Causou comoção nas redes sociais
o vídeo que mostra membros da Guarda Civil Metropolitana batendo em um homem em
situação de rua, na manhã desta quarta (3), em São Paulo. Samir Sati, de 40
anos, tentava proteger um carrinho com seus únicos pertences e, chorando,
pedia: ''Não leva meus bagulho não, caramba. Eu não tenho nada''.
Por Leonardo Sakamoto
Ao final, foi levado para a
delegacia. Por conta da agressão, teve um punho quebrado e terá que passar por
cirurgia. Ele começaria a trabalhar como servente de pedreiro nesta quinta. As
imagens foram gravadas por Marcos Hermanson, estudante de jornalismo, que
passava pelo local. Entre os materiais confiscados, estavam cobertores e um
colchão fino.
A temperatura na madrugada entre
terça e quarta chegou a 15o C na capital paulista.
O prefeito João Doria condenou o
ato, afirmou que o servidor da GCM foi afastado de suas funções e que conversou
com o homem agredido para prestar solidariedade e oferecer assistência por
parte Prefeitura.
Tão importante quanto o prefeito
ter reconhecido que servidores municipais cometeram um delito é a Prefeitura,
quando for condenada a pagar uma indenização a Samir por danos morais (e se
houver Justiça, ela será), que não recorra da decisão judicial.
No mesmo dia da agressão, por
coincidência, sugeri aos meus alunos de jornalismo a leitura de ''Eichmann em
Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal'', da filósofa Hanna Arendt.
Ela, judia e alemã, chegou a ficar presa em um campo de concentração antes de
conseguir fugir para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. No
livro, conta a história da captura do carrasco nazista Adolf Eichmann, na
Argentina, por agentes israelenses, e seu consequente julgamento.
Ao contrário da descrição de um
demônio que todos esperavam em seus relatos, originalmente produzidos para a
revista New Yorker, o que ela viu foi um funcionário público medíocre e
carreirista, que não refletia sobre suas ações e atividades e que repetia
clichês burocráticos. Ele não possuía história de preconceito aos judeus e não
apresentava distúrbios mentais ou caráter doentio. Agia acreditando que, se
cumprisse as ordens que lhe fossem dadas, ascenderia na carreira e seria
reconhecido entre seus pares por isso. Cumpria ordens com eficiência, sendo um
bom burocrata, sem refletir sobre o mal que elas causavam.
A autora não quis com o texto,
que acabou lhe rendendo ameaças, suavizar os resultados da ação de Eichmann,
mas entendê-lo em um contexto maior. Ele não era o mal encarnado. Seria fácil
pensar assim, aliás. Mas explicar que a maldade foi construída aos poucos, por
influência de pessoas e diante da falta de crítica, ocupando espaço quando as
instituições politicamente permitiram. O vazio de pensamento é o ambiente em
que o ''mal'' se aconchega, abrindo espaço para a banalização da violência.
Claro que a justificativa do
''estou apenas cumprindo ordens'' para o cometimento de atrocidades não deve
ser aceita. Apesar dela continua sendo colocada à mesa, como na defesa de
policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru, quando 111 presos
foram mortos em 1992. Lembrando que a condenação de 74 PMs envolvidos foi
cancelada, no mês passado, e um novo julgamento será marcado.
Mas é assustador saber que alguém
visto como ''normal'' e ''comum'' pode ser capaz, nos contextos histórico,
político e institucional apropriados, tornar-se o que convencionamos chamar de
monstro.
Membros da GCM agridem homem em
situação de rua que tentava evitar que seus pertences fossem retirados (Vídeo:
Marcos Hermanson)
Em janeiro deste ano, o prefeito
João Doria retirou o veto que proibia a remoção de cobertores, mantas,
travesseiros, colchões, papelões de pessoas em situação de rua em São Paulo.
Essa proibição havia sido adotada por Fernando Haddad após duras críticas
sofridas que ele sofreu por conta da remoção de ''itens portáteis de
sobrevivência'' pela Guarda Civil Metropolitana durante o frio de junho do ano
passado, quando pessoas morreram.
