Fátima conheceu o ex-marido “na melhor época” da sua vida,
segundo a própria. Ela tinha 15 anos; ele, 25. As ameaças faziam parte da
rotina do casal. A primeira aconteceu na praia.
Ele a levou para um penhasco e
garantiu que a mataria caso o relacionamento chegasse ao fim. Mesmo depois
desse e de outros episódios semelhantes, os dois foram morar juntos. “Querendo
ou não, eu gostava dele”, justifica Fátima. “Achava que ele poderia mudar.” A
primeira agressão física aconteceu numa noite de Natal. Fátima levou uma
cabeçada do marido que a fez desmaiar. Quando acordou, ela foi impedida de ir
para a casa dos pais pelos cunhados, cúmplices das inúmeras outras agressões
que Fátima viria a sofrer. Teve que ir para a casa que dividia com o marido.
A partir daí, chutes, socos, empurrões e ameaças de morte se
sucediam. “Eu pedia para nos separar; ele chorava muito, dizia que ia mudar.
Fui levando.” Os dois moravam fora do Brasil. Quando o filho caçula precisou
fazer uma cirurgia, Fátima voltou sozinha. Ficou hospedada na casa da sogra. Os
dois ficaram dois anos separados. Mas voltaram. Quando decidiu aceitar um
emprego, despertou a fúria do marido. Ele subiu em sua barriga e a socou
vigorosamente. A sogra assistiu à cena, imóvel. “Quando ele terminou, ela me
disse que a culpa era minha.” Fátima se mudou, mas não conseguiu completar nem
um mês no apartamento arranjado pela amiga. Em outra ocasião, ele tentou
matá-la com uma faca. Conseguiu fugir e se escondeu na casa da amiga. Em 2009,
fez a primeira denúncia.
Quando Fátima ganhou a guarda provisória dos filhos, o
marido mudou milagrosamente. Reaproximou-se, dizendo que estava fazendo
tratamento psicológico. Fátima acreditou e reatou o relacionamento. O inferno
recomeçou. “Ele disse que tinha feito aquilo tudo só para ter as crianças de
volta. Pegou minhas malas e jogou no meio da rua. Trancou o portão e me deixou
do lado de fora.” As agressões pioraram. Mesmo grávida, Fátima apanhou com uma
tora de pau. As crianças também sofriam a fúria inexplicável.
Quando pediu, novamente, a separação, o ex a jogou para fora
de casa, trancou todas as portas e mandou o filho do meio ligar o gás. “Ele
disse que eu poderia ir embora, mas que carregaria para sempre a culpa de ter
matado meus filhos”, relembra. Depois desse dia, ela ainda apanhou mais três
vezes. Uma frase dita por seu filho, hoje com 8 anos, a fez repensar esse
conceito. “Ele dizia que, quando crescesse, mataria o pai”, relembra.
O medo, ela confessa, também era da raiva posterior dos
fihos, pela omissão materna. “A gente que apanha é que nem usuário de drogas,
porque você sabe que é ruim, mas não consegue largar”, define. “Você começa a
se achar sem-vergonha, porque apanha e, depois de uma semana, volta a falar com
aquela pessoa, dorme do lado dela. Vi que tinha vida além daquilo.” Quando
chegou à casa abrigo, Fátima só conseguiu pensar em uma pergunta: “Vocês têm
cobertores para meus filhos?”.
Saindo do poço
Parar o ciclo da violência, especialmente quando há
envolvimento emocional com o agressor, é um processo que exige coragem. Eloisa
de Oliveira Alves, assistente social do Centro de Referência de Atendimento à
Mulher (Cram), explica que, quando as mulheres chegam, muitas já estão tão
machucadas que não sabem nem por onde começar. Sentem-se culpadas por denunciar
o marido ou companheiro, mas não suportam mais viver sob vigilância e
violência. “A maioria quer saber sobre as medidas protetivas de urgência.”
O primeiro passo é a visão geral dos fatos. “Quando elas
chegam, são acolhidas por dois especialistas de áreas diferentes, como
assistência social, jurídica ou psicossocial”, detalha. A visão
multidisciplinar ajuda a mapear o caso. Eloisa Alves explica que, segundo
pesquisas, são necessários cerca de 10 anos para que o ciclo de violência seja,
definitivamente, rompido. Mas é preciso começar.
De maneira geral, a assistente social explica que o que
impulsiona a mulher a dar um basta nas agressões são os filhos. O amparo da
lei, especialmente a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em setembro de
2006, também fez com que as vítimas ganhassem mais coragem para denunciar.
Entre os fatores que as impedem de falar, estão o medo do companheiro, a
vergonha de se admitirem vítimas e a questão socioeconômica, uma vez que muitas
dependem do dinheiro do marido para viver. “Muitas têm vários filhos e nenhuma
instrução ou qualificação profissional”, completa. “A questão religiosa e o
mito de que o casamento tem que ser para sempre também existem.”
Em seu estudo, a enfermeira Liliana Labronici, ex-professora
do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Paraná, encontrou
perfis de mulheres com os mais diferentes níveis de escolaridade, bem como
condições financeiras distintas. O que existe em comum, ela explica, é a
resistência à destruição do relacionamento. “Mas sempre chega um momento em que
alguma coisa acontece e ela diz ‘agora eu vou’.”
No caso das mulheres entrevistadas para a pesquisa, ela
conta que o estopim aconteceu quando o agressor tentou matar a mulher ou algum
dos filhos do casal. Antes disso, porém, há a chamada lua de mel, em que o
homem “volta ao normal” e jura nunca mais encostar um dedo sequer nela. “Isso
faz com que ela alimente uma falsa esperança de que ele pode vir a mudar”,
comenta Labronici. A “melhora” prova-se temporária, e tudo começa outra vez. No
entanto, a recaída não é considerada um obstáculo à resiliência. “Não há nada
que atrapalhe esse processo. O que existe são fatores de risco, como a
vulnerabilidade da mulher ou da criança.”
