Haja hipocrisia! Não é de agora que a prostituição grassa em
Fortaleza e nas praias ao redor. Até as agulhas das rendeiras do Mercado
Central de Fortaleza sabem que muitos taxistas da capital cearense andam com
álbuns de fotos de mulheres em trajes sumários para oferecer aos turistas que
chegam pelo aeroporto internacional Pinto Martins.
Por Laura Capriglione
Epa lá, meu senhor e minha senhora! Tudo bem, a Fifa é uma
coisa horrorosa; a gente não compraria nem um carro usado do Joseph Blatter e,
francamente, dá medo só de olhar para o rosto esticado do José Maria Marin (o
presidente da CBF). Mas a má vontade com esses dois aí de cima não deve chegar
ao ponto de obscurecer a razão e a gente colocar todo o imenso catálogo de
problemas sociais brasileiros na conta da cartolagem futebolística.
E é este o ponto. A poucos dias da abertura do megaevento
esportivo, as seleções ainda não chegaram, os jogos ainda não começaram e os
protestos estão a dever em sensação --a gente já viu muita lixeira queimada;
deu!
Então, a moda é falar de prostituição. Contam-se milhares de
entradas no Google falando sobre a prostituição associada à Copa. Como esta, do
jornal “Tribuna do Ceará", que veio com o título: “Às vésperas da Copa,
Fortaleza fecha os olhos para prostituição ao lado do Castelão”.
Haja hipocrisia! Não é de agora que a prostituição grassa em
Fortaleza e nas praias ao redor. Até as agulhas das rendeiras do Mercado
Central de Fortaleza sabem que muitos taxistas da capital cearense andam com
álbuns de fotos de mulheres em trajes sumários para oferecer aos turistas que
chegam pelo aeroporto internacional Pinto Martins.
Pela avenida Beira-Mar inteira, basta o carro reduzir a
velocidade para as marafonas aproximarem-se oferecendo seus serviços. E isso à
luz do dia! Então, cadê a novidade?
Mas as “notícias” ficam ainda mais quentes quando relatam a
exploração sexual de crianças e adolescentes. O jornal inglês “The Guardian”
manchetou: “Tráfico sexual infantil no Brasil cresce em 2014, enquanto a Copa
do Mundo se aproxima”.
E o sensacionalista “Daily Mirror”, também inglês, veio até
com "grupos mafiosos internacionais", planejando o lançamento de uma
onda de prostituição infantil organizada em torno dos estádios.
Para que sejamos honestos, é preciso, em primeiro lugar,
distinguir as coisas que são diferentes. Prostituir-se no Brasil não é ilegal.
Se uma mulher pobre preferir prostituir-se a fazer uma faxina, é direito dela.
Ilegal é o rufianismo, a cafetinagem, a exploração do meretrício; fazer da
prostituição um negócio.
Tudo isso, é claro, é muito diferente da exploração sexual
de meninas e meninos, que se constitui em crime hediondo, assim como a extorsão
mediante sequestro, o latrocínio e o estupro, entre outros.
Assim, é muito interessante ver como os jornais
sensacionalistas adoram confundir mulheres feitas com meninas, e prostituição
com exploração sexual de crianças. Tratam como iguais situações em tudo
diferentes e que, logicamente, exigem políticas públicas completamente
distintas. Não ajudam.
A exploração sexual de crianças e adolescentes tem de ser
combatida a ferro e fogo. Sem transigir. Com a prostituição é diferente. Se a
moça acha que a vida dela melhora sendo prostituta, quem somos nós para jogar a
primeira pedra?
Agora, se formos contra a realização da Copa do Mundo por
este motivo –ela atrairia e promoveria a prostituição e a exploração de
crianças— teríamos de nos opor também ao Carnaval, ao Rodeio de Barretos, à
realização da etapa brasileira da Fórmula 1, em São Paulo, e a todo evento
turístico de maneira geral.
Deveríamos desconfiar até da visita do papa. Porque são
todas elas atividades que atraem gente com alguma moeda sonante no bolso e
grande disposição para comprar diversão (lícita e ilícita), além de diárias em
hotéis, comida em restaurantes, lembrancinhas para a família etc. etc.
Nos Estados Unidos, o faturamento do turismo alcança os
píncaros de US$ 128,6 bilhões por ano (é o recorde mundial). Na Espanha, a
indústria do turismo gera US$ 55,9 bi. O Brasil ainda engatinha, na 39ª posição
dos destinos mais procurados. Os turistas estrangeiros deixam aqui meros US$
6,6 bi.
Na Copa da África do Sul, em 2010, cerca de 40.000
prostitutas provenientes de cada canto do continente africano disputaram uma
clientela formada por 450.000 mil torcedores de todo o mundo (estima-se que, no
Brasil, o número de torcedores internacionais bata na casa dos 600.000).
Eu conversei com Francine Dobb, então com 28 anos, que fazia
ponto dentro do bar do hotel 3 estrelas localizado no distrito de Sandton,
centro financeiro de Joannesburgo.
Francine viajou do Congo para a maior cidade da África do
Sul. Largou com a mãe dela os dois filhos em uma vila vizinha da fronteira com
Ruanda --o país que em dez dias de 1994, presenciou o genocídio de 800.000
pessoas.
Com uma tragédia vivida tão de perto, a moça negra, ainda
assim, temia a violência de África do Sul, campeã mundial em estupros e em
pessoas contaminadas com o vírus da Aids. “Já escapei de muita coisa para
querer, agora, sofrer com isso”, disse, pragmática.
É isso mesmo. Apesar de algumas vocações inatas, a indústria
da prostituição origina-se fundamentalmente da necessidade extrema, andando de
mãos dadas com a falta de oportunidades. E isso só se combate com
desenvolvimento econômico, educação e distribuição de renda.
Aqui também há milhares de Francines, que viajarão
quilômetros e quilômetros até uma das sedes da Copa para fazer uma renda extra,
prostituindo-se.
Banir a Copa do Mundo do Brasil, fora os moralismos de
ocasião, não encherá barriga de ninguém, não dará mais dignidade a essas
mulheres. Apenas as deixará mais pobres.
Também servirá para provar nossa incapacidade de criar uma
verdadeira indústria do turismo neste país imenso e lindo.
PS: se você vir uma criança ou adolescente sendo abusado ou
explorado sexualmente, disque 100, o Disque Denúncia Nacional de Abuso e
Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Vale para a Copa e para
sempre.
Fonte: Yahoo Noticias
Laura Capriglione, 54, é jornalista. Nasceu em São Paulo e
cursou Física e Ciências Sociais na USP. Trabalhou como repórter especial do
jornal “Folha de S.Paulo” entre 2004 e 2013. Dirigiu o Notícias Populares (SP),
foi diretora de novos projetos na Editora Abril e trabalhou na revista “Veja”.
Conquistou o Prêmio Esso de Reportagem 1994, com a matéria “Mulher, a grande
mudança no Brasil”, em parceria com Dorrit Harazim e Laura Greenhalgh. Foi
editora-executiva da revista até 2000.
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