“Itens de higiene se
tornam moeda de troca dentro dos presídios femininos, tão valiosos quanto
cigarros, serviços de manicure e cabelereiro, entre outros”, informa a
jornalista.
“É internacionalmente reconhecido que o sistema
penitenciário feminino brasileiro é inadequado”, afirma a jornalista Nana
Queiroz (foto abaixo), responsável pelo blog Presos que Menstruam, onde divulga
informações sobre o sistema carcerário feminino.
Segundo ela, entre as precariedades das penitenciárias
brasileiras, destaca-se o fato de as mulheres terem um tratamento similar ao
dos homens, sem acesso à saúde e cuidados com higiene. “O poder público parece
ignorar que está lidando com mulheres e oferece um ‘pacote padrão’ bastante
similar ao masculino, nos quais são ignoradas a menstruação, a maternidade, os
cuidados específicos de saúde, entre outras especificidades femininas”,
ressalta na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.
Nana informa que atualmente existem 53 penitenciárias
femininas no país, mas muitas mulheres “são mantidas em delegacias de polícia e
carceragens superlotadas e com estrutura inadequada”. Segundo ela, as detentas
reclamam de acesso à saúde, e narram casos em que “policiais e carcereiros
resistiram até o último minuto para levar mulheres em trabalho de parto para o
hospital – em alguns casos, as mulheres deram à luz na própria cadeia”. E
dispara: “Uma coisa que não lhes falta são ansiolíticos e antidepressivos. É
praxe, segundo as detentas, que a administração dos presídios e os médicos
responsáveis receitem remédios controlados para mantê-las ‘dóceis’. É muito
mais difícil controlar mulheres que tenham crises de pânico, de ansiedade, de
depressão (o que é comum de se esperar, dadas as circunstâncias). Mulheres
dopadas dão muito menos trabalho”.
Nana Queiroz se formou em jornalismo pela Universidade de São
Paulo - USP em julho de 2010. É especialista em Relações Internacionais, com
ênfase em direitos humanos, pela Universidade de Brasília - UnB. Estudou
relações internacionais também em Nova York e na Finlândia. Trabalhou nas
revistas Época e Galileu e como repórter da editoria de internacional no site
da revista Veja. No Jornal Correio Braziliense, foi repórter de variedades.
Hoje é editora de cultura do Jornal Metro de Brasília. Ela também é responsável
pelo blog Presos que Menstruam.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual a situação do sistema carcerário feminino
brasileiro? Quantas penitenciárias femininas existem no país?
Nana Queiroz - Em 2012, durante a Revisão Periódica
Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o Brasil foi repreendido
por desrespeitar os direitos humanos em seu sistema carcerário, especialmente
por ignorar questões de gênero. Ou seja, é internacionalmente reconhecido que o
sistema penitenciário feminino brasileiro é inadequado. O poder público parece
ignorar que está lidando com mulheres e oferece um "pacote padrão"
bastante similar ao masculino, nos quais são ignoradas a menstruação, a
maternidade, os cuidados específicos de saúde, entre outras especificidades
femininas.
É até mesmo difícil dizer exatamente quantos locais abrigam
detentas no Brasil hoje, já que muitas delas são mantidas em delegacias de
polícia e carceragens superlotadas e com estrutura inadequada Brasil afora. Em
dezembro de 2012, porém, um levantamento do Ministério da Justiça apontou que existiam
53 penitenciárias, 4 colônias agrícolas, 7 casas de albergados, 9 cadeias
públicas e 5 hospitais de custódia (para presas com problemas mentais) no país.
IHU On-Line - Qual é o perfil das presas?
Nana Queiroz - Segundo levantamento realizado pelo
Ministério da Justiça em 2012, havia, na ocasião, 31.552 mulheres presas no
país. Destas, 3.733 tinham Ensino Médio incompleto, 13.584 não haviam
completado o Ensino Fundamental, 2.486 tinham sido apenas alfabetizadas e 1.382
eram analfabetas. Só 272 haviam concluído o Ensino Superior. Esses dados
mostram que o perfil da mulher presa, hoje, inclui a baixa escolaridade e, como
consequência, proveniência de classes mais pobres. Segundo minha pesquisa (que
foi qualitativa e não quantitativa) é uma população majoritariamente negra ou
mestiça.
O levantamento também confirma uma tese antiga de ativistas
da área: depois que as mulheres assumiram a chefia da casa (com seus salários
sempre menores do que os homens que ocupam os mesmos cargos), sentiram aumentar
também a pressão financeira sobre elas. Isso teria feito com que o número de
mulheres presas saltasse de 16.473 em dezembro de 2004 para os atuais 31.552.
Não é à toa que a maioria delas é acusada de crimes que serviriam como
complemento de renda: 6.697 são detidas por crimes contra o patrimônio e 17.178
por tráfico de entorpecentes.
IHU On-Line - Como a maternidade e os cuidados com a saúde
das mulheres são tratados nas penitenciárias femininas? Elas têm acesso a
exames, medicamentos, tratamento médico?
Nana Queiroz - Veja bem, o tratamento de saúde da mulher
pobre no Brasil é precário, o que já nos dá uma boa dimensão de como deve ser
dentro de uma penitenciária (ou pior, em delegacias e carceragens inadequadas).
Logo, essas mulheres, grávidas ou não, chegam às penitenciárias com um
histórico bem lamentável de cuidados médicos. Algumas são dependentes químicas,
outras grávidas que nunca fizeram o pré-natal, outras se sujeitaram a Doenças
Sexualmente Transmissíveis - DSTs. As presas que entrevistei relataram
encontrar dificuldades em receber atendimento médico preventivo (como
papanicolau, por exemplo).
Também narraram casos em que policiais e carcereiros
resistiram até o último minuto para levar mulheres em trabalho de parto para o
hospital – em alguns casos, as mulheres deram à luz na própria cadeia.
Agora uma coisa que não lhes falta são ansiolíticos e
antidepressivos. É praxe, segundo as detentas, que a administração dos
presídios e os médicos responsáveis receitem remédios controlados para
mantê-las "dóceis". É muito mais difícil controlar mulheres que
tenham crises de pânico, de ansiedade, de depressão (o que é comum de se
esperar, dadas as circunstâncias). Mulheres dopadas dão muito menos trabalho.
IHU On-Line - E no que se refere à higiene diária? Você
mencionou em recente entrevista que as mulheres não recebem absorventes. Pode
nos relatar como é a rotina das presas nesse aspecto?
Nana Queiroz - Esse é dos problemas mais patentes. Recebi
diversos relatos, tanto em penitenciárias quanto em delegacias, de que não são
distribuídos os itens e higiene suficientes. Isso é ainda mais grave para
mulheres abandonadas pela família (um grande percentual das detentas). Nestes
casos, elas procuram substituir os absorventes por papel higiênico, jornal ou
até mesmo miolo de pão enrolado, que serve como um O.B. improvisado. Logo,
itens de higiene se tornam moeda de troca dentro dos presídios, tão valiosos
quanto cigarros, serviços de manicure e cabelereiro, entre outros.
IHU On-Line - Que atendimento é disponibilizado para
gestantes?
Nana Queiroz - Não consegui autorização para entrar nas
penitenciárias próprias para gestantes, logo, o que vou dizer aqui advém de
relatos de presas e ativistas. Algumas delas alegam nunca ter visto um
ginecologista ou obstetra durante a gestação. Outras contam ter dormido no chão
já com gravidez avançada ou com o bebê recém-nascido. Uma delas, a quem chamo
de Gardênia em minha pesquisa, relatou ter tido infecção severa nos pontos de
uma cesárea depois quando retornou ao presídio, já que tinha que dormir no chão
sujo. Ela diz ainda que, depois que médicos receitaram antibióticos a ela, não
houve nenhuma preocupação em que tomasse todas as doses recomendadas.
IHU On-Line - É comum crianças morarem em presídios com as
mães até os seis meses, durante o aleitamento materno? Como se dá essa relação
entre mães e filhos nas penitenciárias?
