Surge coletivo disposto a expressar o que é ser mulher nas
bordas das metrópoles — longe dos preconceitos da mídia e produzindo jornalismo
crítico e de profundidade.
“Somos a irmã que cuida dos irmãos mais novos até a mãe
voltar do serviço e que lava a louça do almoço enquanto o irmão vai jogar bola.
Somos aquelas que amam os filhos das patroas. Somos as ‘mãezinhas’ que gritam
nos corredores das maternidades. Somos quem chora quando nossos filhos são
mortos por serem suspeitos. Somos mães de abril, maio, de junho, setembro.
Somos as mães que trabalham para as filhas estudarem. Somos as filhas que se
formam na universidade para as mães voltarem para a escola.
“Somos aquela que, depois de oito horas de trabalho e quatro
horas no transporte público, ainda passa a roupa e nina o bebê. Somos quem vai
no posto atrás de remédio e pra agendar consulta pra daqui a cinco meses. Somos
quem cria abaixo-assinados para pedir creches. Somos quem denuncia que a
vizinha apanha do marido. Somos operárias, empreendedoras, manicures,
jornalistas, costureiras, motoristas, advogadas. Somos esposas, mães, irmãs,
primas, tias, comadres, vizinhas. Somos maioria. Somos minoria. Pobres, pretas,
brancas, periféricas. Migrante, nordestina, baianinha, quilombola, indígena.”
Elas são as milhões de mulheres que moram nas periferias
deste país. São o coletivo “Nós, Mulheres da Periferia”, que desde dia 8 de
março de 2014, Dia Internacional da Mulher, vem tentando expressar, nas redes
sociais, o que é ser uma mulher nas bordas das metrópoles. Enquanto preparam o
lançamento do site que pretende inaugurar o jornalismo voltado às mulheres da
periferia, Bianca Pedrina, Jéssica Moreira, Semayat Oliveira, Aline Kátia,
Priscila Gomes, Mayara Penina, Lívia Lima, Cíntia Gomes e Regiany Silva já
militam por essa causa, que é tão delas, mas também de milhões de mulheres
brasileiras.
Em 2013, 56 milhões de brasileiros, 29% da população, viviam
nas periferias urbanas, de acordo com levantamento da consultoria Serasa
Experian. A proposta do coletivo é dar visibilidade e voz às milhões de mulheres
que integram esse contingente em tantos aspectos marginalizado, inclusive pela
maneira como são representadas na mídia.
Elas mesmas contam a que vieram, em entrevista a Outras
Palavras.
Quais são os desafios de ser uma mulher da periferia, em São
Paulo?
Em uma sociedade machista, ser mulher já é um grande
desafio. Ser mulher e ser da periferia torna essa missão pelo menos duas vezes
mais difícil. Além de tudo que a mulher, de forma geral, já precisa enfrentar
para alcançar seu espaço no meio social, nós, mulheres da periferia,
enfrentamos os desafios presentes na vida de qualquer pessoa que viva na
periferia de uma grande metrópole como São Paulo. Assim, entendemos que homens
e mulheres sofrem com a falta de serviços públicos, como saúde, moradia e educação.
Porém, a mulher, de forma específica, sofre mais que o homem, uma vez que na
maioria das vezes é ela a chefe do lar. Sofre mais que o homem nos longos
percursos de ônibus ou metrô, pois além do aperto, sofre abuso sexual. Sofre
mais que o homem na questão da educação, uma vez que ela é quem cuida da vida
escolar do filho. Sofre mais também na questão da saúde pública, pois precisa
utilizá-la para questões ginecológicas bem mais cedo que o sexo masculino.
Sofre mais, pois é ela que visita o marido quando vai preso. Sofre mais quando
o filho morre ou entra para o tráfico de drogas. Sofre mais ao subir a rua
escura, já que seu maior medo não é o assalto, mas o estupro.
Por estarmos mais longe dos bairros centrais, muitos
serviços nos são negados. É impossível trabalhar por perto. Estudar por perto.
Não há empregos nesses lugares, por isso percorremos longas distâncias, da Zona
Norte à Zona Sul da cidade. Não há um número grande de faculdades nas regiões
periféricas, o que nos obriga a sair cedo de casa e voltar depois da
meia-noite. Não há opções de lazer também. E sair de casa para se divertir
significa voltar no primeiro ônibus do outro dia.
Ser mulher nas periferias de São Paulo é conviver com as
diferenças geográficas impostas por um sistema que afasta o pobre cada vez para
mais longe, enquanto a especulação imobiliária encarece tudo, até mesmo em
nossos bairros.
Como vê o espaço que a mulher da periferia ocupa na
sociedade? E como ela é retratada?
A mulher da periferia é retratada de forma genérica,
estereotipada. Ela é, infelizmente, estigmatizada apenas por ser da periferia.
Por sua localização geográfica, acreditam que ela se expressa, fala e se veste
apenas de uma forma. A periferia é composta por pessoas muito diversas e, pelas
dificuldades todas que passam, muito criativas. Porém, os meios de comunicação
de massa ou grande mídia, como dizemos, traz em seus anúncios, novelas e
comerciais um único tipo de mulher da periferia, sempre é a empregada doméstica
ou a periguete. Somos empregadas domésticas, sim, somos também periguetes, mas
somos várias outras também. Somos a mãe, a tia, a irmã, a mulher guerreira
desde o nascimento.
Antigamente, a mulher da periferia não tinha acesso à
faculdade, não trabalhava além do serviço que já realiza diariamente em sua
casa. Essa realidade, no entanto, vem mudando em todas as classes sociais. A
mulher vem abrindo espaço no mundo do trabalho, com cargos até melhores que os
dos homens. Mas ainda ganha menos que eles. Isso é um desafio a ser enfrentado.
Com a mulher da periferia, não é diferente. Ela também vem ocupando espaço, mas
sempre tendo de provar que é capaz, mesmo vindo de um lugar distante. É preciso
explicar que a questão da moradia longínqua vem acompanhada de preconceitos.
“Se mora na periferia, não teve estudo qualificado. Se é da periferia, vai
chegar atrasada. Se é da periferia, não sabe falar direito” são afirmações que
podemos ouvir por aí.
O que é o “Nós, Mulheres da Periferia”? Como e por que
surgiu a ideia de criar esse projeto?
O coletivo é formado por oito jornalistas e uma designer,
todas moradoras de bairros da periferia do município de São Paulo. No dia 7 de
março de 2012, quatro das nove mulheres jornalistas que integram o coletivo
publicaram o artigo “Nós, Mulheres da Periferia” na seção “Tendências/Debates”
do jornal Folha de S. Paulo, atentando para a invisibilidade e os direitos não
atendidos das mulheres que moram em bairros periféricos de metrópoles. O texto
obteve grande repercussão, sendo replicado em outros veículos de mídia, como na
Rádio CBN. O artigo encontrou eco entre nossas iguais, outras jovens ou não tão
jovens, mulheres moradoras da periferia de São Paulo que finalmente tinham se
sentido representadas, lembradas e retratadas. Foi lido e registrado em vídeo
no Sarau do Itaim Paulista, na Zona Leste da capital.
Para escrever, as autoras se basearam principalmente em sua
visão e experiências cotidianas. Mas perceberam naquele momento que o vazio de
representatividade não era sentido apenas por elas. Iniciou-se então um
processo de pesquisa e consolidação do coletivo, que tem como objetivo
principal dar visibilidade aos direitos não atendidos das mulheres, problematizar
os preconceitos e estereótipos limitadores, que se cruzam com as questões de
classe social, etnia e raça, muito presentes em razão de serem moradoras das
bordas da cidade.
A primeira ação concreta do coletivo foi o lançamento de uma
página no Facebook, no 8 de março de 2014. Na mesma data publicou o artigo
“Nós, Moradoras da Periferia”, na seção “Tendências/Debates” da Folha de S.
Paulo, jogando luz na questão do direito à moradia das mulheres de baixa renda.
Com mais de 2.500 curtidas em menos de dois meses, a página
recebe conteúdo inédito diariamente e um post sobre a violação de direitos
chegou a alcançar 597 compartilhamentos. Nos comentários da página é possível
perceber que um grande número de mulheres da periferia se identificam e se reconhecem
em nossas produções. Desde a criação até agora, temos uma média de 119
curtidas, 14 comentários e 23 compartilhamentos por dia.
Nesta quarta-feira, 28 de maio, será o lançamento oficial do
site, um canal de comunicação e encontro com a missão de fomentar o
protagonismo das moradoras de regiões afastadas do centro paulistano. A
primeira grande reportagem trará a luta das mulheres pela casa própria e
moradia digna.
Quem são as pessoas que formam o coletivo? Quais suas
relações com a comunidade?
São nove mulheres que nasceram, cresceram e ainda moram nas
periferias de Norte a Sul da cidade. Todas são jornalistas comunitárias do Blog
Mural e, por isso, já têm uma relação diferente ao olhar para o território
periférico. Com a experiência adquirida no Mural, de contar aquilo de que a
grande mídia não fala, é que vamos basear nosso trabalho, tentando fugir do
senso comum.
Quais as principais diferenças entre o “Nós, Mulheres” e os
veículos já existentes? Como o projeto pretende dialogar com a comunidade – e
ajudar, talvez, a transformá-la?
Hoje em dia, não há nenhum veículo da grande mídia voltado
apenas para a mulher. Mesmo entre os alternativos, não encontramos esse viés.
E, naqueles da periferia, encontramos alguns assuntos, mas nenhum com foco na
mulher. Além disso, um dos principais diferenciais de nosso projeto é que
fazemos parte do universo que iremos retratar, pois todas moramos em bairros
periféricos de São Paulo. Assim, observador e observado se fundem, marcando as
nossas matérias com a sensibilidade de quem vive aquilo que escreve. O
jornalismo é a ferramenta que escolhemos para dar voz às mulheres que nunca são
ouvidas pela mídia e, quando são, é de forma sensacionalista ou sexista. Além
disso, temos como objetivo pautar a grande imprensa, servindo de ponte entre a
mídia e as mulheres não ouvidas da periferia.
O coletivo “Nós, Mulheres da Periferia” pretende contribuir
para o empoderamento das mulheres moradoras da periferia de São Paulo,
promovendo espaços de reflexão, debate, informação, troca de conhecimento,
experiências e visibilidade sobre seus protagonismos, histórias e dilemas.
Fonte: Carta Capital
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