quarta-feira, 4 de junho de 2014

Às vésperas da Copa, regulamentação da prostituição ainda divide opiniões

Para o deputado Jean Willys, manter a marginalização estatal é continuar submetendo toda uma classe profissional a riscos desnecessários.

 Às vésperas da Copa do Mundo, o debate sobre a regulamentação da prostituição ainda suscita debates acalorados e divide opiniões. O projeto de lei 4.211/2012, a chamada “Lei Gabriela Leite”, apresentado pelo deputado Jean Willys (PSOL-RJ) com a justificativa de preparar o país para o mundial continua emperrado na Câmara, e enfrenta forte oposição não só do campo conservador, mas também de organizações feministas de esquerda, ligadas ou não a partidos políticos mais progressistas.

O PT, por exemplo, orientou seus parlamentares a não expressarem posição pública sobre o projeto até que o tema seja amplamente discutido nos seus coletivos de mulheres, o que ainda não ocorreu. Mas movimentos feministas com ligações históricas com o partido, como o Coletivo de Mulheres da Central Única dos Trabalhadores, já expressaram posição pública contrária. O mesmo ocorre com o Movimento Mulheres em Luta (MML), filiado à central sindical Conlutas, ligada ao PSTU.

No geral, enquanto os entusiastas defendem que a regulamentação vai permitir maior fiscalização da atividade, coibindo casos de violência e de prática de exploração sexual, os críticos advogam que a aprovação do projeto vai instituicionalizar de vez a apropriação do corpo feminino pelo mercado, aprofundando as relações de desigualdade de classe, gênero e raça.

A Lei “Gabriela Leite”

De acordo com o PL 4.211/2012, é considerado profissional do sexo toda pessoa maior de 18 anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração. A proposta é assegurar mais direitos ao seguimento, como o direito à aposentadoria especial de 25 anos, visto que, atualmente, no país, a prostituição já é reconhecida como atividade pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

A polêmica explode porque o PL também legaliza a atuação do agente intermediário, o popular “cafetão”, e das casas de prostituição, hoje criminalizadas pelo Código Penal. A proposta dá, ainda, uma definição precisa à “exploração sexual” que, conforme o texto, ocorrerá apenas quando houver apropriação total ou maior que 50% do rendimento da prestação de serviço sexual por terceiro, o não pagamento pelo serviço sexual contratado e a prática de prostituição mediante grave ameaça ou violência.

Para a coordenadora-geral da Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), Maria Aparecida Menezes Vieira, o PL reconhece os profissionais do sexo como sujeitos, sem a visão preconceituosa e moralista que permeia a construção social da imagem da prostituta, segregada a invisibilidade social. “Nós enfrentamos a oposição tanto dos religiosos quanto dos movimentos feministas abolicionistas, que não conseguem nos ver como sujeito de direito, em função de preconceitos e mitos do passado”, avalia.

Segundo ela, a proposta foi construída com a participação da representação nacional da Rede Mundial de Mulheres e, portanto, tem o apoio efetivo da categoria. Maria Aparecida acrescenta que a estimativa é que, só no estado de Minas Gerais, que ela conhece bem, atuam 500 mil prostitutas, assumidas ou não. “Hoje, nós não podemos nem denunciar uma ocorrência à Polícia, como fazem, por exemplo, os taxistas. Por isso, o projeto é importante para nos dar mais segurança e dar maior visibilidade aos casos de violência”, argumenta.

A defesa do PL 4211

O autor da proposta, o deputado Jean Willys, lembra que ha diferentes correntes ideológicas dentro da esquerda ao analisar a polêmica. “É natural que algumas destas correntes não concordem com o meu projeto, em especial as correntes que se fundam no abolicionismo, enquanto outras, que se fundam sobre a ideia da primazia à liberdade e da não marginalização sob hipótese alguma, apoiem totalmente a Lei Gabriela Leite”, disse à Carta Maior.

Segundo ele, é importante olhar para além do campo ideológico e entender as implicações de determinado posicionamento. “Manter a marginalização estatal é continuar submetendo toda uma classe profissional a riscos desnecessários, como a exploração sexual e o tráfico humano, a partir do mesmo argumento proibicionista de uma direita reacionária, que age a todo tempo para tutelar cada liberdade individual que não lhe interesse ou que sirva aos grupos historicamente difamados, como são as prostitutas. Regulamentar a atividade dos e das profissionais do sexo é tão somente uma forma de garantir condições de trabalho dignas, seguras e fiscalizáveis”, defende.

O deputado também contesta as críticas de que seu projeto estimula à exploração sexual, ao permitir a atuação de terceiros, sejam particulares ou casas de prostituição, desde que não retenham mais de 50% do valor do programa. “O projeto não estimula e muito menos permite a exploração sexual, e esta diferenciação precisa ficar muito clara. O que o projeto faz é regulamentar o que é uma prática para garantir o direito dos e das profissionais do sexo nesta relação com donos das casas de prostituição ou agentes que intermediam a atividade. Hoje, sem regulamentação alguma, o dono da casa ou o agente podem se apropriar de muito mais que os 50%, e isto sim configura a exploração sexual”, rebate.

Segundo Willys, o que o projeto faz é justamente estabelecer um teto para que, nos casos em que a mediação já ocorra, não exista a apropriação da maior parte do valor apurado. “Há inúmeros casos em que isto não ocorre: há casos em que o aluguel é dividido, sem que exista apropriação do valor do programa, e há casos em que a casa de prostituição lucra apenas com o valor da entrada, da consumação, e do aluguel dos quartos. Há casos em que o agente arca com todos os valores de publicidade, aluguel do espaço, manutenção, limpeza e segurança, e cobra um percentual sobre cada valor apurado. A escolha por cada caso é do e da profissional, uma escolha livre, sem coação ou ameaça. E a regulamentação garantirá que isto ocorra de forma fiscalizável, com a possibilidade de acessar à justiça nos casos de abuso, da mesma forma como ocorre em diversas categorias profissionais que contam com a segurança jurídica da regulamentação”, esclarece ele.

