Cada vez mais temos homens jovens incapazes de fazer frente a uma relação com as jovens adultas de hoje, capazes, afirmadas socialmente, livres, autodeterminadas, pessoal, física e projetualmente... com todas as consequências que isso implica. A Igreja Católica ainda parece ser o único baluarte em que um jovem ocidental pode continuar não pondo em discussão a sua identidade masculina. Se pensarmos no que o padre deveria fazer na Igreja Católica, no modo em que esse papel é hoje apresentado, não é de se admirar que esse papel atraia pessoas com dificuldades identitárias. Também não devemos nos admirar se o resultado desse conúbio emerja com consequências muitas vezes desagradáveis.
Entrevista especial com Maria Benedetta Zorzi e Armando
Matteo
Todos os Concílios de grande reviravolta, como o Vaticano
II, levam anos para serem realmente digeridos. “Hoje se acredita que a proposta
de uma identidade forte, quase a ser contraposta ao mundo e à cultura, é a
escolha vencedora. Deixemos que a história julgue”, afirmam a teóloga e o
teólogo.
Que o Concílio Vaticano II continua ecoando na vida da
Igreja até hoje é algo inquestionável. E um dos pontos debatidos aqui é a
questão do espaço da mulher na Igreja. Esse é um dos assuntos debatidos na
entrevista a seguir, concedida por e-mail pela irmã Benedetta Zorzi, monja
beneditina italiana e teóloga, e pelo padre italiano e teólogo Armando Matteo.
Segundo eles, “há algumas décadas estamos como que parados, acomodados: talvez
não tivemos a coragem de continuar trabalhando ao longo daquelas intuições e ir
até o fim. Certamente, ainda não houve uma passagem de bastão para as novas
gerações, que agora já prospectam mentalidades e horizontes muito diferentes
daqueles de quem fez o pós-Concílio”.
Nascida em Roma, em 1970, Maria Benedetta Zorzi, OSB (foto)
vive há 20 anos em um mosteiro em Fabriano, em Marche, na Itália. Estudou
Teologia e fez doutorado em Filosofia. Ela faz parte da Coordenação das
Teólogas Italianas, da qual administra o site oficial (www.teologhe.org).
Pertence à ordem de São Bento ou Ordem Beneditina (em latim Ordo Sancti
Benedicti, sigla OSB).
Armando Matteo, teólogo e padre, é assistente nacional da
Federação Universitária Católica Italiana – FUCI. É autor de muitos artigos e
estudos sobre a pós-modernidade e sobre a relação entre os jovens e a fé,
alguns dos quais traduzidos no estrangeiro. Seu mais recente livro intitula-se
La fuga delle quarantenni. Il
difficile rapporto delle donne con la chiesa (Roma: Ed. Rubbettino, 2012).
Eis a entrevista.
IHU On-Line – Como entender a distância entre os auspícios
do Vaticano II, com as suas aberturas ao mundo e à contribuição criativa das
mulheres, e uma cultura do poder ainda “machista” na Igreja hoje?
Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo – O pós-Concílio teve
que pagar preços que foram considerados muito altos. Certamente, correu-se o
risco de jogar o bebê fora junto com a água suja. Em certo ponto, portanto,
sentiu-se a necessidade de parar, talvez para refletir; mas muitos hoje, mais
do que refletir juntos, parecem desesperadamente ocupados tentando voltar ao
“como se nada tivesse acontecido”. Na realidade, o mundo não para, e a Igreja,
ao fazer isso, corre o risco de perder o compromisso com essa geração e com as
posteriores. Também não pode ser silenciado o fato de que a maior e mais
chocante revolução cultural do século XX – a de 1968 – aconteceu com o Concílio encerrado. Com
relação às instâncias que ali vieram à luz (liberdade, singularidade, princípio
de autenticidade e de autodeterminação, sensibilidade profundamente
democrática, corporeidade, sexualidade, etc.), o cristianismo difundido custa
muito a se dar conta da beleza de ser crente e viver hoje uma temporada muito
fatigante, que encontra a sua demonstração mais eloquente exatamente na relação
cada vez mais difícil com as (jovens) mulheres.
Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo – De um lado,
certamente há uma mentalidade segundo a qual o laicato e, portanto, obviamente,
as mulheres – duas vezes leigas – são chamadas a participar plenamente da
gestão da vida eclesial; de outro, as próprias mulheres não fazem o suficiente
para mudar essa mentalidade e muitas vezes, tendo introjetado valores femininos
androcêntricos, são as mais estrênuas defensoras de um sistema que as penaliza.
Outro elemento é a ignorância dos padres, sobretudo dos mais
jovens, em nível histórico e teológico. Acrescente-se a isso a desorientação
identitária do homem jovem ocidental. Diante de uma reflexão secular da mulher
sobre a sua identidade, sobre os seus papéis e sobre a mudança da sua
autopercepção, não houve uma reflexão equivalente do homem sobre si mesmo,
sobre o seu papel, sobre quem ele deve ser com respeito a essa mulher que
mudou. Se, como diz o Magistério, a antropologia católica é dual, então, se um
polo muda, o outro também deve mudar necessariamente.
Cada vez mais temos homens jovens incapazes de fazer frente
a uma relação com as jovens adultas de hoje, capazes, afirmadas socialmente,
livres, autodeterminadas, pessoal, física e projetualmente... com todas as
consequências que isso implica. A Igreja Católica ainda parece ser o único
baluarte em que um jovem ocidental pode continuar não pondo em discussão a sua
identidade masculina. Se pensarmos no que o padre deveria fazer na Igreja
Católica, no modo em que esse papel é hoje apresentado, não é de se admirar que
esse papel atraia pessoas com dificuldades identitárias. Também não devemos nos
admirar se o resultado desse conúbio emerja com consequências muitas vezes
desagradáveis.
IHU On-Line – Por que, apesar dos inúmeros textos eclesiais
do Concílio Vaticano II sobre a importância das mulheres, ainda existe na
Igreja uma forte tensão entre as declarações de princípio e a prática em
confiar a elas funções de responsabilidade?
Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo – Porque não se
refletiu o suficiente sobre o papel do padre, sobre as modalidades de gestão do
poder, das paróquias, porque não se promove explicitamente e com força a
formação teológica das mulheres, porque se conecta ainda muito estreitamente a
liderança à ordenação ministerial. As aberturas da Igreja para as mulheres de
50 anos atrás nos parecem apenas tímidas hoje, mas eram apropriadas para as
mulheres e para o mundo de 50 anos atrás. Hoje, depois de um Magistério que
falou de gênio feminino, sim, mas tudo somado por uma perspectiva marcada
também geoculturalmente, seria preciso dar mais um passo para compreender a
fundo as demandas do mundo das mulheres que está mudando rapidamente.
IHU On-Line – O que marca a relação das mulheres com a fé e
com a Igreja atualmente, em comparação com o contexto social e religioso de 50
anos atrás, quando foi realizado o Concílio Vaticano II?
Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo – Ocorreram mudanças
verdadeiramente importantes tanto na autopercepção das mulheres e do seu papel
na sociedade, perante os homens e perante os seus desejos, como no contexto
cultural. Basta mencionar aqui um dado muito simples: há um número cada vez
mais crescente de mulheres jovens com alta taxa de escolarização (na Itália
seguramente maior do que o dos seus coetâneos masculinos) e, portanto, com
expectativas, com respeito à sua formação como crentes e ao exercício da fé,
maiores do que no passado. Para dizer de forma bem-humorada, não podemos nos
permitir certas homilias e liturgias improvisadas.
IHU On-Line – A senhora percebe que continua ecoando o gesto
do Concílio Vaticano II, de opção da Igreja pelo caminho do diálogo com a
sociedade contemporânea?
Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo – Estamos em um
período de encastelamento. Esperamos que se trate de uma fase normal a ser lida
com os tempos de uma história muito maior do que nós. Todos os Concílios de
grande reviravolta, como o de Niceia, envolveram longuíssimos anos antes de
serem realmente “digeridos”. O mesmo vale para o Vaticano II. Hoje se acredita
que a proposta de uma identidade forte, quase a ser contraposta ao mundo e à
cultura, é a escolha vencedora. Deixemos que a história julgue.
IHU On-Line – 50 anos depois da realização do Concílio
Vaticano II, o que, em sua opinião, não ficou bem resolvido? Quais as
dificuldades de compreensão que as diferentes hermenêuticas abertas pelo
concílio colocam para a caminhada da Igreja?
Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo – Basta estudar a
história para constatar que a Igreja sempre se encontrou em um contexto
cultural com o qual soube dialogar. A capacidade de negociar os conceitos e as
linguagens, mentalidades e demandas no diálogo com a cultura foi a sua força e determinou
a sua sobrevivência às mudanças epocais. Até o logos era um conceito que foi
mediado pela cultura pagã. O Papa Bento XVI destacou que a fidelidade à
Tradição não é exercida nos conteúdos doutrinais como tais, mas sim no caminho
do sujeito único que é a Igreja através da história.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre o processo de revisão
doutrinal publicado pela Congregação para Doutrina da fé – CDF, intitulado
“Avaliação Doutrinária da Conferência de Liderança das Mulheres Religiosas”,
nos Estados Unidos? (Leadershisp Conference of Women Religious – LCWR)? O que poderia fazer parte de uma reforma no
âmbito da Liderança da Conferência?
Maria Benedetta Zorzi e Armando Matteo – Acompanhamos com
muita apreensão a questão, porque, na Europa, deveremos de algum modo sentir um
contragolpe com relação ao que for acontecer nos EUA, mas teremos menos
capacidade de reação, ao menos na Itália. A Europa tem uma maior consciência
das mudanças históricas de longo porte e, portanto, mais paciência, mas também
mais lentidão. No entanto, não estamos no direito de dar uma opinião, porque
nos escapam os detalhes desse longo processo, que não começou hoje e que, da
forma como nos foi apresentado pelos meios de comunicação, ultimamente parece
ter sido instrumentalizado para objetivos puramente políticos.
O certo é que, a partir do que se lê também na teologia, o
feminismo na Igreja Católica ainda não foi recebido e compreendido ou, melhor,
às vezes parece ser culpavelmente mal compreendido pela hierarquia. Talvez nem
todas as irmãs norte-americanas tenham problemas doutrinais, e nem todas são
feministas radicais; por outro lado, é claro que os homens da Cúria não têm
facilidade para agir com destreza entre as várias teologias feministas. Mas
certamente a Igreja Católica se encontra hoje com sérios problemas pastorais
que as religiosas bem identificaram. É justamente das irmãs – como testemunha a
sua gloriosa história desde o século XIX – o carisma de compreender e de
enfrentar as situações de maior mal-estar e sofrimento presentes nos fatos
humanos. Há um “estar ao lado” que vem antes de qualquer julgamento e que nem
por isso significa imediatamente partilha do sentimento de vida com as pessoas
que sofrem. Mas sem essa compaixão, sem essa presença, toda verdade, todo princípio
abandona o tempo que encontra. Na presença das irmãs, além disso, joga-se um
jogo importante para o futuro da Igreja: o da oportunidade de oferecer uma
confirmação verdadeiramente feminina sobre o rosto público da comunidade
eclesial.
Esperamos, com ansiedade, pelos resultados dessa questão que
temos certeza de que tem uma dimensão muito maior do que parece: não é um
simples chamado à ordem doutrinal. Talvez seja mais fácil pensar que aqui dois
polos se enfrentam: de um lado, padres da cúria ocupados em escrever as suas
cartas a partir de escritórios em Roma, muitas vezes não muito versados em
história (das mulheres) e não muito sensíveis às mudanças culturais
contemporâneas; e, de outro, um exército de mulheres conscientes de si mesmas,
das mudanças rumo às quais o mundo vai, e acima de tudo formadas naquela
liberdade de consciência evangélica (e pós-conciliar) que as torna tão
determinadas. Confiamos que as coisas sejam mais articuladas do que essas
polarizações fáceis, porque já há homens e mulheres, padres e religiosas, na
Igreja Católica, que se encontram em sintonia e que têm o desejo de percorrer a
estrada juntos rumo a uma Igreja a duas vozes.
Por Graziela Wolfart | Tradução de Moisés Sbardelotto
Fonte: Ihu
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