Após críticas, na época Doria
afirmou que itens que protegem de frio não seriam retirados. ''É apenas para
preservar o direito da GCM para não haver a ilegalidade, mas jamais retirar
pertences e cobertores.'' A declaração, que respondeu não-respondendo, manteve
a pergunta: se não para é retirar, por que não manteve a regra?
As secretarias que cuidam das
áreas de Direitos Humanos e de Prefeituras Regionais estão preparando uma
portaria para regulamentar os trabalhos de zeladoria urbana. Ou seja, descrever
como as ações devem ser feitas as sanções a serem aplicadas diante de
irregularidades. É um bom passo, mas não basta. Pois a questão não são apenas
os os guardas, mas a cidade e o país.
Não temos como saber se os GCMs
que espancaram Samir possuem distúrbios psiquiátricos que os levem a um
comportamento violento ou alguma psicopatia grave que demandaria restrições a
profissões delicadas como essa. Independentemente disso, devem ser punidos.
Administrativamente e criminalmente.
Contudo, vale entender ''como
nascem os monstros''. Pois da mesma forma que policiais militares costumam ser
formados para a guerra e não para a garantia da integridade da população, a GCM
é treinada para resguardar o patrimônio e não para lidar com pessoas. Em ambos
os casos, a estrutura de suas instituições obrigam que mantenham a ordem pública
e, para tanto, sigam ordens.
Ao mesmo tempo, estamos em um
momento em que a defesa dos direitos humanos passa a ser vista por muitos como
um erro histórico que vai contra a segurança dos cidadãos. Por conta do
bombardeio midiático, reduz-se o significado de direitos humanos, esquecendo
que eles incluem o direito a ter uma casa, de sentir segurança, de não ser
escravizado, de professar uma fé, de poder formar uma família. A população
adere ao discurso da negação da diferença por causa do medo.
Líderes políticos, sociais ou
religiosos afirmam que não incitam a violência através de suas palavras. Porém,
se não são suas mãos que seguram a faca ou o revólver, é a sobreposição de seus
argumentos e a escolha que fazem das palavras ao longo do tempo que distorce a
visão de mundo de seus seguidores e torna o ato de esfaquear e atirar banal.
Ou, melhor dizendo, “necessário”. Suas ações e regras redefinem, lentamente, o
que é ética e esteticamente aceitável, visão que depois será consumida e
praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em
uma missão civilizatória ou divina.
Na prática, os envolvidos nesses
casos colocam em prática o que leem todos os dias na rede e absorvem em outras
mídias: ''feministas'', ''bichas'', ''índios'', ''drogados'' e ''mendigos'' são
a corja da sociedade e agem para corromper os nossos valores morais, tornar a
vida dos ''cidadãos pagadores de impostos'', um inferno, e a cidade, um lixo.
Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que
não se encaixa nos padrões estabelecidos pelos ''homens de bem''.
Em São Paulo, pessoas em situação
de rua são espancadas até a morte por cidadãos que querem ''limpar'' a cidade
do ''lixo humano''. E isso não está relacionado a esta administração municipal
apenas, mas acontece há muitos anos. Vira e mexe alguém põe fogo em um cobertor
de uma pessoa que está dormindo na rua. A culpa? Na maioria das vezes, recai
sobre as próprias vítimas. ''Afinal de contas, o que essa gente estava fazendo fora
do seu lugar?''
Ou, como já apareceu nas caixas
de comentários de matérias que noticiaram a agressão desta quarta: ''A
violência dos guardas foi desnecessária. Mas o mendigo também pediu, né?''
Foram membros da GCM que, mais do
que cumprir ordens dadas, colocavam em prática aquilo que eles acreditam que é
seu dever junto à sociedade. Muito provavelmente, consideravam que estavam
fazendo o bem. O lugar que ocuparam no momento da agressão também já foi
frequentado, na vida real, por jovens da classe alta e baixa, pais e mães de
família, engenheiros, professores, empresários… E, em sonho, por centenas de
milhares de anônimos que nunca agrediram verbal ou fisicamente uma pessoa em
situação de rua apenas porque reprimiram seus desejos.
Diante disso, precisamos de novas
narrativas que tragam esperança e solidariedade, preenchendo o vazio de
pensamento.
Antes que seja tarde demais.
Fonte: Blog do Sakamoto
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