A cada hora, dez mulheres foram vítimas de violência no
Brasil em 2012.
A brutal agressão contra a turista, que ganhou manchetes em
vários jornais no mundo, assim como a falha na investigação anterior
aconteceram num momento crítico para a segurança pública no Brasil. Os casos de
violência sexual contra mulheres parecem ter crescido nas maiores capitais do
país, nos últimos três anos.
O telefone da chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro,
Martha Rocha, tocou na madrugada do dia 30 de março, sábado. Só podia ser má
notícia. Com a voz pausada, o delegado Alexandre Braga, da Delegacia Especial
de Apoio ao Turismo (Deat), contou que uma turista estrangeira fora estuprada
por três homens dentro de uma van clandestina de transporte público, na qual
ela embarcara em Copacabana horas antes. Seu namorado, também estrangeiro, fora
algemado à poltrona do carro e agredido com uma barra de ferro. Em menos de 24
horas, dois estupradores já estavam presos. A imagem de eficiência da polícia,
uma boa notícia em meio a um crime grotesco, não durou muito. No domingo à noite,
o delegado telefonou novamente, com uma informação vergonhosa. Uma semana antes
da agressão aos turistas, outra jovem, brasileira, fora estuprada pelos mesmos
criminosos, na mesma van. A brasileira recorrera à Delegacia Especializada de
Atendimento à Mulher (Deam) de Niterói, na região metropolitana do Rio. Martha
Rocha entrou no sistema informatizado da polícia e encontrou os registros do
caso da jovem. Estava tudo parado. “A Delegacia da Mulher não refez o percurso
(da van), não tentou localizar câmeras (de segurança de estabelecimentos
comerciais que pudessem ter flagrado o veículo)”, afirma Martha Rocha. “Não
encaminhou a vítima para fazer um retrato falado.” Uma menina de 18 anos, a
terceira vítima até aqui conhecida dos estupradores da van, violentada no
começo de fevereiro, disse que não procurou a delegacia por vergonha.
Martha Rocha demitiu a titular da Delegacia da Mulher de
Niterói, delegada Marta Ferreira Dominguez, e exonerou a perita Martha de Souza
Pereira, diretora do posto do Instituto Médico-Legal (IML), onde a jovem foi
obrigada a esperar quatro horas até ser examinada. “Aquela moça merecia ir para
casa tomar um banho”, diz Martha Rocha. “Não tinha ainda tomado banho para
preservar todo e qualquer vestígio para o exame.” A vítima de estupro é uma
pessoa ferida, que o Estado não foi capaz de defender. Ao denunciar o crime,
ela se expõe ao preconceito que partes da sociedade ainda impõem às vítimas
desse tipo de crime. Precisa de conforto no atendimento e confiança de que o
caso será resolvido. Nada disso ocorreu no caso da jovem que depôs na Delegacia
da Mulher de Niterói. “O que me deixou mais triste foi que, nas duas situações,
a vítima foi atendida por mulheres”, disse Martha Rocha. Ela acusa a delegada
de não ter agido: “O delegado titular da Deat, que resolveu em 24 horas o caso
da agressão contra a estrangeira, é um homem”. A delegada exonerada, Marta
Ferreira Dominguez, disse que, por causa do feriado da Semana Santa, tivera
apenas três dias para a investigação. A perita Martha Pereira, do IML, não quis
comentar sua demissão. O presidente da associação dos peritos do Rio de
Janeiro, Élcio Costa, disse que a demissão no IML só esconde o problema. “Vai
ter de exonerar o novo diretor também”, disse. “O atendimento é esse aí. O
pessoal faz o máximo.” Costa afirma que há um perito para atender 80 pessoas
por dia na área de clínica médica, responsável por examinar vítimas de crimes.
A brutal agressão contra a turista, que ganhou manchetes em
vários jornais no mundo, assim como a falha na investigação anterior
aconteceram num momento crítico para a segurança pública no Brasil. Os casos de
violência sexual contra mulheres parecem ter crescido nas maiores capitais do
país, nos últimos três anos. Em São Paulo, os registros de estupro deram um
salto de 32%, chegando a 3.197 no ano passado. No Rio de Janeiro, subiram 26% e
alcançaram a marca de 2.005 ocorrências em 2012. Não é coisa só de bairro
violento e pobre. Na Zona Sul carioca, que inclui Copacabana, onde a turista
embarcou na van, foram registrados 118 casos no ano passado, alta de 45%. Os
especialistas atribuem essa elevação radical das estatísticas à maior
disposição das mulheres em denunciar, e não ao crescimento dos casos de
violência. Mesmo assim, é inquietante.
>>A violência sexual, na qual se enquadra o estupro, é
uma das formas de agressão de combate mais difíceis. As vítimas são, em 86% dos
casos, mulheres, segundo o Ministério da Saúde. O estudo Mapa da Violência 2012
mostra que a maioria dos agressores é conhecida da vítima: 65% são pais,
padrastos, parceiros e ex-parceiros ou amigos. “Esses números sugerem que as
mulheres correm mais risco dentro de casa”, afirma Julio Jacobo, autor do
estudo. Ele diz que 64% dos casos de violência sexual ocorrem em casa. O que
aconteceu com a turista americana e as duas jovens brasileiras é um crime menos
comum. Responde por apenas 18% das ocorrências.
MÃO FIRME
A dificuldade para enfrentar a violência sexual começa em
sua própria identificação. Até 2009, o Brasil considerava estupro apenas atos
forçados de penetração vaginal. Agora, o país adota uma classificação mais
abrangente, que inclui sexo oral ou anal. Desde 2011, o Ministério da Saúde
obriga os hospitais a notificar casos de violência sexual. Isso empurrou as
estatísticas para cima. Outro fato que pode ter influenciado no crescimento das
denúncias foi a entrevista da apresentadora Xuxa Meneghel ao Fantástico, em 20
de maio de 2012, contando que fora vítima de abuso sexual na infância. Depois
da entrevista, o número de chamadas ao Disque-Denúncia cresceu 30% em
comparação à semana anterior.
Como esse movimento de elevação das estatísticas é recente,
e suas causas são nebulosas, nenhum estudioso acha seguro afirmar que os casos
de estupro estão aumentando no país. Mesmo os dados internacionais são
conflitantes. Num estudo citado no relatório World report on violence and
health (2002), da Organização Mundial da Saúde, o Brasil pode ser considerado
um país de alto risco para as mulheres. O estudo mostra que 8% das mulheres
entrevistadas no Rio de Janeiro relataram ter sido vítimas de algum tipo de
violência sexual nos últimos cinco anos. Segundo esse dado, o Brasil seria o
país com maior frequência de casos de violência sexual entre os 20 pesquisados.
Em outro levantamento organizado pela OMS, o Who
multi-country study on women’s health and domestic violence against women
(2005), os números brasileiros são expressivos, mas não figuram entre os mais
altos. Entre as mulheres entrevistadas em São Paulo, 10% relataram já ter
sofrido alguma forma de violência sexual pelo companheiro – isso inclui relação
sexual forçada, por medo de ser agredida, ou ter sido submetida a uma situação
humilhante. Em Pernambuco, esse número foi 14%. Internacionalmente, os casos mais
frequentes de violência sexual acontecem na Etiópia (59%), em Bangladesh (50%)
e na Tailândia (30%) – mas, novamente, a Organização Mundial da Saúde sugere
que a comparação de dados entre culturas tão diferentes é totalmente
inadequada.
Os episódios de agressão raramente saem das sombras. A
melhor maneira de combatê-los é dar tratamento exemplar aos casos que chegam ao
conhecimento das autoridades – algo que a polícia do Rio de Janeiro só
conseguiu fazer diante de uma vítima estrangeira.
Fonte: Revista Epoca
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