Brasília, dia 15 de junho: 2,5 mil manifestantes tomam o
rumo do Estádio Mané Garrincha aos gritos de “Da Copa eu abro mão, quero mais
dinheiro para saúde e educação”. Ao atingir o cordão de isolamento da Polícia
Militar nos arredores do estádio, a maioria é dispersada por bombas de gás,
balas de borracha e jatos de spray de pimenta. Do lado de dentro, a seleção
brasileira jogava com o Japão, na estreia do Brasil na Copa das Confederações.
Quatro dias depois, foi a vez de Fortaleza testemunhar cenas
parecidas, só que dessa vez foram 15 mil manifestantes que se reuniram para
protestar, também esbarrando no cordão de isolamento da PM e sendo dispersados
por bombas de efeito moral e balas de borracha. A três quilômetros dali, no
estádio do Castelão, o Brasil jogava contra o México. No dia 26 de junho, uma
manifestação reunindo 50 mil pessoas terminou em confronto com a PM nos
arredores do Mineirão, em Belo Horizonte, onde a seleção brasileira jogaria
contra o Uruguai pela semifinal da Copa das Confederações.
E finalmente, no dia 30, no Rio de Janeiro, 5 mil
manifestantes, alguns empunhando cartazes com frases como “Queremos escolas e
hospitais no padrão FIFA”, rumaram em direção ao Maracanã para protestar, mas
seu trajeto foi desviado pelo cordão de isolamento realizado pelos 6 mil
policiais militares que patrulhavam os arredores do estádio. Houve confronto
entre policiais e manifestantes em áreas próximas ao Maracanã. Lá dentro, o
Brasil disputava a final da Copa das Confederações contra a Espanha.
A seleção brasileira acabou vencendo os espanhóis e
conquistou pela quarta vez o título da Copa das Confederações. Mas só quem viu
foi quem pôde comprar um ingresso (entre R$ 100 e R$ 418), uma vez que a PM fez
um cordão isolando o Maracanã. Só passava quem tinha ingresso, e mesmo os
moradores tiveram que provar que residiam ali para poderem circular livremente.
E de alguma forma essa conquista ficou em segundo plano
diante das manifestações que foram acontecendo antes, durante e após as
partidas da seleção no torneio. A Copa do Mundo sozinha não explica o que
aconteceu, mas essa vinculação fica clara quando vemos, no meio das mensagens
estampadas nos cartazes empunhados pelos manifestantes, frases como: “Tem
dinheiro para a Copa, mas não tem para a educação?”, ou ainda “Cartão vermelho
para a Copa que viola os direitos humanos”. Por um lado, há uma crítica à
alocação de recursos públicos nas obras da Copa em contraste com as políticas
sociais cronicamente deficitárias, e, por outro, a revolta com a própria
maneira com que vem sendo conduzido o processo de preparação das cidades-sede
para o evento, marcado por denúncias de violações de direitos,. levantando a
questão: qual será, de fato, o legado da Copa do Mundo de 2014 para o Brasil?
O incômodo das
manifestações
O presidente da Fifa Joseph Blatter já havia dito, em julho,
que caso esse contexto marcado por manifestações voltasse a ocorrer em 2014, a
Fifa deveria reconhecer que o Brasil não era o local adequado para a disputa da
Copa do Mundo. Em agosto, a divulgação dos resultados da pesquisa ‘Da Copa das
Confederações à Copa do Mundo’, realizada pela consultora Nielsen Sports,
indicou que o receio de Blatter não era infundado e colocou uma sombra de
dúvida sobre os lucros das empresas que firmaram contratos com a Fifa para
patrocinar o evento. Segundo a pesquisa, o apoio da população à Copa do Mundo
caiu de 71% para 45% entre setembro de 2012 e julho de 2013. No mesmo período,
a disposição para comprar produtos das marcas patrocinadoras da Copa caiu de
58% para 31%. Ainda segundo a pesquisa, enquanto em setembro do ano passado 33%
dos entrevistados pela Nielsen Sports acreditavam que os custos com a Copa do
Mundo seriam maiores que seus benefícios, esse índice subiu para 61% após a
Copa das Confederações. Em nota, a assessoria de comunicação da Nielsen Sports
concluiu: “Cabe às marcas saber trabalhar este momento para transmitir à
população, feita por consumidores, uma mensagem de apoio e de preocupação com
outros temas que têm tirado o sono do brasileiro. Que comece uma nova corrida
rumo à boa imagem na Copa do Mundo”.
