“Conseguir um ingresso para a Copa do Mundo é ganhar na
loteria”, resume o jornalista britânico Andrew Jennings, parceiro da Pública,
ao falar de seu novo livro “Um jogo cada vez mais sujo”, lançado no Brasil no
dia 5 de maio pela Panda Books.
A FIFA novamente é o alvo das investigações de Jennings,
desta vez focada na distribuição de ingressos por sorteio anunciada para os
torcedores que, segundo ele, esconde um mundo de negócios sujos, mercado negro
e troca de favores. O repórter também revela outro negócios ilegais que
enriqueceram dirigentes da FIFA, incluindo os brasileiros Ricardo Teixeira
(ex-presidente da CBF e do Comitê Organizador Local) e João Havelange
(ex-presidente da CBF e da FIFA).
A entrevista foi feita por Giulia Afiune, publicada pela
Agência Pública, 08-05-2014.
Com um estilo descontraído e irônico, Jennings conta quem
são os irmãos mexicanos Jaime e Enrique Byrom, donos do grupo Byrom PLC,
acionista majoritário da Match Services e da Match Hospitality, prestadoras de
serviço para FIFA. São eles que controlam todos os negócios relacionados a
ingressos, acomodações e hospitalidade nas Copas do Mundo da FIFA. E fazem
mais: no livro, o jornalista prova que nos mundiais da Alemanha, em 2006, e da
África do Sul, em 2010, os Byrom forneceram ingressos para o vice-presidente da
FIFA Jack Warner vender no mercado negro em troca de votos que os favoreciam no
Comitê Executivo da FIFA.
Jennings recebeu e-mails do advogado dos Byrom, ameaçando
processar jornalista e editora, mas não pretende se calar. “Eu disse que se
eles continuassem, ia publicar os documentos”, contou o jornalista em
entrevista à Pública em que detalha os negócios ilegais relacionados aos
ingressos e os motivos que fazem da Copa do Mundo um pote de ouro para a FIFA e
os patrocinadores sem trazer benefícios para o torcedor.
Eis a entrevista.
No livro você mostra os negócios entre os irmãos Byrom e o
vice-presidente da FIFA Jack Warner nas Copas de 2006 e 2010. Em linhas gerais,
como esses negócios funcionam?
Existe um mundo negro que os fãs do futebol não conhecem,
que é o mundo dos negócios de ingressos. Há 209 associações nacionais de
futebol na FIFA, como a CBF, no Brasil. Algumas são bem honestas, mas a maioria
não é. As associações nacionais pedem ingressos aos Byrom, que os fornecem em
nome do Blatter [presidente da FIFA] e da FIFA. Os negociadores de ingressos do
mercado negro vão até essas pessoas em diferentes países da África, da Ásia,
alguns da Europa – especialmente os do antigo bloco soviético – e conseguem os
ingressos com eles.
Em 2006 na Alemanha, eu revelei que eles estavam vendendo
milhares e milhares de ingressos para Jack Warner, que agora está sendo forçado
a sair da FIFA. Foi uma grande história, uma grande confusão, e eles fizeram
isso de novo em 2010! O Warner, [presidente] da União Caribenha de Futebol,
solicitou ingressos [por e-mail] mas copiou um negociante na Noruega! Então os
Byrom sabiam que Jack estava comprando deles em nome do cara na Noruega. E eles
copiam a correspondência para a FIFA e para a Infront, empresa do Philippe Blatter
[sobrinho do presidente da entidade]. Então todos eles sabem o que está
acontecendo.
Na Alemanha eles tiveram muito lucro, mas na África do Sul
esse mercado entrou em colapso porque ninguém queria ir para lá. É por isso que
o escritóriode ingressos dos Byrom estava entrando em contato com o Jack e com
a Noruega, dizendo: “se vocês não mandarem o dinheiro logo, nós cancelamos seus
ingressos”. O Jack Warner estava comprando os ingressos em nome do cara do
mercado negro na Noruega e os Byrom precisavam dar ingressos para ele porque
ele controla pelo menos três votos no Comitê Executivo da FIFA: se Jack, quer
ingressos, ele ganha ingressos. E o que ele dá em troca é que ele e os amigos
votam em você para que você consiga todos os contratos dos ingressos.
O que nós não sabemos é: que outros membros do Comitê
Executivo ganha ingressos nessa escala?
Os Byrom conseguem os ingressos por meio do contrato que a
FIFA tem com a Match?
Não, a Match é hospitalidade. Existem três diferentes
contratos entre os Byrom e a FIFA. Um é para os 3 milhões de ingressos para
todos os jogos que vocês vão ter no Brasil nos próximos meses. Esses ingressos
são para pessoas como eu e você ficarmos nas arquibancadas de concreto gritando
e torcendo pelos times. Outro é para acomodação, porque nós estrangeiros e
vocês brasileiros de outras cidades que precisam de um lugar para ficar. Então
os Byrom reservam uma grande quantidade de quartos, perto da Copa do Mundo
percebem que não venderam todos e começam a se livrar deles.
