Vamos falar a verdade: para a
maioria das pessoas, o mundo do trabalho é uma pedra no sapato. Acorda-se,
bate-se o ponto, trabalha-se e volta-se para casa geralmente com o sentimento
de que aquilo tudo não faz muito sentido.Poucos têm a sorte de encontrar no seu
ofício uma missão de vida. Marinalva Cardoso Dantas, paraibana de 61 anos,
encontrou.
Marinalva é auditora fiscal do
trabalho. Seu "job description" é libertar aqueles cujo trabalho não
pode ser classificado simplesmente como "chato", mas sim como
desumano, cruel, completamente insalubre e, pior... Inescapável.
Segundo a ONG Walk Free, ainda há
155,3 mil escravos em nosso país. A estimativa é seis vezes maior do que o
número assumido pela Organização Internacional do Trabalho. De acordo com um
relatório técnico da OIT para o Brasil, temos 25 mil pessoas em "condições
análogas à escravidão", concentradas principalmente nos estados do Pará e
do Mato Grosso.
Com seu trabalho, narrado no
livro A dama da liberdade, de Klester Cavalcanti, Marinalva conseguiu devolver
a 2.354 pessoas as rédeas da própria vida. Ela integra uma das bravas equipes
da Móvel, grupo do Ministério do Trabalho responsável por correr a estrada à
procura de escravocratas.
A maior parte desses escravos é
composta por analfabetos, cooptados por falsos empregadores que os levam a
usinas de cana, madeireiras, fazendas de gado e carvoarias. Longe, muito longe
das cidades de onde vieram, esses trabalhadores já chegam nas fazendas devendo
o transporte da viagem. Obrigados a saldar a dívida que só cresce, ficam lá por
décadas e décadas, até esquecerem quem são.
O livro descreve o nascimento da escravidão:
A receita é simples: tudo o que o
lavrador precisa comprar para viver e para trabalhar – calçados, ferramentas,
comida – é vendido pelo empregador, que mantém uma mercearia na própria
fazenda. Sem liberdade de sair para outros lugares e isolados geograficamente –
o supermercado mais próximo sempre fica a dezenas de quilômetros de distância
–, não resta outra alternativa aos trabalhadores a não ser comprar o que
precisam das mãos do homem que os explora. Invariavelmente, os produtos são
vendidos a preços duas ou até três vezes acima do valor de mercado.
São esses braços, que trabalham
durante décadas sem receber um centavo, bebendo água suja, dormindo em lonas,
comendo carne estragada, que sustentam a riqueza dos grandes fazendeiros, donos
de aviões particulares e casas em Miami.
No livro, Marinalva relata
algumas das operações que fez pelos grotões do Brasil. A maior parte segue um
script: sempre a partir de uma denúncia de algum fugitivo que tem coragem de
abrir a boca, a equipe de auditores se embrenha, acompanhada pela Polícia Federal,
em latifúndios cujo tamanho supera, muitas vezes, o de cidades inteiras.
Apreendem as cadernetas onde são
anotadas as dívidas dos escravos, armas usadas para manter os cativos na linha
e documentos de trabalhadores que ficam de posse do fazendeiro.
A primeira operação relatada pelo
livro, aconteceu na fazenda Macaúba, em Marabá, no sudeste do Pará. Três
semanas antes da operação, três auditores fiscais do trabalho haviam sido
assassinados no município de Unaí, em Minas Gerais, o que tornou tudo mais
assustador.
Marinalva conta como livrou 52
brasileiros que trabalhavam 15 horas diárias sem equipamento de proteção,
bebiam água junto dos animais, faziam as necessidades na selva e comiam restos
de carne que ficavam ao relento. Dois deles eram adolescentes de 14 e 16 anos,
e uma menina de 11 anos.
A garota, Domingas dos Santos,
trabalhava na fazenda como doméstica e babá do filho da cozinheira, Danúbia
Barbosa – a adolescente de 16 anos. Quando chegou ao barraco da cozinheira,
Marinalva viu uma cena que a deixou tão emocionada quanto indignada. Domingas
caminhava de um lado a outro, sobre o chão de terra batida, com um bebê de 2
anos no colo. Deparar com um bebê vivendo naquelas condições doeu-lhe ainda
mais. Que futuro poderiam ter? Aos 11 anos, Domingas já havia sido tragada pelo
mundo da escravidão contemporânea. E o bebê de 2 anos parecia fadado ao mesmo
destino.
Em outra operação, na Fazenda
Cabaceiras, também em Marabá, encontrou trabalhadores em situação aviltante. É
o caso de Pedro de Souza, um senhor de 74 anos que, sem saber que já poderia
estar aposentado desde os 65, recebendo um salário mínimo do governo,
continuava a trabalhar em condições desumanas.
De cabelos brancos e rosto
coberto de rugas, tinha os dentes amarelados e tortos, com a arcada superior
recuada, e a pele tostada pelo Sol amazônico. Ao ser informado de que seria
libertado e não precisaria jamais passar por aquele sofrimento miserável,
agarrou as mãos de Marinalva com um quase desespero. E chorou. De alívio e
alegria. As lágrimas escorriam lentamente por suas rugas profundas. Só
conseguia dizer duas palavras: “Obrigado, doutora! Obrigado, doutora!”. A
auditora chegou a sentir os olhos lacrimejando, mas se conteve. Não queria
demonstrar suas emoções naquele ambiente tão indigno.
Escravos socorridos em 2002 no
sul do Pará
Em Maceió, viu 2.500 homens,
mulheres e crianças, serem mantidos feito gado. Todo dia, depois do pôr do sol,
os escravos eram "guardados" em barracões trancados por fora com
correntes e cadeados. Passavam a noite sem água e sem banheiro. A fazenda era
quase um campo de concentração: tinha arame-farpado e guaritas com homens
armados 24 horas por dia. A explicação dos capangas? "A gente tranca eles
pra não ter risco de roubarem a TV da fazenda", mentiu.
Ao longo da carreira, Marinalva
acumulou narrativas de barbárie. Surras com pedaços de pau, talhos de facão,
unhas arrancadas com alicate, privação de comida, estupros, assassinatos.
Enfrentou um prefeito escravocrata, acusado de serrar um homem ao meio. Viu um
escravo relatar, envergonhado, ter apanhado por pedir água limpa para beber.
Poderia ter sido ela
Marinalva poderia ter se tornado
uma das vítimas do sistema que combatia. Nasceu em Campina Grande, na Paraíba.
Sua infância poderia ter sido um
pouco menos dura se o pai, Joaquim, motorista de ônibus, não mantivesse duas
famílias. Viviam em um barraco dividido por cortinas, sem água encanada e nem
energia elétrica.
Ironicamente, a água suja foi o
que lhe salvou. Aos 3 anos, Marinalva pegou lombrigas. Seu pai achou por bem
mandá-la para a casa da tia, Otília, que morava em Caicó, no Rio Grande do
Norte.
Otília, que era casada com um
empresário de relativo sucesso, levou Marinalva ao médico e deu-lhe os
primeiros presentes que ganhou na vida: um brinquinho de ouro e um vestido.
Marinalva ficou com Otília e,
graças à Ascaris lumbricoides teve uma vida que seus irmãos nunca poderiam ter.
Estudou nos melhores colégios, foi a museus, teatro, cinema.
Formou-se em Direito na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e foi aprovada no concurso para
auditora fiscal do Trabalho em 1984. Começou no combate ao trabalho infantil, e
sua atuação foi ganhando força até que, em 1993, foi nomeada Chefe da
Fiscalização no Rio Grande do Norte.
Em 1995, foi convidada a
participar de um novo grupo que estava em formação no governo Fernando
Henrique, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. A
unidade, que já libertou cerca de 50 mil pessoas, chegou a ter nove equipes
mas, hoje, se resume a quatro.
Vida em família
A dedicação total de Marinalva à
carreira acabou por desmoronar sua vida pessoal. Marinalva viu seu casamento
ruir, os filhos se distanciarem e sua Síndrome do Pânico, diagnosticada em
1988, lhe tirar o controle várias vezes.
Desde que havia entrado para a
Móvel, em 1995, as queixas do marido por suas longas viagens, se tornaram cada
vez mais frequentes.
Até hoje, Marinalva diz que seu
casamento com Joel, também auditor fiscal, foi um dos dias mais felizes de sua
vida.
Os filhos tinham raiva do
trabalho da mãe, e não queriam nem ouvir as excitantes histórias que Marinalva
tinha ansiedade de contar após uma longa viagem.
Essa deterioração do ambiente
familiar tornava a presença em casa insuportável. Até que, em 6 de janeiro de
2000, seu casamento acabou. Ainda assim, nunca deixou de sentir que todo aquele
sacrifício valia a pena.
Com o tempo, recuperou o
relacionamento com os filhos, que hoje têm o maior orgulho da mãe heroína.
Por pressão política, Marinalva
teve de deixar a Móvel e hoje coordena a área de erradicação do trabalho
infantil do Rio Grande do Norte. Mas ter libertado 2.354 pessoas do cativeiro
não lhe parece, ainda, suficiente.
Diz que seu sonho é procurar,
procurar, e não encontrar um só escravo. Ainda luta por isso.
Fonte: Brasil Post
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