Em fevereiro do ano passado, o Senado e a Câmara incumbiram
uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) de descobrir por que os
espancamentos e os assassinatos de mulheres no Brasil ainda têm proporções
epidêmicas, mesmo existindo uma lei específica para preveni-los e reprimi-los —
a Lei Maria da Penha, de 2006.
A senadora Ana Rita conversa com mulheres em delegacia de
Campo Grande: CPI percorreu o país e verificou que a Lei Maria da Penha não é
cumprida. Foto: Gabinete da Senadora Ana Rita
Após 16 meses debruçados sobre o tema, os senadores e
deputados da CPI da Violência contra a Mulher chegaram a uma conclusão
aterrorizante: se as mulheres continuam sendo atacadas, o grande culpado é o
poder público, que não segue à risca as determinações da Lei Maria da Penha.
A lei prevê defensores públicos à disposição das mulheres
mais pobres, promotorias de justiça atuantes, hospitais preparados para
socorrer as agredidas e delegacias da mulher e juizados de violência doméstica
capazes de entender a dor das vítimas e agir com rigor contra os agressores. Na
prática, tais serviços funcionam muito mal ou simplesmente não existem.
Plantão policial
São poucas as delegacias da mulher (veja quadro ao lado). Em
Alagoas, o segundo estado onde mais se assassinam mulheres no Brasil, existem apenas
três. No país, as delegacias especializadas nem sempre funcionam a contento e
muitas estão sucateadas. A mulher violentada não consegue apresentar queixa de
madrugada nem no fim de semana, porque nesses períodos, na maior parte das
delegacias especializadas, não há plantão policial.
Na delegacia da mulher de Manaus, a CPI contou 4.500
inquéritos engavetados. Faltavam agentes suficientes para tocá-los. Em razão do
acúmulo, muitos crimes acabaram caducando sem nem sequer chegar à Justiça. Em
Boa Vista, a delegacia da mulher não tem telefone nem internet, e a CPI
encontrou viaturas paradas por falta de gasolina. Uma das raras delegacias
exemplares é a de Brasília.
No Brasil, boa parte dos casos de violência doméstica
precisa ser denunciada em distritos policiais comuns, onde os oficiais não têm
sensibilidade nem treinamento para acolher mulheres violentadas. Muitas vezes,
o depoimento é marcado para vários dias mais tarde — o que é inaceitável, já
que elas podem voltar a ser atacadas pelos companheiros ou ex-companheiros
nesse ínterim.
A mulher agredida também não encontra amparo adequado na
Justiça. O número de juizados de violência doméstica é ainda mais baixo que o
de delegacias. A CPI constatou que cada estado tem, em média, somente três
juizados. E estão concentrados nas capitais. O interior está praticamente
desassistido.
Os juizados de violência doméstica contam com pouquíssimos
juízes e funcionários. Isso tem duas consequências desastrosas. A primeira é
que os processos se acumulam e as sentenças são proferidas tarde demais. Em
Minas Gerais, os três juizados especializados contabilizam, juntos, 58 mil
processos à espera de julgamento.
Pela lei, os juizados de violência doméstica precisam
resolver tanto as questões criminais (prisão do agressor, por exemplo) quanto
as cíveis (divórcio, guarda dos filhos, pensão alimentícia), para que a mulher
não precise percorrer duas instâncias judiciais diferentes quando a origem dos
problemas é uma só. A segunda consequência da falta de juízes e funcionários é
que muitos juizados têm braços para tratar apenas do aspecto criminal — ignoram
as demandas cíveis.
“Regras diabólicas”
Ante a falta de juizados de violência doméstica, muitos
casos de agressão doméstica são julgados pelas varas criminais comuns. Elas,
porém, nem sempre estão preparadas para as mulheres violentadas. Há juízes que
interpretam equivocadamente a Lei Maria da Penha ou a ignoram.
Em 2007, num caso que ganhou repercussão nacional, o juiz
Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), escreveu numa sentença
que a Lei Maria da Penha era um “conjunto de regras diabólicas”, que “a
desgraça humana começou por causa da mulher” e que “o mundo é e deve continuar
sendo masculino ou de prevalência masculina”.
Não é raro que juízes ainda hoje tentem fazer a
reconciliação entre agressor e agredida ou troquem a prisão por pagamento de
multa, doação de cestas básicas ou prestação de serviços comunitários. Pela Lei
Maria da Penha, nada disso é permitido.
A CPI constatou que também são escassas as promotorias e as
defensorias especializadas na violência doméstica. Nos institutos médico-legais
(IMLs), onde as mulheres agredidas passam por exame de corpo de delito, a
situação é precária. Em Maceió, os parlamentares da CPI mal conseguiram
inquirir os responsáveis pelo IML por causa do cheiro nauseante — cadáveres em
decomposição eram mantidos fora das câmaras de refrigeração.
— Algumas mulheres preferem ficar caladas e não denunciar
seus agressores porque não confiam na rede de atendimento, acreditam que não
serão protegidas. Em muitos casos, infelizmente, elas têm razão — afirma a
senadora Ana Rita (PT-ES), a relatora da CPI.
Fonte: Jornal do Senado
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