“Cada vez menos casos serão revelados. Vamos viver uma sociedade clandestina, com uma situação grave que envolve crianças e adolescentes totalmente na invisibilidade por causa da descrença na Justiça e dos danos que ela sofre quando torna visível ".
Apesar do crescente envolvimento e da mobilização de
diversos setores da sociedade civil e do poder público no enfrentamento à
violência sexual contra crianças e adolescentes; ainda que tenha sido elaborado
um plano nacional nesse sentido, no ano 2000, com princípios, metas e
estratégias para combater esses crimes; embora o Brasil tenha recebido a visita
do relator especial da ONU sobre venda de crianças, prostituição e pornografia
infantil, em 2003, que elaborou um relatório com recomendações para reverter a
situação encontrada; e mesmo que tenha sido constituída uma CPMI (Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito) em 2003 e 2004 específica para investigar redes
envolvidas com esse tipo de crime, a exploração sexual infanto-juvenil continua
sendo um grave problema que atinge meninas e meninos de todo o Brasil.
As ações de prevenção e de atendimento psicossocial às
vítimas são fundamentais, mas a ausência de punição aos responsáveis por esses
crimes também consiste num dos principais entraves ao enfrentamento desse tipo
de violações dos direitos de crianças e adolescentes. A certeza da impunidade
perpetua a violência sexual, e a absolvição em si dá mais força ao agressor,
que se sente livre para continuar cometendo esses crimes, além de gerar danos
secundários nas vítimas e em seus familiares.
Para Neide Castanha, coordenadora do Comitê Nacional de
Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, “nosso grande
vilão, nosso grande inimigo no vencimento dessa questão é a impunidade”, que
além da dimensão pessoal tem uma dimensão social, com conseqüências
desastrosas.
“Cada vez menos casos serão revelados. Vamos viver uma
sociedade clandestina, com uma situação grave que envolve crianças e
adolescentes totalmente na invisibilidade por causa da descrença na Justiça e
dos danos que ela sofre quando torna visível. Já pensou como será quando não se
puder acudir, reduzir os danos de vítimas de violência sexual? Sendo o abuso
sexual um fator de risco para a exploração sexual, uma pessoa abusada na
infância está muito mais vulnerável a ser uma presa mais fácil para o
aliciamento das redes da exploração sexual, para o tráfico, para o turismo,
para a prostituição infantil, porque o uso de seu corpo e da sua sexualidade
foi banalizado”, avalia Neide. A vantagem hoje, diz ela, é que esses fatores
estão postos na mesa, não estão mais debaixo do tapete.
Tais fatores que levam à impunidade nesses crimes são
múltiplos. Eles vão desde o medo e a vergonha de denunciar até a ineficiência
da polícia para cumprir mandados de prisão, passando por falta de estrutura e
de capacitação dos policiais, inquéritos mal feitos, morosidade nos processos,
ameaças por parte dos agressores, falta de habilidade e sensibilidade dos
juízes para inquirir as vítimas, falta de prioridade a esses casos, entre
outros motivos.
A questão cultural relacionada aos crimes de violência
sexual infanto-juvenil permeia todas as etapas do processo de
responsabilização. A impunidade pode ser atribuída, de acordo com a deputada
federal Maria do Rosário (PT-RS), relatora da CPMI da Exploração Sexual, “à
cultura que naturaliza essa violência e a relações hierárquicas em que o
feminino, como gênero, está subordinado hierarquicamente ao masculino, e a
criança subordinada ao adulto. O mesmo viés, o caminho que está a cada momento
naturalizando a abordagem sexual de crianças por adultos em vários lugares do
Brasil e do mundo é o mesmo caminho que faz com que isso seja visto como algo
de menor importância no âmbito da polícia, do poder judiciário ou do Ministério
Público na hora de responsabilizar esses que promovem esse tipo de abordagem”,
explica.
Exploração sexual
Segundo a coordenadora do comitê nacional, a sociedade
coloca essas situações no campo privado e as vítimas acabam virando as
culpadas. “Ainda temos uma sociedade conservadora para novos padrões morais e
éticos de direitos, sobretudo o direito à sexualidade”, avalia Neide. Os casos
de exploração sexual raramente chegam às delegacias e menos ainda ao poder
judiciário porque as vítimas muitas vezes não se reconhecem como tal. Além
disso, costuma haver conivência da família, que conta com o dinheiro obtido por
seus filhos nessas atividades para a sobrevivência. Quando o caso está na
Justiça é comum as vítimas e testemunhas negarem os crimes, protegerem os
agressores, afirmando que eles só estavam ajudando. Como geralmente são famílias
em situação de extrema pobreza, o criminoso muitas vezes “compra” a sua
absolvição com relativa facilidade.