De onde vem o ódio
masculino às mulheres?
Os estudos nesse sentido ainda são incipientes, mas, de
acordo com Olgamir Amância Ferreira, secretária de Estado da Mulher, uma coisa
é certa: é preciso aprofundar o conhecimento. “Compreendemos que a violência
contra a mulher é uma questão da cultura da sociedade”, justifica. “Vivemos a
cultura patriarcal, que estabelece uma relação desigual de poder entre o
masculino e o feminino. O primeiro para mais e o segundo para menos.” Essa
cultura, repercutida no ambiente familiar, nas escolas e nos demais ambientes
de convivência, seria, então, uma das principais responsáveis pela violência
contra a mulher no futuro.
Dessa forma, a sociedade, de acordo com Olgamir, constrói a
base da violência. “Se é algo aprendido, é algo que pode ser redimensionado e
ressignificado”, pondera. É possível descontruir esse entendimento, uma vez que
ele não é natural. Partindo desse pressuposto, ela diz que já são feitos
trabalhos voltados para os agressores. Eles são atendidos pela mesma equipe
responsável por acolher as vítimas, formada por psicólogos, assistentes
jurídicos e assistentes sociais.
O atendimento é realizado, principalmente, com atividades
coletivas. O objetivo é fazer com que o homem reflita sobre a sua prática. “A
eles, são dadas informações acerca da violência”, completa Olgamir Ferreira.
Nesse acompanhamento, em que o homem tem a oportunidade de falar, ele é
estimulado a entender que há outras formas de lidar com o conflito além da
força, como o diálogo. “Outro motivo para esse trabalho é que esse homem vai
retomar esse relacionamento ou criar novos vínculos. Se ele não for trabalhado,
a violência vai se repetir.”
Eloisa de Oliveira Alves, assistente social do Centro de
Referência de Atendimento à Mulher (Cram), trabalhou cinco anos no atendimento
a homens agressores. Ela reforça: a violência nunca tem um fator único, que a
desencadeie. “É multifatorial. Há componentes culturais, históricos e a questão
de gênero na sociedade.” Apesar de não existir nenhuma justificativa para a
violência, ela conta que os principais motivos apontados pelos homens envolvem
o ciúme. “Eles misturam ciúme com amor. Vira um sentimento que eles não
entendem muito bem”, resume. Roupas não passadas, jantar que demorou a ser
pronto: tudo vira motivo para o espancamento.
O conflito é inerente às relações humanas. Aprender a lidar
com ele é que é o problema. Para Liliana Labronici, quando o assunto é
violência, o ponto principal é trabalhar a igualdade de gênero. “Agora, é a
hora de começar a se preocupar com o outro lado do problema.” Estudar o que
leva os homens a baterem em suas mulheres a fundo, produzir literatura sobre o
tema e, principalmente, realizar trabalhos em escolas são algumas sugestões de
enfrentamento. “É preciso saber mais sobre o ambiente em que esse homem
cresceu. Crianças que viram seus pais agredirem as mães tendem a repetir esse
comportamento”, analisa. “Enquanto houver desigualdade de gênero, haverá
violência”, frisa.
“Casei com ele,
achando que ele ia mudar”
Margarida é recatada, de fala baixa e sorridente. Quem a vê
nem imagina que os últimos 25 anos de sua vida foram marcados por socos, chutes
e até uma ameaça de morte, com arma na cabeça. Acima de tudo, ela se vê como
uma esperançosa. O que mudou foi o foco do sentimento: se antes ela rezava para
que o marido mudasse, agora ela espera pelo futuro, sem brigas ou violência.
“Quero sair dessa, ter uma nova vida. Vi a casa abrigo como uma oportunidade de
lutar, começar a viver, com meus filhos. Quero estudar, trabalhar, correr
atrás.”
Ela e o ex-marido se conheceram em um almoço de família. Ele
era o amigo de um amigo. O namoro já começou turbulento. Margarida até tentou
se separar, mas cedeu à chantagem emocional do companheiro, que ameaçou se
matar caso ela o deixasse. “Casei com ele, achando que ele ia mudar”, conta.
Ele nunca mudou. “Muitas vezes, tive que sair de madrugada para a casa de
parentes.” Certa vez, possesso, ele ligou o gás da cozinha perto do quarto em
que a mulher dormia. Ameaçou atear fogo. Os vizinhos chamaram a polícia, o
homem foi preso, mas liberado na mesma noite. “O que quero é justiça, que ele e
outros homens assim possam colher as consequências que eles plantam.”
O episódio do quase incêndio foi, para Margarida, a gota
d’água. O incidente e a prisão apenas pioraram o temperamento do ex-marido. Mas
foi quando o filho do casal, de 17 anos, começou a entrar no meio dos
espancamentos para defender a mãe que ela resolveu tomar uma providência.
Denunciou o marido e foi encaminhada para a casa abrigo. “Ele dizia que a
Justiça não existe. Ele achava que era inteligente para convencer, pagar
fiança.”
Há 20 dias na casa abrigo, contudo, a opinião dela já é
outra. “Está sendo um período de reflexão. Eu poderia ter feito isso antes.” Na
lista de afazeres de Margarida, voltar a estudar — sonho podado desde sempre
pelo marido, controlador — e a trabalhar estão como prioridades máximas. A
autoestima, esquecida em meio a tanta violência, parece querer retornar. “Já
estou procurando um lugar para morar e tudo vai dar certo agora”, comemora.
Fonte: www.sites.uai.com.br
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