"A população tem a ilusão de que irá lucrar com os
eventos da Copa, mas a verdade é que será brutalmente reprimida”, assegura
Roberto Morales, assessor do deputado Marcelo Freixo, do Partido do Socialismo
e Liberdade. Os acordos entre o governo do Brasil e a FIFA limitam a venda
informal em torno dos estádios, expulsando os vendedores para um raio de dois
quilômetros de distância dos eventos.
Morales participa do Comitê Popular da Copa criado durante
os Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro em 2007, quando as pessoas que
estavam sendo despejadas à força para dar lugar às obras começaram a resistir
aos traslados. "Além disso, começamos a perceber que os despejos não eram
o único problema na hospedagem de grandes eventos – observamos outros
problemas, como corrupção. As obras dos Pan-americanos estavam orçadas em 300
milhões de reais, mas acabaram custando 3,5 bilhões.” É total próximo de dois
bilhões de dólares.
Essa situação é especialmente visível no Rio de Janeiro, uma
das sedes principais da Copa de 2014 e anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2016.
Nas doze cidades que serão sedes da Copa do Mundo foram criados Comitês
Populares que se estão mobilizando sob a égide do lema "Copa e Olimpíadas
com respeito aos direitos humanos”.
Em 12 de dezembro esses comitês entregaram às autoridades
das doze cidades um dossiê intitulado "Megaeventos e violações dos
direitos humanos no Brasil”, onde detalham desde a violação do direito à
habitação e das leis do trabalho nas obras até a falta de estudos de impacto
ambiental de obras que correm contra o relógio.
O Direito à Habitação
O Brasil tem um déficit habitacional de cinco milhões de
residências. As obras da Copa do Mundo, desde os estádios até a ampliação de
aeroportos e rodovias, terão custo total de cerca de 20 bilhões de dólares,
quase a metade do PIB do Uruguai para um campeonato de duração inferior a um
mês. Cifra colossal que provém dos impostos pagos pelos brasileiros em
benefício de umas poucas corporações selecionadas.
Embora o governo não preste informações acerca dos despejos
forçados que as obras provocarão, avalia-se que afetarão cerca de 170 mil
pessoas. Os Comitês Populares detectaram uma espécie de padrão que se repete em
todas as cidades onde haverá despejos: "A falta de informação e
notificação prévia gera instabilidade e medo do futuro,” o que paralisa as
famílias em risco e as coloca à mercê de especuladores e dos interesses
poderosos, assinala o relatório dos Comitês Populares.
A segunda questão é que a quase totalidade dos afetados vive
em áreas de baixa renda e em certa precariedade ou informalidade. Na região
metropolitana de Curitiba serão afetados 1.173 imóveis para construção do
Corredor Metropolitano de 52 quilômetros, de novos acessos ferroviários e para
reconstrução e ampliação de várias avenidas e rodovias. Só a ampliação do
aeroporto e seus estacionamentos implicará na remoção de 320 residências sem
que nenhum de seus habitantes tenha sido informado acerca de indenizações que
receberá ou para onde será trasladado.
Em Belo Horizonte está sendo construído um gigantesco
empreendimento imobiliário que ocupa 10 mil hectares de áreas verdes para
construção de 75.000 apartamentos, que se chamará Vila da Copa, o qual
inicialmente servirá de alojamento para delegações, turistas e jornalistas que
venham assistir à Copa do Mundo. Em Fortaleza serão afetadas 15 mil famílias,
das quais quase 10 mil deverão ser reassentadas, mas que ainda não foram
informadas acerca de onde irão viver.
A maior parte dos afetados será despejada por causa de
ampliação ou construção de novas rodovias. A Via Expressa de Fortaleza
atravessará 22 bairros para unir a zona hoteleira ao centro da cidade e ao
estádio Castelão. Nesse caso as famílias poderão escolher entre indenização,
casa em conjunto habitacional, ou troca por outro imóvel escolhido em algum
bairro da capital. Embora 70 por cento das nove mil famílias afetadas tenha
preferido conjunto habitacional, a pressão social freou o processo inteiro até
que apresentado projeto alternativo com melhores condições.
Centenas de casas da periferia de Fortaleza foram marcadas
com tinta verde para serem demolidas este ano, mas os habitantes não receberam
nenhuma comunicação oficial informando-os acerca de quando acontecerá a
demolição.
Os Comitês Populares da Copa afirmam que em 21 vilas e favelas
de sete cidades que serão sedes da Copa do Mundo o Estado está aplicando
"estratégias de guerra e perseguição, como a marcação de casas com tinta
sem explicações, a invasão de domicílios sem mandados judiciais, a apropriação
indébita e a destruição de imóveis”, além de ameaças, corte de serviços e
outras ações de intimidação.
As obras para a Copa do Mundo facilitam uma espécie de
"limpeza social” impulsionada pela especulação e desloca famílias que
moram em seus lares há quatro ou cinco décadas, como sucede em São Paulo com a
construção do Parque Linear Várzeas do Tietê, zona sujeita a inundações da qual
já foram removidas quatro mil famílias e da qual serão expulsas outras 6.000.
Segundo a experiência deixada por megaeventos esportivos
anteriores, não só em países emergentes como também no mundo desenvolvido, o
custo de vida aumenta e a especulação imobiliária dispara, já que as obras de
infraestrutura deslocam alguns e atraem os que podem pagar habitações mais
caras; e muitas pessoas são transferidas para a periferia.
Estado de exceção
O parlamento brasileiro deverá aprovar a Lei Geral da Copa
(2330/2011), que estabelecerá as normas jurídicas para a realização da Copa das
Confederações de junho de 2013 e da Copa do Mundo do ano seguinte. Contudo,
depois de vários meses de debates essa lei ainda não foi aprovada sequer pela
comissão especial da Câmara dos Deputados criada para analisá-la. O ministro
dos Esportes, Aldo Rebelo, prometeu ao secretário geral da FIFA, Jerôme Valcke,
que a lei será votada o mais tardar até março.
O projeto foi apresentado pelo Executivo com base nos
critérios estabelecidos pela FIFA. Em 6 de dezembro deveria ter sido votado no
plenário da Câmara, mas houve adiamento porque vários deputados entenderam ele
contradizer a legislação brasileira. Por exemplo, é proibida, no Brasil, a
venda de bebidas alcoólicas nos estádios, mas a FIFA exige que haja total
liberdade, o que pode gerar situações de violência, segundo estimam muitos
parlamentares.
Outro ponto de discordância gira em torno dos direitos
adquiridos por estudantes, aposentados, beneficiários do programa Bolsa Família
e recebedores de assistência de saúde do estado, que pagam apenas meia entrada,
algo a que a FIFA também se opõe. A chamada Lei Pelé, que beneficia os
sindicatos de atletas profissionais com cinco por cento da renda gerada por
direitos audiovisuais dos espetáculos esportivos, também será suspensa no
tocante aos jogos da Copa do Mundo.
A federação também exige que o país anfitrião emita vistos e
permissões de trabalho para todos os membros das delegações, convidados,
funcionários das confederações, jornalistas e espectadores de outros países que
tenham comprado entradas para a Copa do Mundo. Essas permissões especiais
expiram em 31 de dezembro de 2014, seis meses depois do fim da Copa do Mundo. Em
suma, grande parte da legislação nacional do país terá de ser suspensa para
atender às exigências da FIFA.
O relatório dos Comitês Populares da Copa denuncia, ademais,
a violação dos direitos dos trabalhadores informais (quase dois terços dos
brasileiros). O artigo 11 da Lei da Copa proíbe a venda de qualquer tipo de
mercadoria em "locais oficiais de competição, em suas imediações e
principais vias de acesso”, sem autorização expressa da FIFA.
A definição e os limites das "áreas exclusivas” para a
venda de produtos da FIFA deverão ser demarcados pelos municípios "levando
em consideração as exigências da FIFA ou de terceiros por ela indicados”,
ficando expressamente excluídos vendedores ambulantes. Ainda não foram
definidos os perímetros exatos nos quais vigerão essas restrições; mas, com
base em experiências anteriores, pode-se estimar a "zona de exclusão” em
dois quilômetros.
O artigo 23 penaliza inclusive os bares que pretendam
transmitir as partidas da Copa do Mundo sem a autorização correspondente ou que
promovam certas marcas não autorizadas pela FIFA. A Confederação Nacional do
Comércio e outras organizações sindicais de comerciantes já expressaram sua
decidida oposição à Lei da Copa do Mundo.
Talvez o mais perturbador de tudo, o projeto de lei prevê,
em seu artigo 37, que "poderão ser criados Juizados Especiais para
processo e julgamento das causas relacionadas com os eventos”. Por último, o
artigo 38 estipula que a FIFA, seus representantes legais, consultores e
empregados "ficam isentos dos custos, emolumentos, taxas e outras despesas
das instituições da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça
Militar” e de outros órgãos brasileiros.
Essa relação de vassalagem que a FIFA impõe aos países
anfitriões pode atrasar a aprovação da lei e gerará alguns problemas na base
aliada do governo, talvez mesmo no próprio Partido dos Trabalhadores no poder.
O Comitê Olímpico Internacional faz exigências similares. Em
2009 foi a aprovada a Lei 12.035 que, além dos benefícios já mencionados,
estabelece a cessão do patrimônio público imobiliário para a realização dos
Jogos Olímpicos, a cessão de espaços públicos com exclusividade e "a
destinação de recursos para cobrir eventuais déficits operacionais do Comitê
Organizador dos Jogos Rio 2016” .
A lei que regulamenta os Jogos Olímpicos estabelece que
entre 5 de julho e 26 de setembro de 2016 ficam suspensos "os contratos
celebrados para utilização de espaços publicitários em aeroportos ou em áreas
federais de interesse dos Jogos Rio 2016”.
O poder acumulado pelas federações desportivas nas últimas
décadas é capaz de impor-se a milhões de cidadãos em todo o mundo, que são quem
realmente o sustém, e a poderosos estados de todos os continentes, sem que se
registrem debates públicos que tragam à luz a trama de interesses por trás de
tantos abusos.
A elitização dos estádios
Cerca de 203 mil pessoas assistiram à final da Copa do Mundo
de 1950 no Maracanã, o que representava por volta de 8,5 por cento da população
do Rio de Janeiro. As entradas para secções de assentos "geral” e
"popular,” de onde pessoas das classes média e trabalhadora assistiram ao
jogo, representavam 80 por cento do total de assentos. Boa parte dos
espectadores assistiu à partida de pé, num estádio com capacidade para 199 mil
pessoas.
Os estádios onde se mesclavam os mais diversos setores
sociais começaram a mudar na década de 1990. No Brasil, a justificativa para
essa espécie de "europeização” foi a segurança e o conforto, como parte de
uma campanha global da qual participaram não apenas a FIFA como também as
federações locais e clubes incentivados por patrocinadores privados. Até o fim
da década o valor das entradas em todo o mundo aumentou muito acima dos índices
de preços, tornando cada vez mais difícil o acesso de famílias trabalhadoras e
da classe média baixa.
O mítico Maracanã, depois de uma remodelagem em 1999 para
hospedar a Copa do Mundo de Clubes, viu sua capacidade reduzida quase pela
metade, para apenas 103.022 pessoas, porque foram instalados assentos
individuais no anel superior do estádio. Entre abril de 2005 e janeiro de 2006
foi fechado para obras destinadas a hospedar os Jogos Pan-americanos de 2007.
Nessa ocasião foi extinta a "geral” onde o público assistia às partidas de
pé e se instalaram assentos individuais, ficando reduzida a capacidade para
apenas 82.238 pessoas, mas pelo menos com assentos reclináveis.
Antes da atual remodelagem o Maracanã era uma "arena
multiuso” que albergava, além de eventos desportivos, recitais musicais e
espetáculos dos tipos mais diversos. Sobre as arquibancadas foram construídos
camarotes com ampla visão do campo, com vidros que separam os espectadores VIP
do resto dos espectadores. Contam com bares, televisão e ar condicionado e
costumam ser alugados por empresas que convidam sócios e funcionários. Têm o
privilégio de chegar diretamente de carro por uma rampa sem o mínimo contato
com as "massas”.
Atualmente o Maracanã está sofrendo nova remodelagem para
receber a final da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Desde
meado 2010 está fechado para reformas que obedecerão ao "padrão FIFA”, que
exige que todos os estádios sejam cobertos, o que obrigou a modificação de todo
o teto.
Na realidade o estádio foi eviscerado e só é conservada a
fachada externa, considerada patrimônio histórico nacional. A reconstrução
custará um bilhão de reais (no mínimo 600 milhões de dólares), será cedido à
iniciativa privada e terá ainda menos assentos que serão cada vez mais caros.
Mais que um estádio de futebol será um teatro, com cadeiras
numeradas das quais impossível acompanhar o jogo de pé. Em decorrência, foram
suprimidos os espaços coletivos e criativos para os torcedores — amantes do
divertimento, cheios de vida, apaixonados e barulhentos como soem ser — e em
seu lugar só resta a possibilidade de coreografias pré-fabricadas como as
"ondas” e a agitação tediosa de bandeirinhas individuais.
De maior estádio do mundo, o Maracanã passou a ocupar
modesto 14º lugar, muito abaixo dos maiores estádios do planeta: o Rungrado May
Day de Pyongyang (Coreia do Norte) com capacidade para 150 mil espectadores e o
Salt Lake de Calcutá (Índia) com 120 mil lugares. Sobretudo, porém, deixou de
ser um espaço popular para converter-se em ferramenta de negócios e espetáculos
que pouco tem a ver com o espírito popular original do futebol.
Por Raúl Zibechi
[Raúl Zibechi é
analista internacional do semanário Brecha de Montevideo, docente e
investigador de movimentos sociais da Multiversidad Franciscana de América
Latina, e assessor de vários grupos sociais. Escreve o "Informe Mensual de
Zibechi” para o Programa das Américas].
Fonte: Ihu
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