Mas tudo indica que essa será uma “corrida” com obstáculos,
e o principal deles tem o tamanho de uma montanha de dinheiro: R$ 28 bilhões,
que é o que vai custar, pelos dados oficiais, a Copa do Mundo de 2014. A Matriz
de Responsabilidades – que define o papel de cada ente federativo na preparação
para o Mundial – em sua versão mais atual, de abril deste ano, fala em R$ 25,5
bilhões, mas o governo federal anunciou em junho que o valor deverá sofrer um
acréscimo de 10%, totalizando R$ 28 bilhões. Nesse valor estão inclusos gastos
com reforma e construção de estádios (R$ 7,5 bilhões), obras de mobilidade
urbana (R$ 8,9 bilhões), ampliação de aeroportos (R$ 8,4 bilhões) e portos (R$
675 milhões), além de gastos com segurança (R$ 1,9 bilhão), telecomunicações
(R$ 371 milhões) e infraestrutura de turismo (R$ 212 milhões) nas 12
cidades-sede. E ainda que o governo federal não tenha divulgado os dados
pormenorizados já com o reajuste de 10%, os números da Matriz de
Responsabilidades de abril mostram que os cofres públicos vão arcar com a maior
parte dos custos, mais de 80%, somando recursos federais, estaduais e
municipais.
Três bancos federais, a Caixa Econômica Federal, o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco Nordeste do
Brasil (BNB) financiam - a juros subsidiados - pouco mais de um terço do total
das obras: R$ 8,7 bilhões. Boa parte dos empréstimos foi tomada por governos
estaduais, sozinhos ou em parcerias com o setor privado, por meio de parcerias
público-privadas (PPPs). Outros R$ 6,5 bilhões virão do orçamento federal. Os
governos estaduais e municipais entrarão com R$ 7,3 bilhões.
Prioridades
Como muitos dos cartazes mostraram de maneira irônica
durante as manifestações, as cifras bilionárias envolvidas na preparação para a
Copa contrastam com a falta de recursos destinados para políticas sociais como
a saúde e a educação. Segundo informações do site da Auditoria Cidadã da
Dívida, os R$ 28 bilhões que serão gastos com a Copa - evento que vai durar um
mês - representam em torno de metade do valor destinado para a Educação no
Orçamento Geral da União para todo o ano de 2012, que foi de R$ 57 bilhões, e
cerca de 40% do destinado para a Saúde, de R$ 71 bilhões. Nas manifestações,
cartazes perguntavam: “Tem dinheiro para a Copa mas não tem para a educação?”.
Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e
Regional (Ippur/UFRJ) e membro do Comitê Popular Copa e Olimpíadas do Rio de
Janeiro, explica: “Os gastos suntuosos feitos com equipamentos absolutamente
inúteis, quando a nossa educação é uma das piores da América Latina e nossa
universidade recebe menos jovens do que a Bolívia, são um tapa na cara do povo.
E tapa na cara provoca insurreição”.
O governo federal argumenta que os recursos públicos
custearão obras que seriam feitas de qualquer maneira, e ficarão como legados
para a população. E tem usado o estudo ‘Brasil sustentável: impactos
socioeconômicos da Copa do Mundo 2014’, da consultora Ernst&Young em
parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), para embasar seu argumento. “O
impacto direto da Copa do Mundo no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é
estimado em R$ 64,5 bilhões para o período 2010-2014”, diz a publicação, que
aponta que o evento “deverá injetar, adicionalmente, R$ 112,79 bilhões na
economia brasileira, com a produção em cadeia de efeitos indiretos e
induzidos”. O estudo aponta ainda que a Copa deve gerar 3,63 milhões de vagas
temporárias de emprego, com duração de um ano, e R$ 63,48 bilhões de renda para
a população “o que vai impactar, inevitavelmente, o mercado de consumo
interno”.
