sexta-feira, 24 de maio de 2013

O Gosto Amargo da Copa do Mundo no Brasil


"A população tem a ilusão de que irá lucrar com os eventos da Copa, mas a verdade é que será brutalmente reprimida”, assegura Roberto Morales, assessor do deputado Marcelo Freixo, do Partido do Socialismo e Liberdade. Os acordos entre o governo do Brasil e a FIFA limitam a venda informal em torno dos estádios, expulsando os vendedores para um raio de dois quilômetros de distância dos eventos.
 "A Copa será grande negócio para os grandes empresários do esporte e para quem for autorizado a vender comida e bebida”, lamenta .

Morales participa do Comitê Popular da Copa criado durante os Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro em 2007, quando as pessoas que estavam sendo despejadas à força para dar lugar às obras começaram a resistir aos traslados. "Além disso, começamos a perceber que os despejos não eram o único problema na hospedagem de grandes eventos – observamos outros problemas, como corrupção. As obras dos Pan-americanos estavam orçadas em 300 milhões de reais, mas acabaram custando 3,5 bilhões.” É total próximo de dois bilhões de dólares.

Essa situação é especialmente visível no Rio de Janeiro, uma das sedes principais da Copa de 2014 e anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2016. Nas doze cidades que serão sedes da Copa do Mundo foram criados Comitês Populares que se estão mobilizando sob a égide do lema "Copa e Olimpíadas com respeito aos direitos humanos”.

Em 12 de dezembro esses comitês entregaram às autoridades das doze cidades um dossiê intitulado "Megaeventos e violações dos direitos humanos no Brasil”, onde detalham desde a violação do direito à habitação e das leis do trabalho nas obras até a falta de estudos de impacto ambiental de obras que correm contra o relógio.

O Direito à Habitação

O Brasil tem um déficit habitacional de cinco milhões de residências. As obras da Copa do Mundo, desde os estádios até a ampliação de aeroportos e rodovias, terão custo total de cerca de 20 bilhões de dólares, quase a metade do PIB do Uruguai para um campeonato de duração inferior a um mês. Cifra colossal que provém dos impostos pagos pelos brasileiros em benefício de umas poucas corporações selecionadas.

Embora o governo não preste informações acerca dos despejos forçados que as obras provocarão, avalia-se que afetarão cerca de 170 mil pessoas. Os Comitês Populares detectaram uma espécie de padrão que se repete em todas as cidades onde haverá despejos: "A falta de informação e notificação prévia gera instabilidade e medo do futuro,” o que paralisa as famílias em risco e as coloca à mercê de especuladores e dos interesses poderosos, assinala o relatório dos Comitês Populares.

A segunda questão é que a quase totalidade dos afetados vive em áreas de baixa renda e em certa precariedade ou informalidade. Na região metropolitana de Curitiba serão afetados 1.173 imóveis para construção do Corredor Metropolitano de 52 quilômetros, de novos acessos ferroviários e para reconstrução e ampliação de várias avenidas e rodovias. Só a ampliação do aeroporto e seus estacionamentos implicará na remoção de 320 residências sem que nenhum de seus habitantes tenha sido informado acerca de indenizações que receberá ou para onde será trasladado.

Em Belo Horizonte está sendo construído um gigantesco empreendimento imobiliário que ocupa 10 mil hectares de áreas verdes para construção de 75.000 apartamentos, que se chamará Vila da Copa, o qual inicialmente servirá de alojamento para delegações, turistas e jornalistas que venham assistir à Copa do Mundo. Em Fortaleza serão afetadas 15 mil famílias, das quais quase 10 mil deverão ser reassentadas, mas que ainda não foram informadas acerca de onde irão viver.

A maior parte dos afetados será despejada por causa de ampliação ou construção de novas rodovias. A Via Expressa de Fortaleza atravessará 22 bairros para unir a zona hoteleira ao centro da cidade e ao estádio Castelão. Nesse caso as famílias poderão escolher entre indenização, casa em conjunto habitacional, ou troca por outro imóvel escolhido em algum bairro da capital. Embora 70 por cento das nove mil famílias afetadas tenha preferido conjunto habitacional, a pressão social freou o processo inteiro até que apresentado projeto alternativo com melhores condições.

Centenas de casas da periferia de Fortaleza foram marcadas com tinta verde para serem demolidas este ano, mas os habitantes não receberam nenhuma comunicação oficial informando-os acerca de quando acontecerá a demolição.

Os Comitês Populares da Copa afirmam que em 21 vilas e favelas de sete cidades que serão sedes da Copa do Mundo o Estado está aplicando "estratégias de guerra e perseguição, como a marcação de casas com tinta sem explicações, a invasão de domicílios sem mandados judiciais, a apropriação indébita e a destruição de imóveis”, além de ameaças, corte de serviços e outras ações de intimidação.

