Quando se fala na legalização da
prostituição como se de um qualquer outro trabalho se tratasse (o “trabalho
sexual”), ninguém certamente pensa nas suas filhas, pensa sempre nas filhas dos
outros.
Pedro Vaz Patto
Anuncia-se outra etapa da agenda
“fraturante” e libertária: a legalização da prostituição. Uma proposta
apresentada, como outras que dessa agenda fazem parte, sob as vestes do
“progressismo”.
Não pode, porém, considerar-se
“progressista” uma proposta que se baseia no mito da prostituição como “mais
velha profissão do mundo”, que nunca deixará de existir. Tal mito reflete o
conformismo de quem se resigna a estuturas sociais injustas (como são as que
conduzem à prostituição como fenómeno social) e desistiu de as transformar. Ou
que se contenta em reduzir danos, sem os eliminar na sua raiz. Este conformismo
não se distingue completamente dos sistemas de regulamentação da prostituição
que vigoraram em vários países (também em Portugal) em tempos passados (e
nalguns casos remontam ao século XIX).
Progressista no bom sentido da
expressão (como o que representa um verdadeiro progresso social) será, antes, o
modelo que tende à abolição da prostituição como prática intrinsecamente
contrária à dignidade humana e aos direitos humanos. É um modelo que começou
por ser implementado na Suécia e vem sendo seguido por um número cada vez maior
de países: a Noruega, a Islândia, a Irlanda do Norte, o Canadá e, mais
recentemente, a França, onde a legislação em causa foi aprovada por uma maioria
alargada e transversal. O sistema assenta na punição de quem explora a
prostituição (o proxeneta), mas também do cliente, assim como no apoio à
resinserção social das pessoas que se prostituem, encaradas como vítimas. Na
Suécia, onde o sistema vigora desde há mais de quinze anos, o número de mulheres
que se prostituem foi reduzida em cerca de dois terços (e não só no que se
refere à prostituição de rua), tal como se reduziu significativamente a
dimensão do tráfico de pessoas com esse fim (quase desapareceu). A lei recolhe
a adesão de cerca de setenta por cento da população.
As experiências de legalização da
prostituição (da Holanda e da Alemanha, designadamente), pelo contrário,
revelaram resultados negativos em todos os aspetos. Um relatório do governo
alemão, de 2007, reconhece vários desses resultados negativos. E muitas das
mulheres vítimas da prostituição consideram que a beneficiários dessa
legalização são apenas os proxenetas (que por ela se bateram), agora promovidos
a “empresários do sexo”.
Desde logo, porque poucas foram
as pessoas que celebraram contratos de trabalho ao abrigo da legalização (e a
garantia de direitos laborais foi apresentada como uma das justificações para a
lei). Várias são as razões para que tal tenha acontecido.
Por um lado, porque quase nenhuma
mulher quer registar no seu curriculum laboral o exercício da prostituição,
como se este fizesse parte de uma carreira. Quase todas vêm tal exercício como
uma ocupação temporária, que pretendem apagar e mudar o mais depressa possível,
logo que surjam alternativas.
Por outro lado, porque um
contrato de trabalho não comporta apenas direitos, também comporta deveres. E é
natural que se receie que, a coberto desses deveres, a mulher que se prostitui
fique impedida de rejeitar um cliente ou qualquer exigência desse cliente.
A legalização da prostituição
incrementou esta atividade em geral (como será lógico), tornando-a das mais
lucrativas, e incrementou o tráfico de pessoas com esse objetivo. Na Alemanha e
na Holanda, as redes de tráfico estão infiltradas na prostituição legal, o que
levou o presidente da câmara de Amesterdão a revogar nuitas das licenças
concedidas a bordeis. É um dado hoje reconhecido pelas polícias de vários
países que as redes de tráfico se dirigem preferencialmente aos países onde a
prostituição é legal (como a Alemanha), muito mais do que àqueles onde ela não
o é, e ainda menos se dirigem aos que punem a atividade do cliente (como a
Suécia, onde, logicamente, a redução da procura acarreta a redução da oferta).
É compreensível que a atividade das redes de tráfico seja mais facilmente
oculta ou encoberta em países onde a prostituição é legal do que naqueles em
que toda a exploração da prostituição não o é. Isso mesmo resulta do estudo
mais completo sobre a questão até agora efetuado, que envolveu cento e cinquenta
países (de Seo-Young Cho, Axel Dreher, Eric Neumayer, em World Development, vol
41, 2013, pgs. 67 a 98, acessível em www.prostitutionresearch.com).