Nos municípios do interior a situação costuma ser ainda mais
complicada, já que o envolvimento de políticos, juízes, empresários e
religiosos é freqüente. “Normalmente, essas pessoas que têm maior poder
aquisitivo constituem bancas de advogados maiores, que utilizam um sem número
de recursos, que acabam fazendo com que o processo dure mais”, afirma Patrícia
Campos, coordenadora do eixo de direito à proteção do Centro de Defesa da
Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE). Por conta do prestígio com que
contam os acusados nessas cidades pequenas, não é raro que seus habitantes se
voltem contra as vítimas, responsabilizando-as pelos crimes cometidos contra
elas.
Um exemplo emblemático disso é o caso de Santana de Acaraú,
um dos municípios mais pobres do interior cearense, em que um padre foi acusado
de explorar sexualmente meninas de 9 a 16 anos. Desde que ele foi denunciado,
as vítimas sofreram pressões e humilhações por parte de grande parte dos
moradores da cidade e acabaram sendo agredidas verbal e fisicamente. “O caso
gerou uma comoção social no município tremenda ao ponto de ter havido um
episódio em que as meninas iam prestar depoimento, tinham que passar por uma
ponte para ir até o Fórum e a cidade toda se pôs em uma extremidade da ponte
para elas não passarem. Elas foram postas numa situação de execração pública
mesmo, de perseguição. Não porque a população achasse que a agressão não havia ocorrido,
mas porque achavam que elas não deveriam denunciar o padre”, conta Patrícia.
O acusado conseguiu adiar diversas vezes as audiências de
oitiva das vítimas e, no dia em que finalmente isso ia acontecer, a sua defesa
instaurou um procedimento de suspeição contra a juíza da comarca, alegando que
ela estaria sendo influenciada pela mídia e pela mobilização das entidades de
defesa dos direitos da infância. O Tribunal de Justiça levou quase três anos
para decidir sobre essa questão, o que só ocorreu neste ano, permitindo que o
processo tivesse continuidade. “Nisso, a vida das vítimas se transformou de tal
maneira que hoje pode estar pior do que antes. Ficamos muito preocupados com
essa resposta que o judiciário dá porque às vezes a demora no processo é quase
a mesma coisa que o não reconhecimento do direito”, diz a coordenadora do
Cedeca-CE.
A deputada Maria do Rosário afirma que já está cansada de
meninos e meninas serem julgados nas sentenças, particularmente as meninas. “Os
juízes começaram a julgá-las de acordo com a aparência física, com o porte
físico, com que tipo de roupa usam, com o jeito de falar. E a tese da
provocação, da abordagem, da sexualidade diferenciada entre homens e mulheres,
em que ela provocou, em que os mecanismos de sedução partem do mundo feminino,
e os de não controle estão no âmbito da sexualidade masculina, reproduzem o que
ao rumo da história a gente sempre ouviu. Enquanto o poder judiciário não se
der conta disso, não vamos conseguir avançar”, acredita.
Em Tauá, município no interior do Ceará, por exemplo, cinco
homens foram acusados de explorar sexualmente seis meninas com menos de 14
anos, que mantinham relações sexuais com eles em troca de dinheiro. A sentença
em primeira instância, publicada em março deste ano, que absolve todos os
acusados, ilustra o freqüente julgamento a que são submetidas as vítimas de
violência sexual, numa total inversão do papel do magistrado. Ele fala, por
exemplo, das “condutas desregradas de menores que venham a se prostituir” e que
a “vida pregressa das mesmas era anormal à vida em sociedade”, sendo “duvidosa
a inocência e pureza das vítimas”. Conclui a partir disso que, “na incerteza
quanto à vida sexual das vítimas, vigora o princípio da presunção de inocência,
posto que não vai interessar, in casu, se houve, ou não, penetração,
ejaculação, etc”. Tudo isso embora reconheça que os acusados realmente
mantinham relações sexuais com as vítimas (“pela robusta prova testemunhal
carreada no processo, foi apurado que os autores sempre satisfaziam seus interesses
sexuais com o consentimento das pretensas vítimas”).
“O juiz entendeu que o fato de as meninas já serem
vulneráveis, já serem exploradas anteriormente, fazia delas pessoas que não
mereciam ser protegidas pelo Estado e que mesmo reconhecendo o fato em si, que
o cidadão havia mantido relações sexuais com meninas de 11, 12 anos, a conduta
era atípica, não puniu ninguém, desconsiderou completamente o artigo 244 do
ECA. O colega promotor recorreu ao tribunal, os acusados que estavam presos
foram soltos e fica o exemplo para a comunidade, como se as meninas fossem
culpadas de sua própria exploração”, avalia a promotora de Justiça Edna da
Mata, da vara especializada em crimes contra a criança e o adolescente de
Fortaleza.
Em muitos casos, a própria polícia acaba sendo pressionada
para não dar seguimento ao inquérito. Waldemar Oliveira, coordenador executivo
do Cedeca-Bahia, conta que há pouco mais de dois anos, no município de
Pintadas, interior baiano, ele entrou em contato com uma delegada que estava
investigando um caso de exploração sexual infanto-juvenil que envolvia
políticos, fazendeiros e comerciantes locais. Pouco mais de um mês depois do
primeiro contato, ele foi informado de que ela havia sido transferida da cidade,
em função desse inquérito.
“Consegui localizá-la em outro município, já numa outra
delegacia, e ela me disse ‘o senhor não sabe o que eu sofri com aquele
inquérito, as pressões foram enormes, adoeci em função disso, tive que colocar
vigilância e cães dentro de minha casa para me proteger e tive de sair da
cidade. Vou dizer uma coisa ao senhor: se eu tiver informação de um caso
semelhante àquele, eu não instauro mais inquérito’. Esse é um dado de realidade
do nosso Estado”, lamenta Oliveira.
Abuso sexual
Quando se trata de abuso sexual, as peculiaridades desse
tipo de crime contribuem de forma significativa para a impunidade. Uma
dificuldade grande a ser enfrentada pela Justiça é que o agressor, na maior
parte dos casos, é uma pessoa próxima à vítima, geralmente pai, padrasto, tio,
avô, amigo da família ou vizinho. Nos casos de abuso sexual intra-familiar, a
denúncia e o processo judicial costumam desorganizar a família porque muitas
vezes o agressor é provedor da casa ou a mãe ainda está envolvida emocionalmente
com ele. Não são raros os casos em que ela acaba pressionando a filha a retirar
a queixa na delegacia ou a mudar a versão dos fatos no depoimento judicial,
para preservar a família. Por serem pessoas próximas, o medo de ameaças e
retaliações também pode alterar a fala da menina ou do menino e de seus
familiares.
Além disso, como é um crime que geralmente ocorre entre
quatro paredes, sem testemunhas, e que em grande parte dos casos não deixa
vestígios, muitos abusadores acabam absolvidos por ausência de provas
materiais. Por isso, a palavra da criança ou do adolescente é uma prova
fundamental nesses processos, mas a falta de sensibilidade ou de habilidade de
muitos juízes pode impedir ou prejudicar o depoimento da vítima. A freqüente
falta de credibilidade do magistrado em relação ao relato da criança, muitas
vezes acusada de mentir e fantasiar demais, também pode invalidá-lo.
Outro problema comum é que os exames periciais, no instituto
Médico Legal, costumam ser feitos muito tempo depois de ocorrido o fato, o que
dificulta ainda mais a obtenção de provas.
Em alguns casos, o abusador chega a ser julgado e condenado,
mas é a própria polícia que não cumpre o mandado de prisão. Em Cabo de Santo
Agostinho, município do litoral de Pernambuco, próximo à Recife, uma menina de
13 anos foi abusada sexualmente pelo vizinho, responsável por cuidar dela e de
seus irmãos enquanto o pai trabalhava de vigilante noturno. Depois de um
processo que durou sete anos, e de muita persistência do pai da vítima, o réu foi
condenado. Apesar dessa sentença, até hoje o mandado de prisão não foi cumprido
pela polícia local.
“A comunidade sabe quem é o agressor, no caso da violência
da criança e do adolescente, o pai, o padrasto, alguém do convívio da vítima. A
polícia não precisa de muitos elementos para saber quem é ele, não precisa ir
muito longe. Então, o que falta para essa polícia fazer um serviço mais
apurado, um trabalho mais correto? Precisa que ela esteja mais envolvida com a
questão da infância e juventude. Eu acredito na capacitação, na formação das
pessoas, mas acredito também na sensibilização e nas mudanças de paradigma.
Quando essa polícia entender que criança e adolescente é sujeito de direitos,
prioridade absoluta e que deve ser tratado com respeito a infância e a
juventude não serão tão desrespeitadas”, acredita a advogada Lucidalva
Nascimento, do Centro das Mulheres do Cabo.
Fonte: ( Fernanda Sucupira) Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário