Lutamos para que as
relações entre as pessoas e o sexo não sejam mais um produto do mercado? Sim,
lutamos. Acreditamos que isso será possível nesse sistema econômico?
Definitivamente não. Mas é necessário garantir o controle da atividade hoje e
assegurar condições para seu exercício.
Por: Thais Ferreira,
Layza Queiroz e Maitê Maronhas*
A prostituição feminina sempre foi tema de diversas
discussões em todo o mundo. Poder público, religiões, academia e organizações
sociais, sobretudo feministas, protagonizam o debate e influenciam nas
políticas direcionadas a esse setor.
No Brasil, a aproximação da Copa do Mundo, o Projeto de Lei
4.211/2012 de autoria do Deputado Federal Jean Wilys, o episódio envolvendo o
Ministério da Saúde que determinou a suspensão de uma campanha institucional
com a divulgação da mensagem “Sou feliz sendo prostituta”, além da recente
visibilidade das organizações de prostitutas, do transfeminismo e da nova
configuração do feminismo no cenário nacional, trazem o assunto para a pauta do
dia.
As religiões, sobretudo de matrizes cristãs, moralizam o
discurso contrário a qualquer forma de regulamentação da atividade exercida
pelas prostitutas. A mulher que presta esse “tipo de serviço” é considerada, ao
mesmo tempo, vítima e pecadora, além de ser um exemplo de degradação dos
valores morais e ameaça à instituição familiar.
Enquanto assistimos o crescimento da influência e do poder
do fundamentalismo religioso nos ameaçando com retrocessos, o governo, por sua vez,
adota uma postura negligente e comete erros grosseiros no tratamento da
questão.
Por outro lado, as organizações sociais feministas e
transfeministas, assim como pesquisadoras e pesquisadores do tema, não
conseguem encontrar um consenso. As divergências variam desde a concepção sobre
prostituição como escolha e seguem pelo debate da regulamentação da atividade e
destinação de políticas públicas adequadas.
Todo esse contexto faz com que o debate da prostituição
fique em um verdadeiro limbo e o desamparo as prostitutas permanece. Qual a
nossa postura enquanto feministas?
O lugar da mulher no
sistema capitalista
A prostituição feminina está inegavelmente associada ao
patriarcado, às desigualdades sociais de gênero, à feminização da pobreza e à mercantilização
da vida.
O sistema capitalista transforma tudo em produto, inclusive
as relações e a vida das pessoas, atribuindo-lhe preços para venda no mercado.
Aliando-se ao patriarcado, o capitalismo se vale das diferenças de sexo e de
gênero para vulnerabilizar o sujeito feminino e potencializar sua exploração.
No Brasil, as mulheres ocupam os postos de trabalho mais
precarizados e recebem cerca de 30% a menos que os homens no desempenho das
mesmas funções. São cotidianamente vítimas das mais variadas manifestações da
violência sexista (física, sexual, psicológica, institucional, etc.) e estão
longe de alcançar o que chamamos de autonomia econômica.
Estes elementos contribuem para compreender a situação das
mulheres hoje e o contexto em que buscam meios para sua sobrevivência e de suas
famílias.
Nesse contexto, a
prostituição pode ser uma opção?
Quando questionadas acerca de deixar a atividade, muitas
colocam: de que outra forma conseguiria a renda que a prostituição me
proporciona?
Profissões como caixa de supermercado, atendentes de
telemarketing, domésticas, faxineiras, copeiras, são alternativas existentes no
mercado de trabalho para grande parte das mulheres. Mesmo com outros postos de
trabalho disponíveis, “muitas prostitutas indicam a venda do sexo como uma
atividade mais lucrativa e até menos desagradável” (1).
A exaustiva e precarizada jornada de trabalho das profissões
disponíveis, aliada à possibilidade de conquistar maior renda no exercício da
prostituição, faz com que muitas prefiram fazer sexo em troca de dinheiro a
trabalhar como doméstica ou caixista de supermercado em troca de quantia muito
menor.
Trabalhadoras domésticas, por exemplo, colocam seu tempo,
seu corpo e sua saúde à disposição de outras pessoas e estão submetidas a
condições precárias de trabalho, preconceito e exploração. Para elas também não
há “escolha livre”, sua condição é pré-determinada pela realidade econômica e
contexto social em que vivem.
Nós, feministas, defendemos que o trabalho doméstico e de
cuidados não deveria ser comercializado. Lutamos pela redução da jornada de
trabalho, o que permitiria que homens e mulheres cuidassem da reprodução da
vida e dividissem de forma justa os afazeres domésticos.
Mas, nem por isso, as mulheres que vendem trabalho doméstico
no mercado devem ficar desamparadas perante a legislação, apesar dessa venda
reforçar muito do que combatemos.
A grande questão é que a prostituição envolve sexo e, na
vivência da sexualidade, as mulheres são historicamente oprimidas pelos homens.
Contudo, essa realidade, infelizmente, não é uma exclusividade do sexo vendido.
Nas palavras de uma prostituta:
Pior: quando você casa
com um homem, aí sim ele se acha seu dono. O que eu faço aqui na rua não é
nadinha diferente daquilo que fazia em casa, quando era casada. Ou você acha
que trepava com meu marido todos os dias porque morria de tesão e amores por
ele? Não senhor! Era um trabalho, igual a esse aqui. Minto: era um dever. E
você não ganha nada por um dever. Aqui sou paga por aquilo que faço, pelo
menos. Meu marido nunca me pagou. Aliás, era eu que vivia dando dinheiro para
ele (Em: Amor um real por minuto – A prostituição como atividade econômica
no Brasil urbano (.pdf) texto de Ana Paula da Silva e Thaddeus Gregory
Blanchette).
Neste ponto, chegamos a uma necessidade inadiável no debate
da prostituição, que é esclarecer e distinguir algumas noções. É preciso parar
de confundir a venda do corpo com a venda do sexo, assim como é preciso
desfazer a associação automática da prostituição à exploração sexual e ao tráfico
humano. Essa confusão reforça a ideia de que a prostituição ocorre
invariavelmente à revelia das mulheres, o que não é uma verdade.
Segundo uma prostituta da região da Rua Augusta de São
Paulo: “Eu alugo umas sacanagens por uma boa grana. Isso de vender o corpo é
bobagem, Lis. Não vendo nada, não. É tudo meu!”. Em: Prostituição e a liberdade
do corpo (.pdf), texto de Elisiane Pasini.
Ainda, é fundamental distinguir a exploração sexual (quando
a venda do sexo ocorre sob coerção) da prostituição (quando uma mulher decide
se prostituir). Tratar a prostituta sempre como uma vítima incapaz de tomar
decisões por si mesma é subestimá-la.
Hoje em dia, quase nenhum trabalhador ou trabalhadora tem
condições de deixar o emprego simplesmente por querer, pois, via de regra, não
tem condições de simplesmente abrir mão de seu salário.
Limitada e viciada, como todas as nossas “escolhas” nos
marcos do capitalismo, a prostituição pode ser uma decisão que mulheres tomam
num dado contexto. Por mais que nós queiramos que as mulheres tenham um mundo
de possibilidades à sua disposição, nesse momento, elas não têm, e a ausência
de proteção e garantias às prostitutas se revela como mais uma violência contra
elas.
O sistema capitalista transforma tudo em mercadoria e o sexo
não pode ser visto como um campo alheio às relações socioeconômicas
capitalistas: “de fato, Friedrich Engels até faz questão de equiparar ‘a cortesã
habitual’ que ‘aluga o seu corpo por hora’ como a trabalhadora assalariada”
(2).
Lutamos para que as relações entre as pessoas e o sexo não
sejam mais um produto do mercado? Sim, lutamos. Acreditamos que isso será
possível nesse sistema econômico? Definitivamente não. Mas é necessário
garantir o controle da atividade hoje e assegurar condições para seu exercício.
Regulamentação da
prostituição
A situação das prostitutas no Brasil é de completa
desproteção e descaso. A ausência de regulamentação da atividade mantém as
mulheres expostas a situações de risco.
Violência, abusos e violação de direitos são características
inerentes à clandestinidade. Assim como a criminalização das drogas beneficia
as grandes máfias, a ausência de controle do Estado sobre a prostituição
favorece o tráfico de pessoas e a exploração sexual. A regulamentação
enfraquece quem lucra com a ilegalidade.
Deixar que o poder econômico e a autonomia privada regulem a
forma de realização da prostituição é ser, no mínimo, negligente para com as
mulheres. Aqui, reafirmamos o papel do Estado na garantia de direitos.
A regulamentação visa estabelecer parâmetros básicos para
que a atividade seja exercida. As casas de prostituição, como qualquer outro
local de prestação de serviços, demandam controle do Estado para fiscalização
das condições de trabalho, higiene e segurança.
É importante colocar que as casas de prostituição são
apontadas por elas como o local mais seguro para exercerem a atividade. O
ambiente das ruas é perigoso, não só no processo de negociação com o cliente,
como também pela própria sociedade que as hostiliza e ameaça constantemente.
Nas palavras de uma prostituta da Paraíba, em relato sistematizado pela
Associação das Prostitutas (APROS):
“Tem cliente que queria obrigar. Mas quando o cliente
chegava a querer obrigar, chamava os homens da pousada. Por isso que eu nunca
me passei a sair, entrar no carro com um homem e ir pra outro lugar, algum
canto desconhecido. Porque aqui perto, tem as pousadas, ai a gente chama o
proprietário; olhe, ele que me obrigar a isso e aquilo.” (M. 25 anos). (3)
É claro que a venda do sexo nas casas de prostituição tem um
importante componente de expropriação e de exploração, assim como em todo
trabalho vendido no mercado: no capitalismo, o patrão se apropria de
praticamente toda a riqueza gerada pela força-de-trabalho.
Na legislação atual, o exercício individual da prostituição
não é um crime, mas a associação destinada à prestação deste serviço é
considerada ilegal — sujeita à detenção de dois a cinco anos (art. 228 do
Código Penal). Ou seja, se as prostitutas se organizarem para prestar o serviço
de forma independente da figura do cafetão, elas também estarão cometendo um
crime.
Nesse contexto, a regulamentação pode permitir que as
prostitutas se organizem de forma autônoma, a exemplo da ideia de cooperativas
sugerida no Projeto de Lei 4.211/2012.
Sabemos que a prostituição envolve elementos específicos da
relação de poder homem-mulher que não podem deixar de ser considerados.
Contudo, os relatos das prostitutas indicam a ausência da regulamentação e de
direitos como sendo o principal problema. Por que seguimos ignorando o que elas
estão dizendo?
A regulamentação é importante na medida em que reconhece as
prostitutas, no exercício de sua atividade, como sujeito de direitos, sendo
alvo de garantias legais e políticas públicas efetivas.
Ademais, é sabido que a prostituição é quase sempre a única
fonte de trabalho e renda das pessoas trans*. A postura inegociavelmente
contrária a qualquer regulamentação da atividade chega a ser irresponsável para
com a população transexual e travesti, que vive toda a sua vida à margem de
direitos e de cidadania.
É contraditório continuarmos militando no campo do ideal.
Até que as mulheres tenham autonomia econômica e sexual, a situação da
prostituição no país não pode continuar nessa penumbra: legalmente reconhecida
como trabalho pelo Ministério do Trabalho e Emprego, porém não regulamentada.
Quem perde são as prostitutas. Quem perde são as mulheres.
Referências
(1) e (2) SILVA, Ana Paula da e BLANCHETTE, Thaddeus
Gregory. Amor Um Real Por Minuto: a prostituição como atividade econômica no
Brasil urbano (.pdf).
(3) LEITE, Davi Valentim de Sousa. A formalização da relação
de trabalho das profissionais do sexo. Monografia defendida para conclusão do
curso de Direito na Escola de Estudos Superiores de Viçosa, 2009.
Fonte: www. marchamulheres.wordpress.com
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