ‘frilas’ de outras profissões”, publicou o ingênuo artigo. “É apenas um
serviço”, acredita a revista. Bem razoável, não? Por que proibir a
prostituição? Não é uma profissão como as outras? Não há razão para
criminalização do comércio do sexo entre adultos que concordam em trocar sexo
por dinheiro.
A prostituição é legal em 50% dos
100 países pesquisados pelo site de filantropia pública ProCon.org
(23/12/2013). Países como Estados Unidos, Austrália, Noruega, Suécia e
Islândia, entretanto, ainda relutam em liberar totalmente o negócio. Por quê?
São países com índices de desenvolvimento humano (IDH) muito altos, e bem
liberais quando o assunto é sexo ou prostituição. Principalmente os países
nórdicos. Mas a vida não é tão simples como muitas vezes a revista sugere. Na
Islândia, por exemplo, vender sexo não é crime, mas pagar por ele é. Problema
insolúvel para quem precisa dos serviços de uma profissional do sexo. Não há
venda sem comprador. A lei aplicou um xeque-mate no jogo da prostituição
islandesa.
Nova modalidade de tráfico
A reportagem, apesar de
bem-intencionada, falhou por sua ingenuidade e por sua argumentação linear.
Faltou visão em ângulo aberto e fazer as conexões corretas. A prostituição na
web está ligada ao tráfico de seres humanos, a escravidão do nosso tempo.
Cafetões e donos de bordéis não foram embora. Agora também estão na rede a
recrutar mulheres. A publicação inglesa falhou ao não fazer essa vinculação
fundamental.
Alguém já esqueceu a reportagem
de 2013 do Fantástico (31/1) sobre as brasileiras escravas do sexo em Espanha?
A demanda por mulheres brasileiras é imensa no mercado internacional. Só ficam
atrás de nigerianas e chinesas, informou o Estadode S.Paulo (24/2). Acreditar
que a web vai liberar as profissionais do sexo do perigo por meio da “mão
invisível” do mercado não me surpreende e nem a ninguém que conheça o credo da
revista: o capitalismo aberto e a ausência do Estado na economia são panaceias
no mundo contemporâneo. Por isso devemos liberar a prostituição: o mercado vai
defender a mulher que se vende com sua mão invisível na web.
Acreditar nisso é crueldade. A
Economist usou um tema “quente” e polêmico, incomum em suas pautas semanais,
para reforçar sua eterna crença no livre mercado. A indiferença ao sofrimento
alheio em benefício da defesa de interesses do mercado é oportunismo cínico. O
artigo não conseguiu ou evitou comentar a realidade da expansão do tráfico de
mulheres para exploração sexual. O relatório de 2012 do Escritório para Drogas
e Crime da ONU (UNDOC) mostrou que 58% das mulheres vítimas de tráfico são
direcionadas para a exploração sexual. Um número maior que o das vítimas de
tráfico para exploração laboral (36%). Isso não está na matéria da Economist.
O erro foi grave por omissão. O
artigo bem escrito e estruturado deixou de fora um problema sério de nossos
tempos. A web trouxe mais segurança para algumas privilegiadas garotas de
programa de origem europeia ou norte-americana. E algumas outras tantas aqui no
Brasil e outras poucas aqui e ali dispersas na América Latina e outras partes
do mundo. Mas ainda está longe de oferecer proteção as prostitutas fora do
universo dos países desenvolvidos.
A web teve um impacto geográfico
assimétrico e desigual na prostituição internacional. Beneficiou algumas poucas
profissionais em países de alto padrão de vida, mas condenou um número imenso
de mulheres de países da Ásia, África e América do Sul a conviver com a
escravidão imposta por exploradores contemporâneos dessa nova modalidade de
tráfico de cativas capturadas por meio de falsas promessas de uma vida melhor.
Fonte: http://observatoriodaimprensa.com.br/
Sergio da Motta e Albuquerque é
mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor
Nenhum comentário:
Postar um comentário