A violência associada à
prostituição e os danos que ela acarreta para a saúde física e psíquica das
suas vítimas também se incrementam com o incremento da prostituição que resulta
da sua legalização. É assim porque não há uma prostituição “benigna”, nem a
legalização a torna “benigna”. A prostituição (legal ou ilegal) é sempre a
instrumentalização da pessoa, a sua redução a objeto de uma transação
comercial. Não pode equiparar-se a qualquer outra prestação de trabalho ou de
serviços. A sexualidade não pode ser desligada da pessoa (porque a pessoa é um
corpo, não tem um corpo que possa alugar como quem aluga um objeto de sua
propriedade). Ora, quando a pessoa é reduzida a objeto, a violência e o abuso
tornam-se expectáveis. Na prostituição, a pessoa é paga para fazer o que ela
nunca faria de bom grado, ou outra pessoa nunca faria. É por isso que a
prostituição é intrinsecamente “maligna”.
Os crimes de violação e abuso
sexual também se traduzem na redução da pessoa a objeto, precisamente porque a
sexualidade não pode ser desligada da pessoa (daí a sua particular gravidade no
confronto com outros crimes contra a liberdade, porque não é só esta que é
afetada, também o é a dignidade da pessoa). Por isso, não é errado equiparar o
trauma resultante desses crimes aos malefícios da prostituição (onde a pessoa
também é reduzida a objeto) e muitas das suas vítimas falam, a propósito, em
“ser paga para ser violada” (ver Melissa Farley, em
www.prostitutionresearch.com).
Confrontados com os resultados
negativos das experiências de legalização da prostituição na Holanda e na
Alemanha, os proponentes dessa legalização (incluindo os portugueses) voltam-se
agora para o outro lado do mundo, para a Nova Zelândia, onde tal sistema foi
implementado a partir de 2003. Mas os resultados dessa experiência não são
diferentes: incremento da prostituição em geral, do tráfico de pessoas, permanência
da violência, abusos e danos associados à prostituição (também na Nova
Zelândia, não há uma prostituição “benigna”), permanência da exploração da
parte do proxenetismo (sendo ilusória a pretensão do exercício da atividade de
forma autónoma, ou em regimes de cooperativa). Sabrinna Valisce, que durante
anos pugnou por tal regime, em face dos resultados da sua aplicação, passou a
defender o sistema da Suécia (ver Melissa Farley, in
www.postitutionresearch.com, e Renee Gerligh em www.reneejg.net)
Sei que, para justificar a
legalização da prostituição, se invoca a liberdade de quem escolhe esta
atividade sem coerções de qualquer tipo, assim como a diversidade de situações
em que é exercida a prostituição, como se esta nem sempre representasse uma
verdadeira exploração, pelo menos no plano económico.
Recordo bem o que sempre ouvi a
quem se dedicou toda a sua vida a libertar mulheres da prostituição e conhece o
fenómeno como ninguém em Portugal, Inês Fontinha: «nunca conheci nenhuma mulher
que me disesse que queria ser prostituta». A alternativa para essas mulheres
não é certamente uma carreira profissional mais ou menos gratificante. A
alternativa é, quase sempre, a fome e a exclusão social. Na origem destas
escolhas estão situações de acentuada vulnerabilidade, onde também se incluem a
toxidodependência ou a ocorrência de abusos sexuais na infância e adolescência
(ver, por exemplo, Roger Matthews, Prostitution, Politics and Policy,
Routledge-Cavendish, 2008). Não é por acaso que, por exemplo, a grande maioria
das mulheres que se prostituem na Alemanha provem dos países mais pobres da
Europa de Leste. E – dizem-no vários estudos – cerca de noventa por cento das
mulheres que se prostituem optaria por outra atividade se tal oportunidade lhes
fosse concedida. Falar em liberdade de escolha nestas situações é fechar os
olhos à realidade.
Não será sempre assim… Mas as
situações em que não é assim são uma minoria, são a exceção que confirma a
regra. E quando se elaboram leis, ou quando se legaliza uma atividade, é a
regra que deve ser considerada, não a exceção. Legalizar a prostituição
pensando nas poucas mulheres que a escolheram entre alternativas benéficas não
é sensato, porque acaba por consagrar e consolidar uma prática que a maioria
vive como uma opressão.
Em suma, quando se fala na
legalização da prostituição como se de um qualquer outro trabalho se tratasse
(o “trabalho sexual”), como um “trabalho” que sempre existiu e sempre
continuará a existir, ninguém certamente pensa nas suas filhas, pensa sempre
nas filhas dos outros…
Presidente da Comissão Nacional
Justiça e Paz
Fonte: http://observador.pt/
Nenhum comentário:
Postar um comentário