"As conquistas do feminismo são cotidianas e se
manifestam em políticas públicas em favor das mulheres, políticas frutos de suas
próprias lutas e em mil e uma atividades nas quais o respeito às mulheres é
garantido”, diz a teóloga.
A teologia feminista adotada por Ivone Gebaraparte da
aproximação "das dores e das perguntas das pessoas sem ter uma resposta
arrumada e doutrinária” e "das situações reais onde as pessoas se
encontram”. É assim que a teóloga católica, da ordem das irmãs de Nossa Senhora
- Cônegas de Santo Agostinho, narra, na entrevista a seguir, sua aproximação
com o feminismo e como foi "levada a perceber” o quanto sua "maneira
de fazer teologia não incluía os sofrimentos e sonhos das mulheres”. Por conta
disso, foi necessário pensar uma teologia feminista.
Para Ivone, "há uma grande diferença entre o fazer
teológico feminista e o fazer teológico tradicional afirmado como atual
teologia oficial da Igreja”. Segundo ela, apesar de a "afirmação comum”,
"Deus é Deus”, refletir "o pensamento de muita gente”, há
"múltiplas significações da palavra Deus”. Ela explica: "Mesmo quando
dizemos só há um Deus, essa afirmação é vivida de maneiras diferentes. Nas
diferentes tradições cristãs e na vida das pessoas ordinárias, a palavra Deus,
embora todos a utilizem, não significa a mesma coisa para todo mundo porque
cada pessoa vivencia esse Mistério Maior à sua maneira. Nesse sentido se pode
dizer que cada um faz a sua teologia embora pertençamos a uma mesma Igreja.
Todos nós queremos viver o amor, mas cada um o vive à sua maneira ou segundo a
sua história e interpretação”. Do mesmo modo, a teóloga católica aponta uma
distinção entre ateologia feministae a teologia oficial da Igreja. "A
teologia feminista nasceu da constatação da cumplicidade de certo cristianismo
com a opressão e dominação das mulheres inclusive no interior da Igreja. (...)
Por isso, o Deus das mulheres feministas que buscam libertar-se de muitas
formas de opressão histórica não tem a mesma imagem legalista e controladora de
outras teologias”, explica.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail,
a teóloga também comenta a situação das irmãs religiosas norte-americanas que
constituem a LCWR, e que estão sendo avaliadas pelo Vaticano. Para ela, "a
situação das religiosas norte-americanas é um exemplo de conflito atual entre
uma parte da hierarquia católica e mulheres inteligentes, com excelente formação
e atuação em diferentes meios sociais”.
Na mesma linha, ela assegura que "as teologias
feministas existentes nunca foram foco de interesse do papa Francisco e nem de
outros”. Nesse sentido, menciona, o fato de o Papa Francisco não aludir
"ao movimento feminista que na Argentina teve e tem uma das expressões
mais significativas da América Latina” é visto com estranheza.
"Nessa postura, o papa criou certa confusão nas
informações, sobretudo quando afirma a necessidade de repensar a presença da
mulher na Igreja, sua vocação e coisas nesse estilo, que é mais retórica do que
posturas que revelem mudanças significativas. É claro que a tradição patriarcal
onipresente e a máquina burocrática do Vaticano assim como das Igrejas locais
não facilitam mudanças institucionais para as mulheres. Mas elas caminham
apesar dos pesares, afirmando sua liberdade de existir e expressar suas
necessidades e seus sonhos”, conclui.
Ivone Gebaraserá condecorada com o título de Doutora Honoris
Causa das Faculdades EST por sua contribuição com o debate e a formação
teológica no contexto brasileiro e latino-americano, durante o II Congresso
Internacional da Faculdades EST, que ocorre entre os dias 8 e 12 de setembro. A
outorga do título será no dia 10 de setembro, quarta-feira, às 19h, em São
Leopoldo, RS.
Ivone Gebaraé doutora em Filosofia pela Universidade
Católica de São Paulo e em Ciências Religiosas pelaUniversité Catholique du
Louvain, na Bélgica. Ela lecionou durante 17 anos no Instituto de Teologia do
Recife - ITER, até sua dissolução, decretada pelo Vaticano, em 1989.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como iniciou sua trajetória na Igreja e em que
momento passou a ter interesse pelas ideias feministas e a defender uma postura
feminista na Igreja?
Ivone Gebara - Não é a primeira vez que me fazem esta
pergunta. Provavelmente por uma parte vou me repetir na resposta, mas por outra
parte, cada resposta é uma resposta dada em um tempo diferente.