Mas a experiência sul-africana na organização da Copa do
Mundo de 2010 coloca em dúvida esses argumentos, como aponta o sindicalista
sul-africano Eddie Cottle, que acompanhou a preparação de seu país para sediar
a Copa do Mundo de 2010 e este ano lançou um livro sobre a experiência,
intitulado South Africa’s World Cup: A Legacy For Whom? (em português, Copa do
Mundo da África do Sul: legado para quem?). Em uma avaliação preliminar dos
efeitos da Copa na economia de seu país, publicado em setembro de 2010, Cottle
aponta que as estimativas iniciais diziam que os custos envolvidos na
preparação para a Copa seriam pequenos e os benefícios diretos significativos.
“O resultado na verdade foi o oposto”, critica, dizendo que, enquanto o total de
despesas do governo sul-africano com a Copa girou em torno do equivalente a R$
9,5 bilhões pela cotação da época, os impostos gerados com o evento somaram R$
4,6 bilhões, um prejuízo de R$ 4,9 bilhões para o governo sul-africano. Cottle
aponta que os prometidos efeitos em cadeia na economia do país foram
inflacionados para legitimar a “espoliação e os lucros da Fifa, seus parceiros
comerciais e monopólios capitalistas locais”. Enquanto isso, a Fifa comemorava
os lucros obtidos com o evento. Jerome Valcke, secretário geral da entidade,
afirmou, à época, que a Copa da África do Sul foi um sucesso comercial,
rendendo à Fifa 50% a mais do que a edição anterior do evento, realizada na
Alemanha em 2006.
Adriana Penna, professora da Universidade Federal Fluminense
(UFF), aponta ainda outros problemas enfrentados pelos sul-africanos após a
Copa de 2010. “O desemprego aumentou em quase 5% depois da Copa. De fato, as
pessoas têm empregos durante a construção dessas estruturas, mas são precários,
com data para acabar”, diz. Além disso, segundo ela, o país discute atualmente
a demolição de alguns dos estádios construídos para a Copa. “Sobretudo na
cidade do Cabo já está em conversação um plano para que o estádio seja
demolido, e a alegação é de que o custo para o Estado será muito menor
demolindo do que mantendo o estádio”, conta. Segundo Adriana, o filósofo
húngaro István Mészaros formulou o conceito de “produção destrutiva” para
explicar essa dinâmica. “Demolir aquilo que está pronto é uma maneira de fazer
essa capital entrar em circulação novamente. O capital precisa desse circuito
constante para se valorizar: desmonta aqui e vai para outro país. São sempre as
mesmas megacorporações que estão envolvidas, mudando de território em busca de
capitais”, analisa. No artigo ‘Guerra ou Paz: o esporte como produção
destrutiva’, ela cita os estádios construídos para a Copa em Recife, Natal e
Cuiabá como exemplos de aparelhos com data de validade. Adriana questiona a
opção pela construção do estádio Cidade da Copa, em São Lourenço da Mata, a 40
quilômetros de Recife. “Este parece ser o caso mais evidente no Brasil de
construção com data para destruição. Isto porque Recife possui três grandes
clubes (Sport, Náutico e Santa Cruz), todos com estádio de porte médio. Por que
o poder público, junto com a iniciativa privada, constrói um estádio fora da
cidade?”, indaga.
A Poli solicitou uma entrevista com Luis Fernandes,
secretário-executivo do Ministério dos Esportes para falar sobre o assunto, mas
foi informada de que não seria possível realizar a entrevista por falta de
tempo na agenda do secretário.
Quanto custa?
As estimativas oficiais de gastos com a Copa são contestadas
pelos movimentos sociais que estão acompanhando o processo e também por vozes
do Legislativo, como é o caso do ex-jogador de futebol e atual deputado federal
Romário, que chegou a afirmar que a Copa custaria mais do que o triplo do que
dizem os dados oficiais: R$ 100 bilhões. “Qualquer orçamento de obra que se
inicie hoje no país triplica de valor até o final da construção”, aposta.
Romário foi um dos 186 deputados e 28 senadores a assinar um requerimento
protocolado pelo deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF) para instalação de uma
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso para investigar
possíveis irregularidades no uso de recursos públicos nas obras da Copa do
Mundo, em julho. No entanto, o pedido foi arquivado no final de agosto, depois
que quatro senadores retiraram suas assinaturas, fazendo com que o requerimento
não atingisse o mínimo de 27 senadores. “Bem conduzida, ela poderia ter trazido
à tona escandalosos casos de desvio de dinheiro público, favorecimento de
empreiteiras e superfaturamento de preços”, acusa Romário.
Carlos Vainer também defende que as estimativas oficiais não
apresentam a conta toda. “Tony Blair, que era o Primeiro Ministro quando foram
organizados os Jogos Olímpicos de Londres, foi contratado pelo governo do Rio
para ser consultor e declarou que ninguém sabe quanto um megaevento desse custa
e que é normal que custe mais do que se imagina”, alerta, e exemplifica: “Os
Jogos Pan-americanos de 2007 iriam custar R$ 400 milhões e quando terminou
tinham custado R$ 4,5 bilhões”. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU),
responsável pela fiscalização dos gastos públicos, chegou a afirmar em um
relatório do ano passado que esse valor só será conhecido após o evento.
Ministério Público
Federal questiona isenções
Essa questão veio à baila novamente em agosto deste ano,
depois que Roberto Gurgel, em seu último ato como procurador-geral da
República, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo
Tribunal Federal (STF) questionando as isenções fiscais concedidas à Fifa pela
lei federal 12.350/2010, seus parceiros comerciais domiciliados no exterior,
prestadoras de serviços nacionais e estrangeiras, emissora contratada pela Fifa
para a transmissão das partidas, confederações Fifa (como por exemplo, a
Confederación Sudamericana de Fútbol, a Conmebol) e associações nacionais de
futebol. A lei estipula que, nas transações comerciais relativas à organização
da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, essas empresas e entidades estão
isentas de tributos como, por exemplo, a Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (Cofins) e PIS/Pasep (ambas contribuições que financiam
políticas sociais), além do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI),
Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (IRRF), entre outros. “Com base nessa
lei, a possibilidade de arrecadação de tributos referentes à movimentação
econômica produzida no país graças à preparação e organização da Copa das
Confederações Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, se torna praticamente
nula”, afirma o relatório do PACS.
Essas isenções foram estimadas pelo TCU em mais de R$ 1
bilhão. Para Roberto Gurgel, elas não têm respaldo legal. “A isenção daqueles
que podem pagar somente se dá ante interesses constitucionais relevantes”,
aponta no texto da Ação, complementando: “No caso, não é possível vislumbrar
nenhuma razão que justifique o tratamento diferenciado da Fifa e de seus
relacionados. A única alegação possível, de que a medida tem um interesse
logístico na facilitação da organização da Copa do Mundo, não é motivo
constitucionalmente relevante para legitimar a isenção concedida”. Mais
adiante, o ex-procurador-geral da República aponta ainda que a concessão das
isenções fiscais foram “mero ato de liberalidade” do governo para conceder
“privilégios indevidos” a entidades que, por sua vez, não oferecem nenhuma
contrapartida “em favor do interesse público”. Por tudo isso, Gurgel pediu a
suspensão de seis artigos da lei 12.350, concluindo que as violações à
Constituição que ela comete são “de natureza grave”, com potencial para trazer
consequências “nefastas” ao patrimônio público. Até o fechamento desta edição,
ADI aguardava julgamento no STF.
Jogo de interesses
Carlos Vainer aponta que os megaeventos como a Copa do Mundo
converteram-se em uma grande indústria global capitaneada pela Fifa. “A FIFA é
uma plataforma de articulação de grandes cartéis internacionais, que envolvem a
indústria de implementos esportivos, a de telecomunicações e um conjunto de
empresas de engenharia, consultoria, arquitetura e segurança e também um
conjunto de empresas que se associam à marca Copa do Mundo”, diz ele. No
Brasil, onde os preparativos para a Copa injetaram bilhões de reais na
construção de estádios e obras de infraestrutura, os interessados mais óbvios
na realização do evento são as empreiteiras. Por aqui, como afirma a professora
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) Nelma Gusmão, em sua tese
de doutorado, defendida no Ippur/UFRJ, “a presença recorrente de algumas
construtoras, articuladas em diferentes combinações de consórcios, em várias
das principais obras relacionadas à produção dos megaeventos esportivos tem
sido evidente”. Segundo ela, no Brasil, “a influência das grandes empreiteiras
na definição de políticas públicas é componente estrutural na formação
histórica do setor”.
Para João Roberto Lopes Pinto, coordenador do Instituto Mais
Democracia e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio), a chave para essa influência está nas doações dessas empresas para
campanhas de políticos em época de eleição. Ele cita o estudo The Spoils of
Victory: Campaign Donations and Government Contracts in Brazil (em português,
‘Os espólios da vitória: doações de campanha e contratos de governo no Brasil),
realizado por pesquisadores das universidades de Boston, Berkeley e MIT, nos
EUA. Publicado em junho deste ano, o artigo aponta que, para cada real doado
para campanhas de candidatos à Câmara dos Deputados em 2006, as empreiteiras
receberam R$ 8,5 na forma de contratos de obras públicas. Já um levantamento do
Instituto Mais Democracia apontou que cinco empreiteiras estão no topo do
ranking dos maiores doadores de campanha entre 2002 e 2013: a Camargo Correa,
Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS e JBS. A Camargo Correa, que no período
doou R$ 143 milhões, recebeu em troca R$ 920 milhões em financiamentos do BNDES
e mais de R$ 350 milhões em repasses diretos do governo federal; a OAS, que
doou R$ 12,7 milhões, recebeu R$ 1,05 bilhão em financiamentos do BNDES e mais
de R$ 159 milhões em repasses diretos do governo federal; já a Queiroz Galvão
doou R$ 101 milhões e recebeu R$ 1,18 bilhão em repasses diretos do governo
federal. Essas empresas estão à frente de grande parte das obras de estádios
para a Copa do Mundo de 2014: a Andrade Gutierrez está presente nas obras de
quatro dos 12 estádios, no Rio de Janeiro, Manaus, Brasília e Porto Alegre; e a
OAS participa de duas obras, em Salvador e Natal. A Odebrecht é outra que
participa das obras em quatro estádios, ainda que não figure no levantamento
elaborado pelo Mais Democracia: a empresa atua na construção dos estádios do
Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador. “Essas empresas também se
consorciam, como uma forma de ampliar sua capacidade de investimentos. O
gigantismo desse processo faz com que elas tenham um poder de barganha
enorme.”, afirma João Roberto. Ele destaca ainda que o fato de que o dinheiro
do BNDES investido na construção dos estádios seja financiamento, e não doação,
não quer dizer que as empresas envolvidas não estejam sendo beneficiadas. “É um
financiamento subsidiado, porque o BNDES trabalha com uma taxa de juros de
longo prazo e tem um percentual de juros abaixo do mercado e um período longo
de carência para começar a pagar. Além disso, é dinheiro público oferecido com
condicionalidades muito frágeis. Do ponto de vista social e ambiental, não há
ação mais efetiva em termos de contrapartidas que os empreendimentos devem
observar. Não é a toa que o Eike [Batista] falou que o BNDES era uma mãe”, diz.
As facilidades oferecidas pelo Estado não terminam nas
condições de financiamento. As empreiteiras também foram beneficiadas pela
flexibilização da Lei de Licitações para as obras da Copa por meio do Regime
Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), instituído pela lei 12.462/2010.
“Na prática”, afirma o documento ‘Na sombra dos megaeventos’, “essa inovação
legal permite ao governo não divulgar os valores das licitações, além de
liberar obras sem projetos-básicos”, tornando mais difícil o controle dos
gastos. Além disso, por meio do Regime Especial de Tributação para Construção,
Ampliação, Reforma ou Modernização de Estádios de Futebol (Recopa), instituído
pela lei 12.350/2010, as empreiteiras ficaram isentas de pagar impostos como
PIS/Pasep, Cofins e IPI, entre outros, incidentes sobre materiais de construção
e equipamentos adquiridos para as obras dos estádios que receberão jogos da
Copa. “O problema é que a maior parte dos contratos para destruição e
construção para a Copa são de antes de 2010, e a Lei de Licitações diz
claramente que qualquer mudança de imposto para mais ou para menos, após a
assinatura do contrato, tem que ser repassada integralmente para o contrato. E
o que vimos de lá para cá foi o contrário, só aumentos”, critica Francisco
Carneiro, do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas de Brasília.
As falas de João Roberto e de Francisco Carneiro vêm ao
encontro da análise de Carlos Vainer, para quem os megaeventos têm servido de
pretexto para a aceleração de um processo em marcha de reordenamento das
cidades de modo a torná-las objeto de valorização do capital. “Por isso falo em
cidade de exceção, que é aquela onde as regras desapareceram e onde tudo é
negociado caso a caso. A cidade de exceção tem um aspecto que chamo de
democracia direta do capital, porque é tudo negociado entre setores
capitalistas privados e o Estado, e não mais nas câmaras municipais. A cidade
de exceção e a democracia direta do capital constroem um novo regime urbano”,
avalia.
Maracanã: uma
pechincha
O caso do Maracanã, que vai receber a final da Copa do Mundo
em julho de 2014, é emblemático: o orçamento final da reforma do estádio
superou em quase 70% a previsão inicial, passando de R$ 705 milhões em setembro
de 2010 para R$ 1,2 bilhão em julho deste ano. As obras foram tocadas por um
consórcio entre a Odebrecht, Andrade Gutierrez e Delta, que abandonou as obras
em meio a um escândalo de corrupção. Somados os gastos com a reforma do estádio
e do ginásio do Maracanãzinho para os Jogos Panamericanos de 2007, foram gastos
R$ 1,5 bilhão em recursos públicos no Maracanã. Ainda assim, o governo estadual
optou por entregar a administração do Complexo do Maracanã (que além do estádio
e do Maracanãzinho, conta ainda com o Parque Aquático Julio Delamare e do
Estádio de Atletismo Célio de Barros) para a iniciativa privada, gerando
questionamentos do Ministério Público do Rio de Janeiro, que tentou, sem
sucesso, impedir a licitação para a concessão do estádio, vencida pelo
Consórcio Maracanã S.A, integrado pela Odebrecht, IMX, de Eike Batista, e AEG,
que vai administrar o complexo pelos próximos 35 anos. Na ação civil pública, o
MP estadual questionou os valores envolvidos na concessão, alegando que ela
seria lesiva para os cofres públicos. A ação tomou como base os números de um
estudo de viabilidade realizado pela IMX, que serviu de base para a elaboração
do contrato de concessão, que previa que o vencedor da licitação deveria pagar
33 parcelas de R$ 4,5 milhões ao governo do estado pelo direito de explorar
comercialmente o Maracanã. Segundo a ação, além de o valor total de pouco menos
de R$ 150 milhões a ser pago pelo concessionário estar bem abaixo do total
investido pelo governo estadual na reforma do estádio desde 2007, ele
representava uma parcela ínfima das receitas que, pelo estudo de viabilidade, o
concessionário deveria auferir com a exploração do complexo: R$ 157,25 milhões
ao ano, totalizando um lucro líquido de R$ 1,43 bilhão até o final da
concessão. A proposta vencedora do Consórcio Maracanã acabou ficando acima da
previsão inicial: 33 parcelas de R$ 5,5 milhões ao ano, totalizando R$ 181
milhões, valor ainda bem abaixo dos R$ 1,5 bilhão gastos com as reformas.
A ação também questionou o modelo de concessão de Parceria
Público-Privada (PPP), que prevê o pagamento de uma contraprestação pública
pelo governo do estado de modo a viabilizar que as intervenções que haviam sido
previstas no entorno do Maracanã (a demolição do Julio Delamare, do Célio de
Barros, da Escola Friedenreich e do Presídio Evaristo de Moraes.) fossem
custeadas com recursos privados. Ou seja, além de pagar pelas obras de reforma
do estádio, o governo do estado precisa pagar um valor anual ao concessionário
para garantir a “viabilidade econômica” do empreendimento. O estudo de
viabilidade da IMX calculou em R$ 12,15 milhões essa contraprestação, valor bem
acima dos R$ 5,5 milhões a serem pagos pelo concessionário. Segundo o MP, a
contraprestação pública é desnecessária, uma vez que “as receitas decorrentes
da exploração do Maracanã e do Maracanãzinho gerariam rentabilidade mais do que
suficiente para tornar o projeto financeiramente autossustentável”. A adoção de
um regime de concessão simples, sem a previsão da contrapartida pública, afirma
a ação do MP-RJ, poderia aumentar o valor a ser pago pelo concessionário ao
estado para até R$ 30 milhões, sem prejudicar sua rentabilidade.
A reportagem da Poli enviou à assessoria de imprensa do
governo do estado do Rio perguntas questionando os valores envolvidos e a
escolha do modelo de PPP para a concessão do Maracanã. A assessoria respondeu
que, como o Maracanã está, neste momento concessionado, as perguntas estariam
“defasadas no tempo”. Isso, no entanto, não confere: embora a liminar que pedia
a suspensão do processo licitatório de concessão do estádio tenha sido
derrubada na Justiça, a ação civil pública ainda aguarda julgamento. A Poli
também tentou ouvir o Consórcio Maracanã sobre o assunto, mas não obteve
resposta até o fechamento desta edição.
Repressão ao comércio
informal
O artigo 23 da Lei Geral da Copa – objeto de uma ação do MPF
- não foi o único a gerar controvérsia. Em seu artigo 11, a lei cria áreas de
restrição comercial ao redor dos estádios onde serão disputados os jogos da
Copa, assegurando à Fifa e às pessoas por ela indicadas a exclusividade sobre o
comércio nos locais durante os jogos. Ainda que garanta a permissão dos
estabelecimentos comerciais regulares de continuarem funcionando, desde que não
façam associação com a Copa, a lei coloca obstáculos para vendedores ambulantes
que, tradicionalmente, trabalham no entorno de estádios de futebol no Brasil em
dias de jogos. Na publicação ‘Copa do Mundo para Todos: o retrato dos
vendedores ambulantes nas cidades-sede da Copa do Mundo 2014’, a StreetNet
Internacional, organização que reúne associações de vendedores informais de
diversos países, alerta: “A proximidade dos projetos de reordenamento urbano
com a preparação das cidades para o megaevento impacta diretamente a fonte de
renda dos vendedores informais. Muitos dos que vendiam nas proximidades dos
estádios tiveram que mudar de local de venda, ao redor ou a caminho do estádio”.
Francisco Carneiro, do Comitê Popular da Copa de Brasília,
afirma que presenciou cenas de ambulantes sendo expulsos dos arredores do
estádio de Brasília. “Nós vimos ambulantes tendo seus produtos confiscados.
Antigamente, eles vendiam uma garrafa de água mineral a R$ 4 próximo ao estádio
e hoje você só acha dentro do estádio, mas custa R$ 8”, revela. A repressão aos
ambulantes está ocorrendo segundo ele em várias cidades. “Uma briga grande que
tivemos na Bahia foi para garantir que as vendedoras de acarajé pudessem vender
durante a Copa e conseguimos. Em Belo Horizonte não conseguimos, todos os
ambulantes que vendiam o famoso ‘tropeirão’ no Mineirão não podem mais
trabalhar ali”, critica Francisco. Por isso, a publicação da StreetNet conclui:
“Os principais impactos negativos relacionados à Copa estão ligados à omissão
do Estado em relação ao direito ao trabalho desses comerciantes e à total
indisposição em incluir no evento vendedores informais para que possam tomar
proveito da oportunidade de negócios que a Copa representa”.
“Isso representa a falência para muitos ambulantes, pessoas
com pouca formação que precisam trabalhar para viver e não tem opção, e que há
décadas trabalhavam nas ruas”, aponta Ângela Rissi, presidente da Associação
Expositores da Feirarte e Outros (AEFO), entidade que reúne vendedores
ambulantes no Rio de Janeiro. Sob a justificativa da necessidade de
“revitalizar” a cidade para sediar a Copa do Mundo e regularizar o trabalho dos
ambulantes, diz ela, o governo municipal realizou em 2009 um cadastramento de
comerciantes informais. “Só que o cadastramento foi feito para retirar as
pessoas das ruas. O Rio tinha em torno de 40 mil ambulantes, mas só 7 mil foram
licenciados” diz Angela. Segundo ela, isso se deu por causa de um sistema de
pontuação criado para o cadastramento pelo qual cada região da cidade exigia um
número de pontos diferente no processo de seleção para que o ambulante pudesse
se instalar regularmente. O processo, por sua vez, deveria levar em conta
critérios como o tempo em que o candidato estava desempregado, número de
dependentes, etc. “Tinha que tirar acima de 100 para receber a licença mas
deram 80 para todo mundo e nunca nos explicaram por que”, afirma Angela, que
hoje se encontra sem trabalho e com dificuldades financeiras. “Formei minha
filha trabalhando na rua. Hoje não consigo trabalhar e dependo dos meus irmãos
e do meu pai”, revela.
Remoções
A preparação para a Copa do Mundo também tem significado
remoções de populações que moram nas áreas destinadas a receber obras para o
evento. Segundo estimativas da Articulação Nacional dos Comitês Populares da
Copa e Olimpíadas, cerca de 250 mil pessoas se encontram ameaçadas de remoção
por conta da Copa. Samuel Queiroz, morador da comunidade Lauro Vieira Chaves,
em Fortaleza, e membro do Comitê Popular da Copa da capital cearense, sentiu
isso na pele. Sua comunidade, que fica no bairro do Montese, é uma das 22
localizadas no caminho do futuro Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), ligando o
estádio do Castelão ao aeroporto e à orla de Fortaleza. Segundo ele, a proposta
inicial do governo do estado para reassentar as 200 famílias que teriam que
sair do local foi bastante criticada. “Como muitas pessoas não tinham o direito
de posse, apesar de algumas viverem ali há mais de 60 anos, o governo queria
pagar de R$ 18 mil a R$ 22 mil pela edificação e pagar um aluguel social de R$
200. Com esse valor, você não aluga nem barraco pegando fogo em Fortaleza. Não
aceitamos e fomos à luta”, diz ele. Segundo Samuel, outra proposta foi a construção
de um conjunto habitacional no bairro Prefeito José Walter, localizado a 12
quilômetros da comunidade Lauro Vieira Chaves, o que segundo ele contraria a
Lei Orgânica do Município. “A lei diz que se uma comunidade tiver que ser
removida, ela tem que ser realocada a no máximo dois quilômetros de distância
do seu local original
Segundo Samuel, à medida que a comunidade, em conjunto com a
Defensoria Pública, passou a se informar melhor sobre o problema, começaram a
aparecer arbitrariedades. “Em alguns trechos em que o traçado do VLT deveria
passar entre duas concessionárias de veículos, é feito um elevado para passar
por cima delas. Para favorecer alguns imóveis que são comerciais, de grande
porte, é feito elevado, passa e volta para o solo de novo. Por que não no nosso
caso?”, questiona.
E os questionamentos deram resultado, pelo menos para os
moradores da comunidade Lauro Vieira Chaves. Segundo Samuel, em vez de 203
famílias, como queria a proposta inicial, serão removidas 53. “Junto com o
trabalho de uma aluna da UFC [Universidade Federal do Ceará], nós descobrimos
que havia um terreno público a 400 metros da comunidade. Levamos a proposta
desse terreno para o governo do estado como alternativa para a realocação e
fomos atendidos. O governo vai construir unidades habitacionais e as pessoas
que terão que ser realocadas vão para esse local”, aponta. O valor das
indenizações também aumentou, chegando a R$ 40 mil. “Eu falei para as pessoas
da comunidade: isso não foi vontade do governo, foi nossa luta e nosso
empenho”, ressalta.
A experiência da ex-vendedora ambulante Angela Rissi e de
Samuel Queiroz reforça um outro aspecto da cidade de exceção teorizada por
Carlos Vainer. “Os megaeventos aparecem como pretexto para a realização de uma
série de anseios econômicos, políticos e ideológicos de uma direita
conservadora que pretende submeter a sociedade à lógica do grande capital. Para
isso é necessário limpar a cidade, retirando os pobres das áreas destinadas a
receber investimentos públicos mais expressivos para que os ganhos fundiários
resultantes desses investimentos com a valorização imobiliária sejam destinados
a quem interessa”, define. Para Vainer, as obras de mobilidade urbana incluídas
na Matriz de Responsabilidades da Copa refletem isso. “Na maioria das cidades,
os investimentos de mobilidade não têm atendido as demandas das camadas
populares com transporte público de massa”, opina, exemplificando em seguida:
“No Rio de Janeiro, onde 80% da demanda de transporte público de massa está nos
subúrbios, na Baixada Fluminense e na grande Niterói, os investimentos estão
sendo feitos para áreas em grande parte vazias da Barra da Tijuca e Recreio,
onde temos menos de 5% da população da região metropolitana do RJ. Esses
investimentos, na verdade, estão é valorizando os grandes latifúndios vazios da
Barra da Tijuca e Recreio”, avalia o pesquisador.
Fonte: (Viviane Tavares) Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio/Fiocruz.
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