As obras para a Copa do Mundo facilitam uma espécie de "limpeza social” impulsionada pela especulação e desloca famílias que moram em seus lares há quatro ou cinco décadas, como sucede em São Paulo com a construção do Parque Linear Várzeas do Tietê, zona sujeita a inundações da qual já foram removidas quatro mil famílias e da qual serão expulsas outras 6.000.

Segundo a experiência deixada por megaeventos esportivos anteriores, não só em países emergentes como também no mundo desenvolvido, o custo de vida aumenta e a especulação imobiliária dispara, já que as obras de infraestrutura deslocam alguns e atraem os que podem pagar habitações mais caras; e muitas pessoas são transferidas para a periferia.

Estado de exceção

O parlamento brasileiro deverá aprovar a Lei Geral da Copa (2330/2011), que estabelecerá as normas jurídicas para a realização da Copa das Confederações de junho de 2013 e da Copa do Mundo do ano seguinte. Contudo, depois de vários meses de debates essa lei ainda não foi aprovada sequer pela comissão especial da Câmara dos Deputados criada para analisá-la. O ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, prometeu ao secretário geral da FIFA, Jerôme Valcke, que a lei será votada o mais tardar até março.

O projeto foi apresentado pelo Executivo com base nos critérios estabelecidos pela FIFA. Em 6 de dezembro deveria ter sido votado no plenário da Câmara, mas houve adiamento porque vários deputados entenderam ele contradizer a legislação brasileira. Por exemplo, é proibida, no Brasil, a venda de bebidas alcoólicas nos estádios, mas a FIFA exige que haja total liberdade, o que pode gerar situações de violência, segundo estimam muitos parlamentares.

Outro ponto de discordância gira em torno dos direitos adquiridos por estudantes, aposentados, beneficiários do programa Bolsa Família e recebedores de assistência de saúde do estado, que pagam apenas meia entrada, algo a que a FIFA também se opõe. A chamada Lei Pelé, que beneficia os sindicatos de atletas profissionais com cinco por cento da renda gerada por direitos audiovisuais dos espetáculos esportivos, também será suspensa no tocante aos jogos da Copa do Mundo.

A federação também exige que o país anfitrião emita vistos e permissões de trabalho para todos os membros das delegações, convidados, funcionários das confederações, jornalistas e espectadores de outros países que tenham comprado entradas para a Copa do Mundo. Essas permissões especiais expiram em 31 de dezembro de 2014, seis meses depois do fim da Copa do Mundo. Em suma, grande parte da legislação nacional do país terá de ser suspensa para atender às exigências da FIFA.

O relatório dos Comitês Populares da Copa denuncia, ademais, a violação dos direitos dos trabalhadores informais (quase dois terços dos brasileiros). O artigo 11 da Lei da Copa proíbe a venda de qualquer tipo de mercadoria em "locais oficiais de competição, em suas imediações e principais vias de acesso”, sem autorização expressa da FIFA.

A definição e os limites das "áreas exclusivas” para a venda de produtos da FIFA deverão ser demarcados pelos municípios "levando em consideração as exigências da FIFA ou de terceiros por ela indicados”, ficando expressamente excluídos vendedores ambulantes. Ainda não foram definidos os perímetros exatos nos quais vigerão essas restrições; mas, com base em experiências anteriores, pode-se estimar a "zona de exclusão” em dois quilômetros.

O artigo 23 penaliza inclusive os bares que pretendam transmitir as partidas da Copa do Mundo sem a autorização correspondente ou que promovam certas marcas não autorizadas pela FIFA. A Confederação Nacional do Comércio e outras organizações sindicais de comerciantes já expressaram sua decidida oposição à Lei da Copa do Mundo.

Talvez o mais perturbador de tudo, o projeto de lei prevê, em seu artigo 37, que "poderão ser criados Juizados Especiais para processo e julgamento das causas relacionadas com os eventos”. Por último, o artigo 38 estipula que a FIFA, seus representantes legais, consultores e empregados "ficam isentos dos custos, emolumentos, taxas e outras despesas das instituições da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça Militar” e de outros órgãos brasileiros.

Essa relação de vassalagem que a FIFA impõe aos países anfitriões pode atrasar a aprovação da lei e gerará alguns problemas na base aliada do governo, talvez mesmo no próprio Partido dos Trabalhadores no poder.

O Comitê Olímpico Internacional faz exigências similares. Em 2009 foi a aprovada a Lei 12.035 que, além dos benefícios já mencionados, estabelece a cessão do patrimônio público imobiliário para a realização dos Jogos Olímpicos, a cessão de espaços públicos com exclusividade e "a destinação de recursos para cobrir eventuais déficits operacionais do Comitê Organizador dos Jogos Rio 2016” .

A lei que regulamenta os Jogos Olímpicos estabelece que entre 5 de julho e 26 de setembro de 2016 ficam suspensos "os contratos celebrados para utilização de espaços publicitários em aeroportos ou em áreas federais de interesse dos Jogos Rio 2016”.

O poder acumulado pelas federações desportivas nas últimas décadas é capaz de impor-se a milhões de cidadãos em todo o mundo, que são quem realmente o sustém, e a poderosos estados de todos os continentes, sem que se registrem debates públicos que tragam à luz a trama de interesses por trás de tantos abusos.

A elitização dos estádios

Cerca de 203 mil pessoas assistiram à final da Copa do Mundo de 1950 no Maracanã, o que representava por volta de 8,5 por cento da população do Rio de Janeiro. As entradas para secções de assentos "geral” e "popular,” de onde pessoas das classes média e trabalhadora assistiram ao jogo, representavam 80 por cento do total de assentos. Boa parte dos espectadores assistiu à partida de pé, num estádio com capacidade para 199 mil pessoas.

Os estádios onde se mesclavam os mais diversos setores sociais começaram a mudar na década de 1990. No Brasil, a justificativa para essa espécie de "europeização” foi a segurança e o conforto, como parte de uma campanha global da qual participaram não apenas a FIFA como também as federações locais e clubes incentivados por patrocinadores privados. Até o fim da década o valor das entradas em todo o mundo aumentou muito acima dos índices de preços, tornando cada vez mais difícil o acesso de famílias trabalhadoras e da classe média baixa.

O mítico Maracanã, depois de uma remodelagem em 1999 para hospedar a Copa do Mundo de Clubes, viu sua capacidade reduzida quase pela metade, para apenas 103.022 pessoas, porque foram instalados assentos individuais no anel superior do estádio. Entre abril de 2005 e janeiro de 2006 foi fechado para obras destinadas a hospedar os Jogos Pan-americanos de 2007. Nessa ocasião foi extinta a "geral” onde o público assistia às partidas de pé e se instalaram assentos individuais, ficando reduzida a capacidade para apenas 82.238 pessoas, mas pelo menos com assentos reclináveis.

Antes da atual remodelagem o Maracanã era uma "arena multiuso” que albergava, além de eventos desportivos, recitais musicais e espetáculos dos tipos mais diversos. Sobre as arquibancadas foram construídos camarotes com ampla visão do campo, com vidros que separam os espectadores VIP do resto dos espectadores. Contam com bares, televisão e ar condicionado e costumam ser alugados por empresas que convidam sócios e funcionários. Têm o privilégio de chegar diretamente de carro por uma rampa sem o mínimo contato com as "massas”.

Atualmente o Maracanã está sofrendo nova remodelagem para receber a final da Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Desde meado 2010 está fechado para reformas que obedecerão ao "padrão FIFA”, que exige que todos os estádios sejam cobertos, o que obrigou a modificação de todo o teto.

Na realidade o estádio foi eviscerado e só é conservada a fachada externa, considerada patrimônio histórico nacional. A reconstrução custará um bilhão de reais (no mínimo 600 milhões de dólares), será cedido à iniciativa privada e terá ainda menos assentos que serão cada vez mais caros.

Mais que um estádio de futebol será um teatro, com cadeiras numeradas das quais impossível acompanhar o jogo de pé. Em decorrência, foram suprimidos os espaços coletivos e criativos para os torcedores — amantes do divertimento, cheios de vida, apaixonados e barulhentos como soem ser — e em seu lugar só resta a possibilidade de coreografias pré-fabricadas como as "ondas” e a agitação tediosa de bandeirinhas individuais.

De maior estádio do mundo, o Maracanã passou a ocupar modesto 14º lugar, muito abaixo dos maiores estádios do planeta: o Rungrado May Day de Pyongyang (Coreia do Norte) com capacidade para 150 mil espectadores e o Salt Lake de Calcutá (Índia) com 120 mil lugares. Sobretudo, porém, deixou de ser um espaço popular para converter-se em ferramenta de negócios e espetáculos que pouco tem a ver com o espírito popular original do futebol.
Por Raúl Zibechi
 [Raúl Zibechi é analista internacional do semanário Brecha de Montevideo, docente e investigador de movimentos sociais da Multiversidad Franciscana de América Latina, e assessor de vários grupos sociais. Escreve o "Informe Mensual de Zibechi” para o Programa das Américas].
Fonte: Ihu

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