Gosto de dizer que vários acontecimentos contribuíram para
que eu abraçasse o feminismo. No final dos anos 1970, por conta de um trabalho
de formação alternativa do qual fazia parte com outros professores do Instituto
de Teologia do Recife, fui levada a perceber o quanto a minha maneira de fazer
teologia não incluía os sofrimentos e sonhos das mulheres. Dolorosamente, uma
mulher me acordou para o fato de que meus exemplos sempre se referiam à vida de
homens, e que mesmo sendo eu mulher, desconhecia a vida real das mulheres,
sobretudo das pobres. Disse ‘dolorosamente’ porque eu estava habituada a fazer
análises de conjuntura e tive dificuldade de aceitar o fato de que eu não
incluía de forma especial a vida das mulheres operárias, camponesas, domésticas
na minha abordagem. Consegui entrar num processo de conversão e abrir-me a um
mundo que era meu, mas que eu não via ou não priorizava. Comecei a resgatar a
minha história pessoal, a das mulheres de minha família, das minhas colegas de
trabalho e perceber que meus instrumentos de análise se fundavam em chaves
masculinas, visto que retratavam especialmente situações de protagonismo
masculino. Muitas vezes também eram análises abstratas e teóricas.
Outro caminho foi a leitura de textos de teólogas da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos. Fiquei impressionada com a denúncia que faziam
do mundo patriarcal e das violentas consequências sobre a vida das mulheres. Eu
não usava a expressão "mundo patriarcal” e nem outras comuns ao feminismo
da época. Pouco a pouco fui aprendendo uma nova linguagem que na realidade era
mais um novo instrumental de análise para compreender a violência física e
simbólica em relação às mulheres. Comecei a sentir e a refletir sobre as
diferenças, sobre o público e o privado, sobre o uso das representações de
Deus, sobre o simbolismo nas religiões. Um mundo novo se descortinava.
Interação latino-americana
Nesse tempo outras mulheres da América Latina também
acordaram para o complexo problema da opressão das mulheres nas Igrejas, e
pudemos nos organizar e participar de encontros internacionais nos quais
partilhávamos percepções e ideias. Isto alargou muito meus horizontes
feministas.
Creio que um fato decisivo em minha vida foi encontrar as
‘Católicas pelo Direito a Decidir’ do Uruguai. Isto aconteceu no início de
1980. A abordagem que faziam da opressão sexual das mulheres e sua luta contra
a descriminalização e legalização do abortoabriram mais uma janela em minha
reflexão.
Lembro-me de uma feminista leiga que me perguntou uma vez: o
que você como teóloga tem a dizer sobre a violência sexual vivida pelas
mulheres? O que tem a dizer sobre o estupro e o aborto? Em que sua teologia
modifica o pensamento misógino e sexista da Igreja Católica? Confesso que na
hora me senti confusa e não sabia o que responder. Percebi imediatamente que
mais uma vez a teologia que eu aprendera e que eu ensinava carecia de uma transformação
radical, de uma revolução antropológica, de outras referências. A teologia da
libertação já me ensinara muito. Mas um novo passo precisava ser dado.
Desafios como esses foram crescendo ao longo de minha vida e
me ensinando a aproximar-me das dores e das perguntas das pessoas sem ter uma
resposta arrumada e doutrinária. Esse é um método teológico que chamo
feminista, embora não exclusivo, pois parte das situações reais onde as pessoas
se encontram, consideram a pessoa como mais importante do que a lei, a norma ou
a doutrina. Somos convidadas a sentir a vida antes de pensá-la. Somos
convidadas a ouvir sem dar respostas imediatas. Somos convidadas a buscar
juntas saídas para as muitas situações difíceis e complexas da vida.
Esta metodologia baseada em nossas vidas passa a ser crítica
das posturas hierárquicas preestabelecidas e por isso mesmo é dificilmente
aceita pela cúpula das igrejas. O fato de afirmar a necessidade das mulheres de
escolherem e decidirem sua vida apesar das limitações que nos constituem
geraram conflitos inevitáveis e isto até os dias de hoje.
IHU On-Line - A senhora está acompanhando a situação das
irmãs norte-americanas da LCWR, que estão sendo avaliadas pelo Vaticano por
conta de não seguirem a doutrina da Igreja? Se sim, como vê a atuação delas nos
EUA?
Ivone Gebara - A situação das religiosas norte-americanas é
um exemplo de conflito atual entre uma parte da hierarquia católica e mulheres
inteligentes, com excelente formação e atuação em diferentes meios sociais. São
essas mulheres que constituem a LCWR. A dificuldade da hierarquia católica é de
aceitar a autodeterminação dessas mulheres religiosas que, na realidade, estão
conscientes de que não necessitam da aprovação de um sacerdote ou um bispo para
viver o amor e a justiça aos quais se sentem chamadas. Não necessitam pedir
permissão para ler, estudar, ajudar grupos e convidar pessoas para suas
reuniões conforme a vontade de um bispo. Elas ousaram assumir seu direito de
serem cidadãs e são punidas por isso. Na Igreja Católica Romana as mulheres e
em especial as religiosas não têm cidadania total. Tenho acompanhado, na medida
do possível, o complexo processo que essas religiosas estão vivendo e elas têm
todo o meu apoio.
Impressiona-me o fato de que o Papa Francisco não tenha
tomado uma posição mais aberta em relação a elas. Há dois anos, oCardeal
Mülleras criticou e acusou de promotoras de temas radicais de feminismo. Essa
acusação perdura até hoje, mesmo se outras palavras são usadas. A cúpula
eclesiástica teme ser acusada de misoginia e se defende, mas seu comportamento
é mais do que misógino. Infelizmente eles se apegam a um incrível biologismo ou
à consideração da anatomia como destino. Deduzem do fato de Jesus de Nazaré ser
do sexo masculino argumentos em favor da exclusão das mulheres. E nessa linha
dão mais importância à função sacerdotal da qual Jesus não fez parte em
detrimento de uma compreensão mais ética do Cristianismo onde dimensões
inclusivas e múltiplas poderiam ser acentuadas. Jesus não pertencia à elite
sacerdotal de Israel. Ao contrário, a criticou e tomou distância em relação a
ela. Jesus levou uma vida de proximidade com homens, mulheres, crianças, judeus
e estrangeiros. Com eles e elas viveu pregando através de sua vida o Reinado de
Deus através de ações concretas capazes de modificar a vida das pessoas. Isso
lhe valeu incompreensões, injúrias e a crucifixão.
IHU On-Line - O que diferencia a teologia feminista da
teologia, ou que aspectos a teologia feminista agrega à teologia, considerando
que Deus é Deus e não se trata de uma discussão de gênero apesar de nos
referirmos a Deus Pai?
Ivone Gebara - Há uma grande diferença entre o fazer
teológico feminista e o fazer teológico tradicional afirmado como atual
teologia oficial da Igreja. A primeira coisa que quero comentar é a afirmação
comum "Deus é Deus” presente na pergunta e que reflete o pensamento de
muita gente. Chamo a atenção para o fato das múltiplas significações da palavra
Deus. Mesmo quando dizemos só há um Deus, essa afirmação é vivida de maneiras diferentes.
Nas diferentes tradições cristãs e na vida das pessoas ordinárias, a palavra
Deus, embora todos a utilizem, não significa a mesma coisa para todo mundo
porque cada pessoa vivencia esse Mistério Maior à sua maneira. Nesse sentido se
pode dizer que cada um faz a sua teologia, embora pertençamos a uma mesma
Igreja. Todos nós queremos viver o amor, mas cada um o vive à sua maneira ou
segundo a sua história e interpretação. Para tomar exemplos dos Evangelhos, a
teologia de uma mulher que sofre de fluxo de sangue não é a mesma daquela do
fariseu que entra no Templo e se afirma como justo. A teologia da Inquisição
não é a mesma dos Direitos Humanos defendida hoje por tantas pessoas.
Teologia tradicional x teologia feminista
Nessa linha quero distinguir a teologia feminista da
teologia oficial da Igreja. A teologia feministanasceu da constatação da
cumplicidade de certo cristianismo com a opressão e dominação das mulheres
inclusive no interior da Igreja. Nasce da consciência de que as mulheres são
apenas formalmente "sujeitas de direitos”. Nasce da constatação de que a
opressão significa a consideração da mulher como sendo criada subalterna ao
homem e, mesmo quando se fala em complementar se entende muitas vezes
subalterna. Não podemos nos esquecer do mito de Adão e Eva criada de uma de
suas costelas. Isto tudo leva à formulação de interpretações e doutrinas que
reforçam certos estereótipos que entregam ao masculino o poder de decisão
inclusive sobre nossas vidas.
As teologias feministas todas nascidas das estruturas
patriarcais que ainda continuam muito presentes em nós tentam propor mudanças
pessoais e coletivas que possam de fato incidir sobre o coletivo ou sobre a
vida social. As mudanças são lentas, mas a cada situação é preciso rever o que
estamos querendo. Por isso, o Deus das mulheres feministas que buscam
libertar-se de muitas formas de opressão histórica não tem a mesma imagem
legalista e controladora de outras teologias. A própria luta de muitos grupos
de mulheres justifica a existência das teologias feministas e sua pertinência
mesmo minoritária nos dias de hoje.
IHU On-Line - Como a senhora avalia os avanços nas
discussões de gênero, considerando que os debates iniciais tratavam
especialmente das mulheres, mas posteriormente avançou-se para a defesa dos
direitos LGBT, fala-se também em transgênero e, inclusive, mais recentemente,
em terceiro gênero? Aliás, a Alemanha criou uma categoria chamada terceiro
gênero para os pais poderem registrar os filhos como "masculino”,
"feminino” ou "indefinido”. Para onde essa discussão está nos
levando?
Ivone Gebara - Este não é o espaço para explicar como o
conceito gênero se tornou um instrumento de análise do feminismo. Há uma longa
história. Em linhas gerais, quando se falava de gênero se pensava na existência
de apenas dois gêneros: o masculino e o feminino. As outras experiências
humanas como a dos bissexuais, transgêneros e indefinidos não apareciam. Alguns
médicos europeus e norte-americanos depararam com a realidade dos bebês que
nasciam com o sexo biológico indefinido. Precisava-se esperar um bom tempo até
que os pais e mesmo a criança decidissem de seu gênero através de cirurgias ou
outros tratamentos. As famílias e também os registros de nascimento eram
afetados por essa realidade inesperada. Por isso países como a Alemanha
introduziram a opção sexo "indefinido” para se dar o tempo necessário para
uma provável decisão.
Sem dúvida estamos avançando na questão à medida que
descobrimos novos aspectos da complexa sexualidade humana que não pode ser mais
reduzida a um esquema binário: ‘ou isso ou aquilo’. Mas, junto com os avanços
surgem novos problemas de identidade, novas situações, novos desafios. Tudo
isso faz parte da condição humana e da vida em sociedade que nos convida cada
dia a tentar compreender-nos de novo. E nessa compreensão ajustar nossa
linguagem, nossos sentimentos, nossas posturas políticas e leis sociais.
IHU On-Line - O feminismo ainda tem algo a dizer nos dias de
hoje?
Ivone Gebara - Pelo que expus acima, minha resposta é
afirmativa, embora tenha de convir que a forma e os desafios do feminismo sejam
diferentes nos tempos atuais. Muitas vezes as lutas feministas não aparecem
ligadas à tradição primeira do feminismo. Refiro-me, sobretudo, às novas
gerações de mulheres que lutam por seus direitos. Assistimos, por exemplo, à
reação de mulheres ao estupro em série feito por um famoso médico de São Paulo,
agora preso. As que o denunciaram, na realidade, não se diziam feministas, mas
tinham consciência da dignidade de suas vidas como mulheres. Em muitas
universidades, grupos vêm denunciando o estupro, antes considerado como coisa
comum e que acabava sempre na impunidade. Hoje, em diferentes universidades, as
mulheres estão mais lúcidas e mostram a cara para denunciar os agressores.
Hoje, igualmente, o tráfico de mulheres e a exploração das
meninas por grupos nacionais e internacionais têm tido um alerta grande de
ONGs, universidades, governos e igrejas. Isto não é chamado de feminismo, mas
na realidade tem a ver com as lutas feministas do passado e do presente que
ajudaram na conscientização de vários problemas e afirmaram a dignidade das
mulheres. As conquistas do feminismo são cotidianas e se manifestam em
políticas públicas em favor das mulheres, políticas fruto de suas próprias
lutas e em mil e uma atividades nas quais o respeito às mulheres é garantido.
IHU On-Line – Em linhas gerais, como avalia o pontificado de
Francisco? Há espaço para a teologia feminista neste pontificado?
Ivone Gebara - De uma maneira geral e bastante rápida,
pode-se dizer que os feminismos e as teologias feministas existentes nunca
foram foco de interesse do papa Francisco e nem de outros. É claro que meu
julgamento se apoia em suas posturas públicas. É estranho que nunca aludisse ao
movimento feminista que na Argentina teve e tem uma das expressões mais significativas
da América Latina. Da mesma forma não menciona a existência de teólogas
feministas nem na América Latina, nem em outros continentes, quando sabemos o
quanto elas escreveram, ensinaram e até foram perseguidas pela Igreja Católica
nos séculos XX e XXI.
Não creio que esse silêncio seja real desconhecimento dos
fatos, mas sim uma postura político-eclesiástica. Não falar de alguém ou de um
movimento mundial, tentar até ignorá-lo é não permitir que ele apareça na sua
força histórica. É não dar-lhe importância e não considerá-lo como algo que
poderia trazer alguma contribuição para a Igreja. Nessa postura, o papa criou
certa confusão nas informações, sobretudo quando afirma a necessidade de
repensar a presença da mulher na Igreja, sua vocação e coisas nesse estilo, que
é mais retórica do que posturas que revelem mudanças significativas. É claro
que a tradição patriarcal onipresente e a máquina burocrática do Vaticano assim
como das Igrejas locais não facilitam mudanças institucionais para as mulheres.
Mas elas caminham apesar dos pesares, afirmando sua liberdade de existir e
expressar suas necessidades e seus sonhos.
Fonte: ( Patricia Fachin) Adital
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