O nascimento do Deus
criança só pode ser celebrado com coisas mansas. Mansas e pobres. Os pobres, no
seu despojamento, devem poder celebrar. Não é preciso muito.
Será que vou rezar?
É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que farei uma sopa de
fubá que tomarei com pimenta e torradas
SOU UM ADMIRADOR de Gandhi. Cheguei mesmo a escrever um
livro sobre ele. Estou planejando convocar os amigos para uma homenagem póstuma
a esse grande líder pacifista e vegetariano. Pensei que uma boa maneira de
homenageá-lo seria um evento numa churrascaria, todo mundo gosta de churrasco,
um delicado rodízio com carnes variadas, picanhas, filés, costelas, cupins,
fraldinhas, lingüiças, salsichas, paios, galetos e muito chope. O grande líder
merece ser lembrado e festejado com muita comilança e barriga cheia!
Eu não fiquei doido. O que fiz foi usar de um artifício
lógico chamado "reductio ad absurdum" que consiste no seguinte: para
provar a verdade de uma proposição, eu mostro os absurdos que se seguiriam se o
seu contrário, e não ela, fosse verdadeiro. Eu demonstrei o absurdo de se
celebrar um líder vegetariano de hábitos frugais com um churrasco.
Uma homenagem tem de estar em harmonia com a pessoa
homenageada para torná-la presente entre aqueles que a celebram. Uma refeição, sim.
Mas pouca comida. Comer pouco é uma forma de demonstrar nosso respeito pela
natureza. Alface, cenoura, azeitonas, pães e água.
Agora, um visitante de outro planeta que nada soubesse das nossas tradições, se ele comparecesse às festas de Natal, sem que nenhuma explicação lhe fosse dada, ele concluiria que o objeto da celebração deveria ser um glutão, amante das carnes, bebidas, do estômago cheio, das conversas em voz alta, do desperdício. Nossas celebrações de Natal são como as cascas de cigarra agarradas às árvores. Cascas vazias, das quais a vida se foi. Se perguntar às crianças o que é que está sendo celebrado, eles não saberão o que dizer. Dirão que o Natal é dia do Papai Noel, um velho barrigudo de barbas brancas amante do desperdício, que enche os ricos de presentes e deixa os pobres sem nada. (…) Pois é certo que as celebrações do Natal são orgias de ricos, celebrações do desperdício e lixo. Celebrações do lixo? Aquelas pilhas de papel de presente colorido em que vieram embrulhados os presentes, não são elas essenciais às celebrações? Rasgados, amassados, embolados num canto. Irão para o lixo. Quantas árvores tiveram de ser cortadas para que aqueles papéis fossem feitos. Para quê? Para nada. A indiferença com que tratamos o papel de presentes é uma manifestação da indiferança com que tratamos a nossa Terra.
Estou convidando meus amigos para uma celebração de Natal. Ela deverá imitar a ceia que José e Maria tiveram naquela noite: velas acesas, um pedaço de pão velho, vinho, um pedaço de queijo, algumas frutas secas. À volta de um prato de sopa de fubá – comida de pobre –, tentaremos reconstruir na imaginação aquela cena mansa na estrebaria, um nenezinho deitado numa manjedoura, uma estrela estranha nos céus, os campos iluminados pelos vaga-lumes. E ouviremos as velhas canções de Natal, e leremos poemas, e rezaremos em silêncio. Rezaremos pela nossa Terra, que está sendo destruída pelo mesmo espírito que preside nossas orgias natalinas. (…)
É uma cena: numa estrebaria uma criancinha acaba de nascer.
Sua mãe a colocou numa manjedoura, cocho onde se põe comida para os animais. As
vacas mastigam sem parar, ruminando. Ouve-se um galo que canta e os violinos
dos grilos, música suave... No meio dos animais tudo é tranqüilo. Os campos
estão cobertos de vaga-lumes que piscam chamados de amor. E no céu brilha uma
estrela diferente. Que estará ela anunciando com suas cores? O nascimento de um
Deus?
É. O nascimento de um Deus. Deus
é uma criança.
O nascimento do Deus criança só pode ser celebrado com
coisas mansas. Mansas e pobres. Os pobres, no seu despojamento, devem poder
celebrar. Não é preciso muito.
Um poema que se lê. Alberto Caeiro escreveu um poema que
faria José e Maria, os pais do menininho, rir de felicidade: "Num meio-dia
de fim de primavera, tive um sonho como uma fotografia: "Vi Jesus Cristo
descer a terra. Veio pela encosta do monte tornado outra vez menino. Tinha
fugido do céu...'" Longo, merece ser lido inteiro, bem devagar...
Uma canção que se canta. Das antigas. Tem de ser das
antigas. Para convocar a saudade. É a saudade que traz para dentro da sala a
cena que aconteceu longe. Sem saudade o milagre não acontece.
Algo para se comer. O que é que José e Maria teriam comido
naquela noite? Um pedaço de queijo, nozes, vinho, pão velho, uma caneca de
leite tirado na hora. E deram graças a Deus.
E é preciso que se fale em voz baixa. Para não acordar a
criança.
Naquela mesma noite, havia uma outra celebração no palácio
de Herodes, o cruel. Ele tinha medo das crianças e mataria todas se assim o
desejasse. A mesa do banquete estava posta: leitões assados, lingüiças, bolos e
muito vinho... Os músicos tocavam, as dançarinas rodopiavam. Grande era a
orgia.
É. Cada um celebra o que escolhe. Acho que vou fazer uma
sopa de fubá que tomarei com pimenta e torradas. E lerei poemas e ouvirei
música. E farei silêncio quando chegar a meia-noite e, quem sabe, rezarei?
Eu não comemoro o natal, não me importo com a passagem de
ano, não mais. Isso acontecia no passado. Coloquei esse texto aqui no blog
porque acho que as pessoas que dizem comemorar o natal devam refletir. Será que
é mesmo o natal que é comemorado? Ou está mais para uma reunião entre
familiares e amigos que irão se empanturrar e trocar presentes? Acho o natal
uma data hipócrita, pelo menos para a maioria, mas ninguém admite.
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
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