Nana Queiroz - A lei diz que sim. É importante ressaltar, no
entanto, que trata-se de uma legislação muito recente, sancionada apenas em
2010. Até então, não era claro o direito das mães de amamentar seus bebês (ou
dos bebês de serem amamentados pela mãe detenta). Mesmo assim, devido às
condições das penitenciárias, algumas mães não conseguem ficar com o bebê durante
os seis meses - logo têm pena de sujeitar o filho àquele ambiente nocivo e o
entregam a familiares. Ativistas relatam conhecer casos de penitenciárias e
delegacias que, não tendo como hospedar crianças, as mandam para instituições
ou parentes da presa mesmo antes dos seis meses mínimos de aleitamento materno.
Acho que as crianças nascidas nas prisões são o mais forte
argumento dos defensores dos direitos das detentas, principalmente tocante para
aqueles que crêem que criminosas não merecem condições mínimas de direitos
humanos. Isso porque há inocentes que também pagam essa pena (o mais inocentes
que uma pessoa pode ser): os recém-nascidos.
IHU On-Line - Por que a visita íntima é dificultada para as
mulheres nos presídios femininos?
Nana Queiroz - Em minha opinião, e de diversos outros
ativistas da área, isso é reflexo do machismo da sociedade brasileira. No
sistema carcerário masculino, reina a visão de que o sexo "aplaca a
violência do homem" e que nenhum homem é capaz de viver sem essa
"necessidade básica". No sistema feminino, ao contrário, a relação da
mulher com o sexo é tabu. Mais: mulheres que sentem essa necessidade são,
silenciosamente, consideradas menos dignas.
Há também o problema prático da gravidez. Os diretores de
penitenciárias não querem arcar com os gastos extras representados por uma
gestação. Ouvi, inclusive, que um delegado sugeriu que só permitiria visitas
íntimas às detentas que tomassem injeções anticoncepcionais. Ora, obviamente
não é sábio engravidar na prisão. Porém, essa não é uma decisão que caiba ao
poder público e sim à mulher, que é dona de seu corpo mesmo enquanto cumpre
pena.
As poucas penitenciárias que permitem os encontros íntimos
das detentas com seus cônjuges (e é importante dizer que o Estado só entende
como cônjuge um homem, logo lésbicas perdem esse direito completamente)
enfrentam ainda o problema do abandono. As dificuldades impostas ao
relacionamento são tantas que, quando as portas são abertas, são poucos os
homens que resistiram e permaneceram fiéis à suas parceiras encarceradas.
IHU On-Line - Como é a rotina das presas?
Nana Queiroz - Um tédio. Em muitos locais, elas chegam a
brigar por vagas de trabalho. A maioria delas gostaria de trabalhar para
reduzir o tempo de pena, poder mandar algum dinheiro para a família ou até
ocupar o tempo. As ofertas de trabalho, porém, não são suficientes. Algumas se
dedicam a ler (elas adoram Drauzio Varella, Zíbia Gasparetto, e romances
românticos), e também às suas religiões, que servem de apoio a muitas delas.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Nana Queiroz - Em um momento em que a sociedade brasileira
amadurece para respeitar os homossexuais, acho importante lembrar que essas
pessoas têm seus direitos frustrados também no cárcere. O Estado não entende
como cônjuge as esposas, namoradas e companheiras de outras mulheres e, por
isso, não permitem suas visitas - já que não há grau de parentesco. Assim,
muitas mulheres gays são privadas do afeto e apoio de suas parceiras, o que é
indispensável para a ressocialização.
É bom frisar, também, que, diante do abandono pelo cônjuge,
muitas mulheres que se consideravam heterossexuais previamente, mantêm
relacionamentos homossexuais dentro da cadeia. Assim, elas aplacam a solidão e
a carência e se apoiam mutuamente. Em muitas ocasiões, esses relacionamentos
evoluem para amores sólidos. Quando uma delas é liberta, porém, o
relacionamento tem que terminar junto com a pena.
Neste momento, trabalho também em um roteiro de cinema sobre
o tema, baseado nas histórias de mulheres que conheci. Se tivermos sorte com os
editais, pode haver um "Presos que Menstruam" para cinema. Estamos de
dedos cruzados.
Fonte: Ihu
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