A terceira coisa é a Match Hospitality, da qual os Byrom são
acionistas majoritários, da qual o Philippe, sobrinho do sir Blatter, tem 5% e
outros grupos também têm ações… A Match é responsável pela hospitalidade, que
são aqueles grandes e caros camarotes de vidro nos estádios, todos novos,
pagos, em sua maioria, pelos contribuintes. Tem muito dinheiro na
hospitalidade. Eu acho que vai ser um desastre porque essas pessoas não vão
vir, mas isso é outra questão.
O que os pacotes de hospitalidade oferecem e para quem eles
são vendidos?
Você pode ver no artigo eu fiz para a Pública: A
hospitalidade é um bom translado para o estádio, muito espaço, comida,
bebidas…Você é pode comprar até as mais luxuosas suítes hospitalidade com uma
parede de vidro para que você possa assistir um pouco do jogo de vez em quando,
quando você não está fazendo negócios. Onde você não precisa se misturar com as
pessoas comuns. Imagine ficar no mesmo terraço que todos esses brasileiros?
Urgh.
Está tudo no site deles, com preços astronômicos. Quem
compra esses pacotes são pessoas muito ricas que levam seus amigos; executivos;
e empresas que levam seus melhores clientes ou seus melhores vendedores, como
uma espécie de prêmio. O alvo é o mercado corporativo, é uma hospitalidade
corporativa.
Os contribuintes pagaram por esses camarotes de vidro
luxuosos, mas vocês não podem comprar esses pacotes. Você pode ter sorte na
loteria e conseguir um ingresso para ver um jogo, mas não vai ter dinheiro para
esse camarote a não ser que seja um brasileiro muito rico do mundo dos
negócios.
A FIFA argumenta que a Match ter o controle exclusivo das
vendas de ingressos e de pacotes de hospitalidade impede vendas não
autorizadas. Isso é verdade? Por que é interessante para a FIFA manter esse
esquema?
Isso é uma besteira. Os Byrom controlam todos os ingressos.
Você vai no site da FIFA e encontra todo tipo de lixo sobre impedir as vendas
não autorizadas, o que é ridículo, porque todo ingresso vem da porta do fundo
dos Byrom. Eu não consigo imprimi-los, você também não. Muitos ingressos são
impressos na última hora, porque agora nós não sabemos que time vai jogar na
segunda fase e em qual estádio.
Então você ouve um monte de lixo sobre como você deve
comprar deles, se não você pode ter o ingresso rasgado na entrada do estádio.
Se você compra exclusivamente dos Byrom ou de seus amigos, você vai entrar. Mas
o Warner estava comprando ingressos para outras pessoas! Ele não queria 5 mil
ingressos para ele assistir à Copa da Alemanha, era para colocá-los direto no
mercado!
A FIFA diz que está policiando esse mercado paralelo de
ingressos, mas não está. É como um padre que olha para o outro lado!
E os líderes da FIFA também lucram com esse esquema?
Nós não podemos provar. Eu valorizo muito os documentos. Eu
ouço histórias, vejo como Jack Warner se safou com milhares e milhares de
ingressos, será que outros líderes da FIFA fazem negócios semelhantes? É
legítimo fazer essa pergunta, mas nós não temos prova.
Os Byrom controlam todos os ingressos para a Copa do Mundo
no Brasil. Os parceiros comerciais deles aqui são o Grupo Traffic e o Grupo
Águia, que, como você mostra, tem ligações comprovadas com a CBF e o Ricardo
Teixeira. O que isso sugere?
No caso dos ingressos, o Teixeira forçou os Byrom a terem
parceiros brasileiros para que seus amigos pudessem ganhar uma fatia. Por isso
esses grupos têm alguma ação. Você encontra as referências à Traffic se olhar
os relatórios do senador Álvaro Dias [relatórios finais da CPI da CBF,
elaborados em 2001].
Isso significa que o povo brasileiro está excluído. Vocês
estão pagando pela Copa do Mundo e para vocês é dito que os ingressos vão ser
distribuídos de forma justa. Aí você descobre que todo tipo de atividade ilegal
relacionada aos ingressos está acontecendo.
No livro, você faz uma analogia entre a pilha de ingressos
para a Copa do Mundo e um iceberg, mostrando que apenas a ponta está disponível
para os torcedores, enquanto, embaixo d’água, o resto é vendido por meio de
negócios ilegais. Então, o documento em que a FIFA explica a distribuição dos
ingressos é falso?
Sim, porque existe um mercado negro. E se você está
comprando um ingresso de mercado negro, ele pode vir de um país africano, ou de
outro lugar. A FIFA fala sobre a ponta do iceberg, mas o fato é que existe um
outro mundo sombrio embaixo da superfície, onde existe um imenso mercado de
ingressos.
Qual é a chance de um brasileiro que ama futebol assistir o
Brasil jogar no estádio na Copa do Mundo?
Gaste o seu dinheiro em uma televisão. Eles não colocam
todos os ingressos na loteria! Você não pode acreditar nos gráficos, porque não
há como checá-los! Os Byrom têm todas as estatísticas! Você pode checar o que o
governo está fazendo, porque você consegue os números, mas os Byrom não
precisam publicá-los. Se eles dizem que 100% dos ingressos estão na loteria,
você nunca vai provar que isso não é verdade.
O ingressos do mercado negro são vendidos apenas para
pessoas ricas ou para pessoas comuns também?
Pessoas como Jack Warner comprariam ingressos, mas ele os
venderia para empresas que os colocariam em pacotes com vôos e acomodação. Se
você fosse um turista na Copa do Mundo da Alemanha ou da África do Sul, você
viajaria no vôo que eles reservaram, ficaria no quarto que eles reservaram. Mas
você olharia no seu ingresso e veria que em vez do seu nome, nele está escrito
“Fred Smith”. Todo ano você ouve que eles vão checar os passaportes, mas eles
nunca fazem isso. Isso faz parte da farsa de dizer que se você não tem seu nome
no ingresso, você está em apuros. É uma grande mentira.
O Ricardo Teixeira e o João Havelange (ex-presidente da CBF
e da FIFA) têm relação com esse esquema?
O que nós sabemos é que antes de forçarmos o Teixeira a
sair, eles estava no Comitê Organizador Local, que fazia de tudo: ingressos,
estádios… Eu não sei qual fatia o Havelange ainda consegue. Ele tem 96 anos.
Mas Ricardo estava lá desde o começo. Ele preparou tudo, os negócios, tudo que
tinha a ver com a Copa. Nós o forçamos a sair apenas por escândalos externos,
ele não esperava por isso. Então você pode atribuir a ele tudo que está errado
com a Copa, porque antes dele sair, todos esses contratos já estavam sendo
arranjados, não são contratos novos. Ele diz que não tinha controle sobre o que
estava acontecendo. Ah, por favor…
O que você descobriu sobre o Ricardo Teixeira?
Eu investiguei as propinas dele na Suíça e os relatórios do
Álvaro Dias [da CPI da CBF]. As investigações nos relatórios provam que
Teixeira é um grande ladrão. Eu li todas as 500 mil palavras com a ajuda do
Google Tradutor [risos]. Você tem que fazer um ato muito criminoso antes de
entrar em uma máfia. Eu estaria errado se dissesse que a FIFA deu a Copa do
Mundo para o Brasil. Isso é besteira. Blatter deu a Copa do Mundo para o
Teixeira. Não a FIFA, o Blatter. São coisas diferentes.
A FIFA é uma máfia, uma família de crime organizado. No
livro, eu mostro que ela não é uma organização legítima. Os líderes são
ladrões, eles dividem tudo entre eles e estava na hora de dar ao Ricardo a sua
Copa do Mundo. A CBF estava falida e isso provou ao Blatter que Teixeira era
justamente o tipo que ele queria para organizar a Copa do Mundo.
Que pessoas e organizações lucram com a Copa do Mundo?
Vocês contribuintes pagam por ela. A FIFA consegue lucrar
com a bilheteria. Todos o dinheiro da FIFA vem da Copa do Mundo, é sua grande
fonte de renda. Nos outros torneios: futebol feminino, sub-17, sub-21, eles
perdem dinheiro. Mas eles precisam fazê-los para mostrar que são inclusivos. O
Valcke prevê que a FIFA vai ganhar US$ 2,7 bilhões com a Copa, os brasileiros
ficam bravos e ele responde: “Mas nós estamos colocando tanto dinheiro de
volta”. Isso não é verdade. Quando um quarto de hotel é alugado, isso não é
colocar dinheiro, é alugar um quarto de hotel!
Os patrocinadores, como McDonald’s, Visa, Samsung e outros
conseguem uma maravilhosa isenção fiscal de 12 meses pela “lei da FIFA”. O
Romário lutou contra ela, mas a Dilma forçou sua aprovação. A isenção fiscal
para eles é um fardo para vocês. Se eles não pagam os impostos, vocês pagam.
Eles estão roubando vocês! Essas empresas, como a Coca-Cola e a Samsung, estão
vendendo produtos e não há impostos! Não tem motivo! Se eu for começar uma
empresa em São Paulo, eu tenho isenção fiscal? Não, não tenho.
Então a Copa do Mundo é um pretexto para eles lucrarem?
Eu acho que nós poderíamos ter um campeonato mundial de
futebol sem eles. Nós não precisamos desse nível de pessoas não transparentes
só se preocupando com eles e com seus associados comerciais. Só o dinheiro da
venda dos direitos televisivos, que você conseguiria legitimamente, é
suficiente para pagar pela Copa do Mundo. As emissoras pagam uma fortuna para
transmitir. Você não precisa de negócios por baixo dos panos com patrocinadores
ou isenções fiscais especiais.
Fonte: Ihu
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