Tal como a coordenadora da Aprosmig, o deputado defende que aprovar o projeto é reconhecer o profissional do sexo como trabalhador e sujeito. “Nada disto foi inventado por mim. As próprias prostitutas organizadas foram as protagonistas da construção dos seus direitos, algo que a esquerda tanto preza, mas que alguns setores acabam por desprezar quando se trata do direito das prostitutas. Elas, a partir do consenso, estabeleceram este repasse e o seu limite percentual a partir do que elas entendem como justo, e não podem ser simplesmente ignoradas. É preciso que os setores que se opõem estejam abertos à discussão honesta, entendendo que as prostitutas também são mulheres trabalhadoras. E isto passa, claro, pela questão da construção dos direitos, da igualdade e da não exploração”, argumenta.


As críticas à regulamentação

A ativista Pola Karlinski, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), tem posição diametralmente oposta. “A MMM não é só contra o PL do Deputado Jean Wyllys, mas contra qualquer proposta de regulamentação da prostituição como alternativa para mudar a realidade das mulheres que se prostituem. Ao mesmo tempo em que somos solidárias com as prostitutas, lutamos para superar a prostituição por meio da oferta de políticas públicas que construam alternativas reais  para essas mulheres. Falo em mulheres porque elas são maioria das profissionais do sexo ao redor do mundo, enquanto os homens são maioria entre os clientes, os cafetões e aqueles que lucram com a exploração dos corpos das mulheres. Para a MMM, independente da apropriação dos lucros por terceiros, a prostituição sempre será uma forma de exploração e opressão para quem se prostitui, pois não há perspectiva de reciprocidade nessa relação. Quem se prostitui se submete ao desejo do outro, diferente do que deveria ocorrer numa relação sexual livre”, argumenta.

Segundo ela, as críticas ao projeto de Willys se baseiam todas elas nestes fundamentos. “As propostas contidas no PL 4.211/2012 beneficiam as casas de prostituição e legitimam a cafetinagem. Afinal, apesar de dizer que a remuneração deverá ser direta ao profissional, quem seria essa  "figura" que poderia apropriar-se de até 50% dos lucros do programa sem que isso fosse considerado exploração?”, questiona.

Pola avalia que, além da porcentagem bastante vantajosa para quem se apropria dela e nem um pouco atrativa para quem se prostitui, o problema vai além da questão financeira. “A exploração sexual, o tráfico de mulheres e a prostituição fazem parte de uma mesma rede que opera internacionalmente, com rotas definidas e conhecidas, e que movimenta lucros astronômicos. E o PL 4.211/2012 propõe separar, no Código Penal, o que seria prostituição e o que seria exploração sexual, chegando a considerar ‘solidária’ a ‘facilitação de deslocamento’ dos profissionais”, denuncia.

Ainda conforme a militante, é preciso considerar ainda que, no Brasil, a questão da prostituição é um problema social muito mais complexo do que em outros países, porque envolve não só a questão de gênero e classe, mas também a de raça. “No Brasil, a prostituição também tem cor e classe, sendo a maioria das prostitutas pobres e negras. Ou seja, é uma questão social muito mais grave e profundamente enraizada”, acrescenta.

Para ela, as mulheres que se prostituem para sobreviver normalmente têm um histórico de vulnerabilidade social e econômica, violência e rompimento de vínculos familiares, bem diferente da imagem ‘glamourizada’ das prostitutas dos filmes e das novelas. “Por isso, não aceitamos a afirmação de que a prostituição é uma escolha livre e autônoma. Pode até ser uma escolha, para um número mínimo de mulheres, mas não é para a maioria. E não tem nada a ver com a defesa feminista da liberdade sexual”, acrescenta.

Uma leitura sobre experiências internacionais

A ativista visita as experiências internacionais, muitas delas construídas exatamente para a realização de eventos esportivos como a Copa do Mundo, para ressaltar que os resultados não são favoráveis às mulheres. “Experiências de outros países comprovam que a regulamentação só beneficiou os clientes e exploradores, criando bairros e guetos exclusivos, mantendo a marginalização social da prática e aumentando o controle sobre as prostitutas” afirma.

Ela lembra que, na Alemanha, onde a prostituição foi regulamentada em 2002 “para a Copa do Mundo da FIFA”, as estatísticas apontam para um grande aumento da prostituição e, inclusive, do tráfico de mulheres provenientes do leste europeu, da África e da América do Sul. “Dois terços das estimadas 400 mil trabalhadoras do sexo na Alemanha são estrangeiras”, revela.

Pola acrescenta que, na África do Sul, onde a prostituição foi liberada apenas durante a Copa do Mundo de 2010, as prostitutas africanas foram convencidas a lutar pela regulamentação, achando que poderiam aumentar seus lucros, mas os clientes europeus recusaram seus corpos. “Com medo da AIDS e de outras doenças, importaram prostitutas do leste europeu e alijaram as africanas de qualquer benefício que a regulamentação momentânea de sua ocupação poderia lhes dar.  Ou seja, a regulamentação é sempre em função de quem consome o serviço, nunca de quem presta”, ressalta.

Como experiência internacional positiva, ela cita a cubana que, a exemplo da Suécia, criminalizou clientes e cafetões, criando uma rede de apoio às mulheres em situação de prostituição para acessar alternativas econômicas.
Fonte: Carta Maior



Nenhum comentário: