quarta-feira, 21 de maio de 2014

As prostitutas da Copa e as de sempre

Haja hipocrisia! Não é de agora que a prostituição grassa em Fortaleza e nas praias ao redor. Até as agulhas das rendeiras do Mercado Central de Fortaleza sabem que muitos taxistas da capital cearense andam com álbuns de fotos de mulheres em trajes sumários para oferecer aos turistas que chegam pelo aeroporto internacional Pinto Martins.


Por Laura Capriglione


Epa lá, meu senhor e minha senhora! Tudo bem, a Fifa é uma coisa horrorosa; a gente não compraria nem um carro usado do Joseph Blatter e, francamente, dá medo só de olhar para o rosto esticado do José Maria Marin (o presidente da CBF). Mas a má vontade com esses dois aí de cima não deve chegar ao ponto de obscurecer a razão e a gente colocar todo o imenso catálogo de problemas sociais brasileiros na conta da cartolagem futebolística.
E é este o ponto. A poucos dias da abertura do megaevento esportivo, as seleções ainda não chegaram, os jogos ainda não começaram e os protestos estão a dever em sensação --a gente já viu muita lixeira queimada; deu!
Então, a moda é falar de prostituição. Contam-se milhares de entradas no Google falando sobre a prostituição associada à Copa. Como esta, do jornal “Tribuna do Ceará", que veio com o título: “Às vésperas da Copa, Fortaleza fecha os olhos para prostituição ao lado do Castelão”.
Haja hipocrisia! Não é de agora que a prostituição grassa em Fortaleza e nas praias ao redor. Até as agulhas das rendeiras do Mercado Central de Fortaleza sabem que muitos taxistas da capital cearense andam com álbuns de fotos de mulheres em trajes sumários para oferecer aos turistas que chegam pelo aeroporto internacional Pinto Martins.
Pela avenida Beira-Mar inteira, basta o carro reduzir a velocidade para as marafonas aproximarem-se oferecendo seus serviços. E isso à luz do dia! Então, cadê a novidade?
Mas as “notícias” ficam ainda mais quentes quando relatam a exploração sexual de crianças e adolescentes. O jornal inglês “The Guardian” manchetou: “Tráfico sexual infantil no Brasil cresce em 2014, enquanto a Copa do Mundo se aproxima”.
E o sensacionalista “Daily Mirror”, também inglês, veio até com "grupos mafiosos internacionais", planejando o lançamento de uma onda de prostituição infantil organizada em torno dos estádios.
Para que sejamos honestos, é preciso, em primeiro lugar, distinguir as coisas que são diferentes. Prostituir-se no Brasil não é ilegal. Se uma mulher pobre preferir prostituir-se a fazer uma faxina, é direito dela. Ilegal é o rufianismo, a cafetinagem, a exploração do meretrício; fazer da prostituição um negócio.
Tudo isso, é claro, é muito diferente da exploração sexual de meninas e meninos, que se constitui em crime hediondo, assim como a extorsão mediante sequestro, o latrocínio e o estupro, entre outros.
Assim, é muito interessante ver como os jornais sensacionalistas adoram confundir mulheres feitas com meninas, e prostituição com exploração sexual de crianças. Tratam como iguais situações em tudo diferentes e que, logicamente, exigem políticas públicas completamente distintas. Não ajudam.
A exploração sexual de crianças e adolescentes tem de ser combatida a ferro e fogo. Sem transigir. Com a prostituição é diferente. Se a moça acha que a vida dela melhora sendo prostituta, quem somos nós para jogar a primeira pedra?
Agora, se formos contra a realização da Copa do Mundo por este motivo –ela atrairia e promoveria a prostituição e a exploração de crianças— teríamos de nos opor também ao Carnaval, ao Rodeio de Barretos, à realização da etapa brasileira da Fórmula 1, em São Paulo, e a todo evento turístico de maneira geral.
Deveríamos desconfiar até da visita do papa. Porque são todas elas atividades que atraem gente com alguma moeda sonante no bolso e grande disposição para comprar diversão (lícita e ilícita), além de diárias em hotéis, comida em restaurantes, lembrancinhas para a família etc. etc.
Nos Estados Unidos, o faturamento do turismo alcança os píncaros de US$ 128,6 bilhões por ano (é o recorde mundial). Na Espanha, a indústria do turismo gera US$ 55,9 bi. O Brasil ainda engatinha, na 39ª posição dos destinos mais procurados. Os turistas estrangeiros deixam aqui meros US$ 6,6 bi.
Na Copa da África do Sul, em 2010, cerca de 40.000 prostitutas provenientes de cada canto do continente africano disputaram uma clientela formada por 450.000 mil torcedores de todo o mundo (estima-se que, no Brasil, o número de torcedores internacionais bata na casa dos 600.000).
Eu conversei com Francine Dobb, então com 28 anos, que fazia ponto dentro do bar do hotel 3 estrelas localizado no distrito de Sandton, centro financeiro de Joannesburgo.
Francine viajou do Congo para a maior cidade da África do Sul. Largou com a mãe dela os dois filhos em uma vila vizinha da fronteira com Ruanda --o país que em dez dias de 1994, presenciou o genocídio de 800.000 pessoas.
Com uma tragédia vivida tão de perto, a moça negra, ainda assim, temia a violência de África do Sul, campeã mundial em estupros e em pessoas contaminadas com o vírus da Aids. “Já escapei de muita coisa para querer, agora, sofrer com isso”, disse, pragmática.
É isso mesmo. Apesar de algumas vocações inatas, a indústria da prostituição origina-se fundamentalmente da necessidade extrema, andando de mãos dadas com a falta de oportunidades. E isso só se combate com desenvolvimento econômico, educação e distribuição de renda.
Aqui também há milhares de Francines, que viajarão quilômetros e quilômetros até uma das sedes da Copa para fazer uma renda extra, prostituindo-se.
Banir a Copa do Mundo do Brasil, fora os moralismos de ocasião, não encherá barriga de ninguém, não dará mais dignidade a essas mulheres. Apenas as deixará mais pobres.
Também servirá para provar nossa incapacidade de criar uma verdadeira indústria do turismo neste país imenso e lindo.
PS: se você vir uma criança ou adolescente sendo abusado ou explorado sexualmente, disque 100, o Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Vale para a Copa e para sempre.

Fonte: Yahoo Noticias


Laura Capriglione, 54, é jornalista. Nasceu em São Paulo e cursou Física e Ciências Sociais na USP. Trabalhou como repórter especial do jornal “Folha de S.Paulo” entre 2004 e 2013. Dirigiu o Notícias Populares (SP), foi diretora de novos projetos na Editora Abril e trabalhou na revista “Veja”. Conquistou o Prêmio Esso de Reportagem 1994, com a matéria “Mulher, a grande mudança no Brasil”, em parceria com Dorrit Harazim e Laura Greenhalgh. Foi editora-executiva da revista até 2000.

Nenhum comentário: