A tolerância pode ser
uma negação cínica. A intolerância seria muito bem vinda se o que se tolera (o
mesmo que se nega) fosse algo vencível. Mas, enquanto Feliciano não recusa sair
de seu posto e Silas Malafaia investe em suas hordas de higienização da
sexualidade brasileira, a tolerância cínica parece o único caminho que a crítica
a esses pastores pode seguir. Essa tolerância, se é negação limitada, guarda o
anseio a uma negação radical, ou seja, anseia em algum dado momento efetivar-se
sem limites e tornar-se intolerância declarada.
Ana Monique Moura*
Martinho Lutero (1483-1546), o fundador do Protestantismo,
se colocou contra a Igreja Católica por não aceitar nela, dentre outras
posturas, a intromissão da Igreja no comportamento e na ação de seus
seguidores. Para Lutero, o que teria valor não era a ação, mas a fé. Esta tese
estava inspirada na frase de Paulo que declarava: “O justo viverá pela fé” (Rm
1, 17). Neste aspecto, a fé bastaria para que o homem pudesse ficar em paz com
Deus. Mas o que se vê é que a ordem protestante tomou um outro percurso.
O Protestantismo influenciou o nascimento de outras igrejas
e do que chamamos hoje por evangelismo. Agora, a suposta Igreja Protestante e
assim também seus diversos segmentos se inserem de modo geralmente incisivo na
ação do fiel. Particularmente, o que temos mais notícia, é que a igreja de
Silas Malafaia e os discursos do pastor Marco Feliciano querem realizar um
movimento de cura dos desejos homoafetivos.
Este grandioso projeto de intromissão na ação do fiel, já
que não condiz com a lição originariamente protestante, só pode ser denominada,
isto parece básico, de pós-protestante. O irônico é que, a Igreja Católica, que
foi julgada por Lutero por provocar intromissões na ação de seus fiéis, parece
estar mais recuada diante de uma decisão sobre a ação do homem,
especificamente, sobre a vida sexual do indivíduo, o que, não sejamos ingênuos,
não significa completa isenção no assunto.
Mas, voltemos ao problema dos pastores.
Em, não por motivos vãos, afamada entrevista à Marília
Gabriela, Silas Malafaia chegou a mencionar que as pesquisas da genética sobre
os homossexuais “não deram em nada” e que a psicanálise de Freud defendia a
“cura dos gays”. Mas, isso merece algumas réplicas minimamente básicas: 1. A
genética tem comprovado, a contragosto de muitos, que é inevitável não concluir
que há condicionamentos nos genes para a homoafetividade, aliás, para a
afetividade em suas várias expressões. 2. A psicanálise de Freud admite a
bissexualidade nos primórdios ou origens naturais de nossa sexualidade. Ou
seja, se trata aqui de uma sexualidade híbrida, mista. Para Freud, nascemos com
uma sexualidade fluida e só posteriormente ela é capaz de tomar um
direcionamento mais isolado, o que não implica dizer que ela se desenvolve
apenas posteriormente, mas desde a tenra infância, com os pais e suas
simbologias possíveis.
Freud foi capaz de adentrar no âmago de algumas questões
mais complicadas da sexualidade, sem deixar, contudo, respostas concretas, não
só pela dificuldade de concluir certas abordagens, mas, confessemos, por alguns
erros - principalmente em relação à abordagem machista que teve sobre a mulher,
o que não convém falar aqui ainda, e talvez eu o faça em outro texto. Ademais,
embora seja plenamente possível falar em curas de problemas individuais na
psicanálise, não é por acaso, e talvez isso seja um privilégio, que a
psicanálise se dá muito mais como uma pesquisa do que como uma clínica, ao
contrário da psicologia influenciada por Wundt e da psiquiatria medicinal
icônica, cujo método de “cura clínica” é tanto mais defendido. E, apesar disso,
tal método jamais se efetivaria em relação à cura ou higienização moralista de
uma sexualidade e, tampouco, graças à mínima sensatez resultante de suas
investigações e casos, se esforçaria atualmente para isso.
A preocupação de Freud estava em descobrir a origem do
desejo e de como se vivencia ele e não em curar possíveis “desejos
pecaminosos”. Não há religião e respectivamente um conceito de pecado a ser
prezado na psicanálise. A psicanálise nos chega para tentar travar uma pesquisa
sobre neuroses e desejos. Somos feitos de neurose que, para utilizar uma
nomenclatura lacaniana, são mitos individuais. A intenção não é estritamente
curá-los no sentido medicinal do termo, mas contribuir para um esclarecimento
deste problema tão humano. Aqui o problema não pode ser visto como doença
estritamente, já que ela não é vislumbrada como uma inimiga do paciente, como
bem lembrou a escritora e amiga íntima de Freud, Lou Salomé, e sim como um
trampolim para o autoconhecimento. As pessoas procuram a psicanálise original
para entender e resolver a descoberta da origem dos seus desejos e de suas
repressões e não para curar ou banir um desejo pecaminoso e execrável por um
Deus.
A autocontradição
O que parece minimamente contraditório é que o pastor busca
pensar as condições existenciais mediante condições biológicas e ao mesmo tempo
fala em desejos que ultrapassam as condições biológicas porque, diz ele, partem
de uma opção isoladamente comportamental. Esta separação é um tanto problemática,
uma vez que o biológico se exprime no comportamento e faz parte de uma cultura,
embora primária. No caso da abordagem do condicionamento restritamente
biológico, não existiria nem homem, nem mulher, mas macho e fêmea. Então o
pastor não poderia falar em homens, nem em mulheres, como fala, já que ele
pensa que a própria relação entre eles deve ocorrer mediante tão só as
necessidades de reprodução e os limites biológicos mais primários.
Silas Malafaia, por outro lado, talvez até sem perceber,
concebe as condições homoafetivas como algo praticamente possível para todos. E
com isso, ele inclui a possibilidade de todos estarem sob a possibilidade do
desejo homoafetivo. Neste caso, sua batalha é tentar mostrar para nós
brasileiros que não devemos nos condicionar a possibilidade desse tipo de
desejo, para ele, imensamente perigoso.
Na medida em que Silas Malafaia afirma ser a homoafetividade
algo da ordem do comportamento, ele nos traz, interinamente, a ideia de que
todos podem desencadear a homoafetividade. E aqui reside uma contradição. Sua
tese culmina por ser tão mais favorecedora à homoafetividade como algo comum do
que o que afirmam os grupos de emancipação LGBTT. A genética, neste sentido,
perto do que traz Silas Malafaia, não é transgressora, mas aparentemente
reducionista. Ao negar os resultados da genética, Silas se encurrala em uma
delicadíssima e comprometedora tese que afirma não se tratar de genes
determinantes, mas de algo muito mais amplo ao qual, não apenas um grupo, mas,
todos, estão possivelmente submetidos.
Então, o problema aqui parece estar em como Silas Malafaia
se utiliza de um argumento que ele próprio talvez não tenha compreendido. Não
importa quais medidas teóricas ele tome, a razão do que ele tenta defender, não
tem, pelo menos assim parece, algum sentido harmonioso, não contraditório. A fé
chega aqui, por fim, como um adorno atrativo para cobrir esta confusão de
ideias.
Silas Malafaia, declaradamente, sabemos disso, procura na
religião a força para angariar seus adeptos ideológicos. Ele promulga o que
Kant, no século XVIII, na obra “Crítica da razão prática”, já anunciava,
criticamente, como “misticismo moral”. O que, não se poderia deixar de fazer
esta relação aqui, muito recorda a Alemanha Nazista em seu discurso de
dizimação dos homossexuais. Lembremos que Adolf Hitler (1889-1945) não estava
sozinho. Seu grande braço era Heinrich Himmler (1900-1945), uma pessoa de fé
religiosa estupenda que tentou construir a estética de toda a atratividade
convidativa do partido nazista. Tal qual Hitler, embora com menos seguidores,
Silas Malafaia sobe aos tribunais, palcos, púlpitos de nosso país para convocar
a nação a uma manifestação de repúdio à emancipação e liberdade dos que não são
heterossexuais. Ele pretende limpar a nação para conduzi-la a Deus. Essa é a
“vitória em Cristo” (por sinal, nome de sua Igreja): Uma higienização dos
desejos como pré-requisito de uma nação “limpa”. E, ademais, tal qual Himmler,
Silas Malafaia o faz mediante o levantar de templos religiosos, poetizações da
fé, livros evangelizadores, declarações supostamente proféticas e por meio da
inserção religiosa em debates políticos. Eu resumiria a ideia de Malafaia com a
seguinte frase: a homoafetividade é possível a todos, então, o respeito à
homoafetividade tornará, senão toda, grande parte dos brasileiros passível a
desejos homoafetivos. Isto soa não apenas conservador, mas também,
indiretamente transgressor e, diretamente, se amputamos a segunda parte desta
frase. Vê-se aqui uma contradição estupenda, porque estúpida, de Silas
Malafaia.
O apoio de Silas
Malafaia a Marco Feliciano
O novo presidente da Comissão de Direitos Humanos vem sendo
criticado por ter se manifestado contra homossexuais. Contudo, alguns, e aqui
se inclui Silas Malafaia, dizem que suas opiniões devem ser respeitadas, assim
como as outras críticas exigem que se respeitem as opiniões contrárias às
proferidas pelo pastor.
Silas Malafaia escreveu, em um artigo na Folha de S. Paulo,
do dia 05 de abril de 2013, que Marco Feliciano deveria ser respeitado por suas
ideias, pois, nas suas palavras, “nunca matou um gay”. Ora, a justificativa
parece tanto mais absurda que a proposição anterior, não? Como se o ato desse
dito não fosse, também, um tipo de ação violenta. Somado a isso, Marco
Feliciano, no caminho similar de Silas Malafaia, declarou que atenderia a um
homossexual “como atende a qualquer pessoa normal”, o que talvez muito exiba a
sua violência tristemente velada porque, ao se esconder, declara-se, e parece
tanto mais forte. Isso parece básico.
Trago, como contribuição para uma observação crítica a esse
fato, um pouco de uma obra atual, do filósofo esloveno Slavoj Žižek, intitulada
“Elogio da Intolerância”, na qual ele tenta dissecar o discurso da tolerância
na medida em que lhe toma como estratégia do pensamento pós-moderno capitalista
que aceita o discurso a favor do “outro”, da aceitação e respeito a esse
“outro”, mas este discurso existe exatamente para manter o próprio sistema que
o alimenta e, com isso, não infringir os meios detentores da moda fascista, da
publicidade veladamente racista, da homofobia declarada e subliminar, que
escorre, sem que muitos percebam, nas relações humanas e nas relações de
mercado - se é que se pode fazer hoje em dia essa separação - no universo
multiculturalista, que ao tolerar, em verdade, assume que nega.
Essa tolerância é recusada por Žižek na medida em que ele a
pensa como estratégia do espaço liberal fazer crescer, a partir do ideal de
multiculturalismo, os seus anseios de mercado nas diversas etnias, expressões
intelectuais e religiosas. A tolerância deve ser negada para se pensar aqui o
sentido de coexistência não violenta entre os seres humanos, em outros termos,
segundo o viés gratuito do humano pelo humano.
Marco Feliciano, e na esteira dele, Silas Malafaia, ao dizer
“atenderei a um homossexual como qualquer pessoa normal” funda esse discurso da
tolerância, que ao invés de afirmar o outro, nega-o, e comete aqui um ato
estrategicamente violento. Pergunto a vocês, como respeitar isso?
Mas, busquemos uma outra partida: E quando se trata do fato
de utilizarmos a tolerância a nosso favor, para pensar sobre as relações de
tolerância a partir de nós que estamos em frente ao púlpito desses homens? E é
preciso, portanto, que se relembre que a tolerância se revela como uma negação
quando se afirma enquanto tolerância. A afirmação da tolerância é negação. Aqui
é possível falar, então, em uma dialética da tolerância.
O respeito é intolerante àquilo que funda o desrespeito. A
tolerância é um ato de desrespeito que pode ser corrosivo. Aquilo que se
respeita é admirado, como já pontuou Kant. Aquilo que não se respeita é
tolerado, porque na tolerância, o que se tolera não é apreciado, mas suportado.
A intolerância é uma negação radical. A tolerância é uma negação limitada.
Portanto, se não há admiração e, com isso, a possibilidade de uma negação
radical aos atos de Silas Malafaia e de Marco Feliciano, então é plausível que
haja a tolerância, lembro, no significado que aqui fica exposto.
Silas Malafaia tenta nos ensinar como conseguir respeitar
Marco Feliciano, ele mesmo, arauto do desrespeito. Mas eles são passíveis de
tolerância, exatamente porque não podem ser respeitados e porque merecem uma
intolerância realizada. Uma tolerância, em seu ponto mais alto parece com
garras cortadas, cordas vocais trêmulas pela negação efetiva, o grito contra o
constante suportar que quer acabar. Uma tolerância concluída convoca a
intolerância.
A tolerância pode ser uma negação cínica. A intolerância
seria muito bem vinda se o que se tolera (o mesmo que se nega) fosse algo
vencível. Mas, enquanto Feliciano não recusa sair de seu posto e Silas Malafaia
investe em suas hordas de higienização da sexualidade brasileira, a tolerância
cínica parece o único caminho que a crítica a esses pastores pode seguir. Essa
tolerância, se é negação limitada, guarda o anseio a uma negação radical, ou
seja, anseia em algum dado momento efetivar-se sem limites e tornar-se
intolerância declarada.
Ademais, permitam-me outra breve digressão. Seria o conjunto
de direitos humanos uma forma planejada de tolerância? Há lógica em dizer sim.
Acrescento: Para além do tão já pensado fundamentalismo violento que, quando
reivindica os direitos, só exprime sua negação velada, o que são os direitos
humanos, senão um modo de pensar homem em contraposição às condições mais
gigantes e presentes, que não deixam de ser tanto mais humanas, porque tanto
mais históricas? A velha guerra entre razão e instinto, faculdade nobre e
faculdade inferior. Os direitos humanos vem nos dizer que temos direito a algo
para além de nossa natureza selvagem e raivosa, mas, quando realiza esse
percurso, torna tanto mais inalcançável uma existência mais digna com algo para
além dessa natureza primária. Na realidade, estamos lançados numa selva de
direitos que agora jogam entre si com múltiplas e meras razões de discurso, o
que significa nenhuma razão.
Talvez a própria ideia de direitos humanos já guarde aí sua
contradição e exiba sua falibilidade na existência de homens como Feliciano na
afirmação de postos com, assim dizem, alto compromisso com a sociedade. Os
direitos humanos não podem ser direitos universais e a-históricos, caídos do
céu e entregues por um anjo. Eles são condicionados e construídos com uma vista
lançada a um tipo de poder peculiar. Os direitos humanos sofrem, desde sua
origem à realização e corolários, um processo incisivamente politizador. Isso
já revela que os direitos humanos não são direitos humanos, mas direitos
políticos, o que significa, direitos particulares, ao invés de direitos
universais. E parece ser uma pena que a política aqui ganhe um sentido de
tamanho poder violento. A poder violento das decisões sobre um todo social
mancha aqui o puro significado da política, como já bem pensou a filósofa
Hannah Arendt, em sua obra “Sobre a violência” publicada em 1970. Mas, talvez
pareça mais sensato também pensar que, a política, exatamente por não ser
imaculada, já componha todas essas medidas arbitrárias, por ser, em seu núcleo,
algo perverso, como pensou o filósofo francês Voltaire, por outro lado,
defensor do conceito tradicional de tolerância, como significado da afirmação e
aceitação do outro, tese aqui negada. Se, originariamente, a política não é
como Voltaire afirma, mas como Hannah Arendt defende, Voltaire não deixa de
estar correto, na medida em que a política que ele pensa é a política latente,
mesmo que mentirosa. E talvez por isso ela seja tanto mais política. Aqui ambos
filósofos, finalmente, sub specie ironiae, ficam corretos.
É preciso saber, por outro lado, que há homens similares a
Feliciano, que trabalham numa certa cúpula, ao seu lado, e o favorece, mas não
estão sob os holofotes porque, talvez, não sejam pastores tão públicos e algo
parecido ou diferente. Então, o problema não é tão só com as ideias do sujeito
Feliciano. A crítica que, talvez, se faz a Feliciano, revela tanto mais uma
angústia velada da sociedade contemporânea com o conceito confuso da relação
livre entre cultivo institucionalizado de espiritualidade com o cultivo da
variadas possibilidades de identidade cultural. Isto marca uma expressão
marcante da crítica presente numa cultura liberal. Quando atacam Feliciano,
atacam a sua igreja incapaz de resolver isso. Da mesma maneira, esta recepção
indignada da sociedade só vem a colocar em cheque a postura de Malafaia. Se ele
quis abarcar público pra si, como um religioso que discute com políticos e
psicólogos, ao mesmo tempo conseguiu, a contragosto, em relação a outro
público, seu lugar com o algoz da praça, pois revelou ao mesmo tempo as
sujeiras de sua Igreja e sua burrice que, quanto mais pomposa, mais feia e
vergonhosa.
Uma ferida no país?!
Na obra “A dialética do esclarecimento”, escrita pelos
filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer no século XX, afirma-se que a burrice
é uma espécie de cicatriz, ou seja, um resultado de algo que foi inibido em uma
experiência frustrada por uma expectativa intelectual não realizada. A cicatriz
do intelecto seria um sinal de que alguma aprendizagem que ali foi interrompida
ou tornada impossível. Diria, sem negar isto, que a burrice talvez nem mesmo a
ser cicatriz, mas uma ferida não cicatrizada. No caso do pastor Silas Malafaia
e de Marco Feliciano, suas posturas podem indicar este tipo de ferida, composta
de dizeres imprecisos e, portanto, de “falaborréias”.
Muitos de nós podemos tolerar a seguinte imagem, ou seja,
negar que ela permaneça, na medida em que é possível afirmar vislumbrá-la: Toda
a áurea desses pastores, todos os trejeitos que contornam seus discursos
violentos não se expressariam, muito bem imageticamente, no nosso país, como
uma horrenda ferida atraente para moscas?
* Ana Monique Moura é
mestre em filosofia pela UFPB. Autora do livro “Entre Kant, filosofias &
arte”, Editora Sal da Terra, 2012 e com livro sobre cinema no prelo, sob o
título “O olho e o pensamento”, 2013.
Fonte: Brasil de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário