Assédios, estupros e abusos são vividos
pelas mulheres nas cidades como se transitassem em espaços que não são seus.
Isso é reforçado pelo descuido com serviços comuns, como transporte e
iluminação. Em vez de a cidade se adequar às necessidades de suas usuárias, são
elas que mudam hábitos, roupas, percursos e horários.
por Ana Paula
Ferreira
Em 2008, a humanidade atingiu uma marca
histórica: mais da metade da população mundial passou a viver em áreas urbanas.
Atualmente, são mais de 3,3 bilhões de pessoas morando em cidades e vilas em
expansão, e mais de 65 milhões sendo adicionadas à população urbana a cada ano.
Muitas delas são mulheres à procura de oportunidades para melhorar suas
condições de vida.
Entretanto, os casos de violência
contra a mulher nos espaços públicos urbanos são alarmantes. Os chocantes
estupros coletivos seguidos de morte na Índia chamaram a atenção mundial para o
problema de abusos que não se restringem ao ambiente doméstico. Tais incidentes
se repetem em várias cidades ao redor do globo. O Rio de Janeiro testemunhou,
recentemente, um estupro na Vista Chinesa, tradicional local para prática de
esportes. Segundo a Organização Mundial da Saúde, sete em cada dez mulheres no
mundo já foram ou serão violentadas em algum momento da vida.1
Graças aos esforços do movimento
feminista mundial, está crescendo o debate sobre a segurança das mulheres nos
espaços urbanos e públicos. Alguns sinais positivos estão surgindo, e governos
têm demonstrado disposição para reconhecer o problema e dialogar.
Mas por que as
cidades não são seguras para as mulheres? Historicamente, o espaço urbano
reflete as divisões de papéis tradicionais entre os gêneros, que reservam à
mulher o âmbito doméstico e ao homem os espaços públicos. Ou seja, as cidades
reproduzem relações de poder e dominação entre gêneros.
Assédios, estupros e abusos são
experiências vividas pelas mulheres nas cidades como se estivessem transitando
em espaços que não são seus. Isso é reforçado pelo descuido com serviços
comuns, como transporte e iluminação, que tornam o espaço público mais propenso
à vulnerabilidade. Em vez de a cidade se adequar às necessidades de suas
usuárias, são elas que mudam hábitos, roupas, percursos e horários para driblar
o medo da violência.
Esse tipo de reflexão surgiu nos anos
1970, quando grupos de mulheres em diversos países começaram a organizar
marchas para “tomar a noite de volta”, uma forma de protestar contra o medo que
sentiam de andar sozinhas em horários noturnos.
Ao longo do tempo, a ONU e várias
organizações, fóruns e conferências2 promoveram
debates sobre a segurança urbana das mulheres. Suas abordagens variadas
encorajaram a realização de iniciativas para envolver as próprias mulheres na
criação de cidades mais seguras.
Em 2010, a
terceira conferência internacional sobre o tema recuperou diferentes
compromissos, recomendações e iniciativas, e gerou uma declaração que demanda
ações conjuntas de governos, setor privado, academia e sociedade civil para a
construção de cidades inclusivas e seguras.3
Viena, na Áustria,4 é um famoso
caso de urbanismo voltado para as necessidades das mulheres, com um
planejamento que levou em conta os diferentes usos e circulações de homens e
mulheres no espaço público. Seul, na Coreia do Sul, é conhecida como a cidade
mais amigável em termos de gênero, com orçamento e ações integradas que
equiparam a cidade com serviços específicos para as rotinas das mulheres.5 Canberra, na
Austrália, desenvolveu um estudo recomendando o investimento em transporte para
potencializar as capacidades das mulheres como agentes econômicos.6
No entanto, quando se transportam esses
exemplos para países marcados por profundas desigualdades sociais é preciso
considerar dimensões como classe social, raça, etnia e ocupação. A ausência
dessa reflexão pode limitar as respostas do poder público a medidas meramente
funcionais para o problema.
O Brasil, país cujas cidades têm 89,6
milhões de mulheres e 82,4 milhões de homens,7 enfrenta um
sério problema de violência de gênero. Pesquisa do DataSenado de 2013 estimou
que mais de 13,5 milhões de mulheres (19% da população feminina em todo o país
com 16 anos ou mais) já sofreram algum tipo de agressão.8 Pensando sob a
perspectiva da mulher urbana, em 2006, a ONU Mulheres e o SOS Corpo iniciaram
um projeto sobre cidades seguras em Recife para ampliar o diálogo com o poder
público. Em 2011, o Rio de Janeiro recebeu o programa “Cidades seguras e
sustentáveis para todos”, coordenado por ONU Mulheres, Unicef e ONU-Habitat.9
Em agosto deste
ano, a ActionAid lançou no país a campanha Cidades Seguras para as Mulheres,
que pretende colocar sob os holofotes as dificuldades enfrentadas por mulheres
que vivem nas periferias das cidades. Para embasar o trabalho, a organização
ouviu moradoras de comunidades em quatro estados: São Paulo, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Norte e Pernambuco.10 A
pesquisa deixou claro que a precariedade de serviços públicos básicos
oferecidos nas cidades aumenta a sensação de insegurança das usuárias e
torna-as mais vulneráveis à violência. Para 98% das mulheres ouvidas, a
iluminação dá mais segurança nas ruas. Em contrapartida, 74% delas já desviaram
de caminhos por onde passariam porque determinado trecho era escuro. Outro dado
revelador é que menos da metade das mulheres ouvidas se sente segura onde vive.
Paradas de ônibus, becos e praças são considerados perigosos por moradoras de
todas as localidades consultadas.
Para além do medo,
estão os impactos que a vulnerabilidade tem sobre a vida profissional e
econômica dessas mulheres. Scarllet Barbosa tem 18 anos e vive em Cabo de Santo
Agostinho, cidade pernambucana que foi invadida, nos últimos anos, por milhares
de trabalhadores para a construção do Complexo do Suape. Scarllet mora numa rua
mal iluminada, assim como todo o caminho que ela faz entre sua casa e o ponto
de ônibus. Finalizando um curso técnico, ela recebeu recentemente uma proposta
de estágio, que teve de ser recusada porque alteraria seus horários e a faria
chegar em casa mais tarde que o considerado seguro.
“Isso me prejudica, porque o curso que
estou fazendo exige que eu tenha seiscentas horas de estágio para me formar. E
não posso fazer isso enquanto estudo. Vou ter de esperar as aulas terminarem
para começar o estágio, o que vai atrasar minha formação profissional”,
explica.
Autoras das
próprias estratégias para driblar o medo, as mulheres sabem que medidas simples
poderiam tornar as cidades mais seguras. Para ruas escuras, as entrevistadas
pedem universalização da iluminação. Para ônibus e pontos inseguros, iluminação
e vigilância contra assédios. Para o policiamento despreparado, elas sugerem a humanização
dos agentes de segurança pública para lidar com a violência de gênero. As
sugestões foram detalhadas num documento entregue às secretarias de mulheres de
São Paulo e de Recife, a representantes do governo federal e a candidatos ao
governo do estado de Pernambuco nas eleições deste mês de outubro. Com duas
mulheres liderando a corrida presidencial, a reflexão sobre as
responsabilidades dos gestores públicos sobre as vivências que as mulheres têm
nas cidades brasileiras poucas vezes foi tão pertinente.
Ana Paula Ferreira
Ana Paula Ferreira é coordenadora do
programa de direito das mulheres na ActionAid Brasil
Fonte: Le Monde Diplomatique
|
1
Disponível em:
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/85239/1/9789241564625_eng.pd.
2
Por exemplo, a Women in Cities International (Wici), The Huairou Commission,
Jagori, Cedaw, Plataforma de Beijing, Red Mujer y Habitat de América Latina,
UN-Habitat e UN Women (anteriormente Unifem).
3
Disponível em:
www.femmesetvilles.org/index.php/en/conferences/third-international-conference-on-women-s.
4
Disponível em:www.slate.com/blogs/xx_factor/2013/09/20/urban_planning_for_women_let_s_all_move_to_vienna.html.
5
Disponível em: www.womenfriendlycity.or.kr/about/about_03.htm.
6
Disponível em: www.fhwa.dot.gov/ohim/womens/chap34.pdf.
7
Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/brasil-tem-quase-6-milhoes-de-mulheres-a-mais-que-homens-18092014
8
Disponível em:
www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2014/06/05/datasenado-13-5-milhoes-de-brasileiras-ja-sofreram-agressao
9
Disponível em:
www.unwomen.org/en/what-we-do/ending-violence-against-women/creating-safe-public-spaces
10 Disponível em:
www.actionaid.org.br/sites/files/actionaid/linha_de_base_webv.pdf
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