Dom José Luís Azcona Hermoso é bispo da prelazia de Marajó,
no Pará. Ele é apontado como um ícone na luta contra o tráfico de pessoas e a
exploração sexual de menores. Por suas denúncias, tem seu nome inscrito na
lista negra dos “barões do tráfico”. Segundo ele, o tráfico humano está
infimamente atrelado a outras três atividades ilícitas: tráfico de armas,
narcotráfico e exploração sexual de menores. Dom Azcona ressalta que a
desarticulação das quadrilhas que cometem esse crime é extremamente difícil,
pois, esse é um negócio bilionário que conta com a conivência de autoridades.
A entrevista é de Maria Amélia Saad e publicada pelo portal
Zenit, 22-01-2013.
Eis a entrevista.
Qual é a realidade do tráfico de seres humanos no Brasil?
É uma situação de sombras. Não existe uma estatística
científica sobre essa realidade, que, logicamente permanece oculta pelas
próprias razões do negócio de tráfico de pessoas e também pelo controle de
organizações de nível internacional, que exercem influência até sobre meios de
comunicação. Não é fácil o combate contra essa realidade e tampouco o
conhecimento sobre ela, já que, repito, o grande fenômeno da venda de pessoas
leva consigo a ocultação, o segredo criminoso e a manipulação cuidadosa
controlada por grandes organizações mundiais. mas crimes conexos com o tráfico
humano, como, por exemplo, a exploração sexual de menores, dão uma visão dessa
problemática
O tráfico ocorre com conivência de pessoas com grande
influência social, como políticos?
Não se pode provar. Não temos essas provas, pois elas
levariam à denúncia e consecutivamente a processos. Mas devido à interação do
tráfico de pessoas com narcotráfico, tráfico de armas, a interação de muitos
casos dessas quatro atividades criminosas, leva a pensar que existem políticos
no meio e sem dúvida nenhuma ganham muito dinheiro. São 32 bilhões de dólares
anuais em jogo no mundo todo. Sem dúvida nenhuma podemos deduzir que alguns
políticos estão envolvidos nesse tipo de atividade criminosa.
Quem é o traficante de pessoas?
O traficante pode ser qualquer pessoa. Ele pode iniciar
desde um extrato social baixo e crescer dentro das máfias organizadas, até
tomar o controle, como acontece no tráfico de drogas. Não se pode definir muito
bem quem é que controla e leva para frente esse tipo de atividade, mas, sem
dúvida nenhuma, são pessoas com forte poder econômico, e portanto, eles
controlam um capital, investindo e produzindo através da escravidão humana,
vendendo e comprando pessoas.
Por exemplo, em 2007, um colaborador nosso conseguiu, com
ajuda da Polícia Federal, se infiltrar em uma dessas máfias que levava
mulheres, incluindo até mesmo menores, para a Guiana Francesa. O grupo,
inclusive o chefe, foi preso em Oiapoque (AP), na fronteira com a Guiana Francesa.
Em dez horas desde a prisão deste criminoso, apresentaram-se seis advogados
para tirá-lo da cadeia. Se em dez horas esse grupo disponibilizou seis
advogados, sem dúvida, muito qualificados, isso indica que a retaguarda tem
muito dinheiro e que os organizadores são grupos poderosos.
Em segundo lugar, esses grupos são inescrupulosos, como se
pode comprovar pelo desfecho desse fato. O criminoso ficou somente um mês na
cadeia. Uma vez liberto, comunicou por telefone ao homem que tinha se
infiltrado na organização criminosa dele dizendo: “eu vou te matar”. Esta
ameaça apareceu na Revista Época e neste mesmo ano, no dia 9 de setembro era
eliminado o homem que descobriu o esquema do tráfico de mulheres para a Guiana
Francesa. Isso supõe que eles são um grupo econômico organizado e ao mesmo
tempo sem escrúpulos, agindo diretamente na eliminação das pessoas, contra toda
a lei. Eles são grupos paralelos, que a sociedade tolera.
O que leva a vítima a cair nas redes de tráfico?
Principalmente, é a necessidade econômica, e junto com ela,
a proposta de paraísos ilusórios. Na nossa região, em meio do ambiente de
pobreza extrema em que se encontra nossa população, são extraídas das vítimas,
voluntárias muitas vezes, e em outras ignorantes sobre o que de fato as aguarda
nesse tipo de tráfico humano. Já em maio de 2009 o programa da Globo,
Fantástico, transmitiu uma notícia sobre a venda de pessoas no Brasil, aqui no
município de Portela, onde o jornalista supostamente comprava de uma mãe uma
menina de 17 anos por R$ 500 e a de 10 anos, por R$ 10 ou quatro “louras”
(cervejas), para passar uma noite. Esse detalhe é um sinal, que responde a sua
pergunta. Nesse meio ambiente de miséria econômica e humana é que são levadas
essas mulheres para o fim do mundo para serem compradas e vendidas como animais
de estimação que valem dinheiro.
Uma vez dentro desse esquema, existe a possibilidade dessas
pessoas voltarem para sua realidade de origem?
É muito difícil, por aqui os casos que conhecemos são de
tristeza. Por exemplo, uma mulher traficada para a Espanha, na cidade de
Saragoça, estava se prostituindo, e ao tomar uma dose excessiva de êxtase,
perdeu o controle de si mesma, foi presa e repatriada. Ela retornou a Portela
(PA), seu município, mas, ficou para sempre perturbada, uma mulher que não tem
capacidade de socialização, é agressiva, completamente insana, apesar de todos
os tratamentos. Outras não têm oportunidade de voltar, pois são assassinadas,
como por exemplo, ano passado, uma menina de 25 anos, aqui de Breves (PA). Ela
foi assassinada na Guiana Francesa, para roubarem o dinheiro que tinha,
possivelmente por garimpeiros. Esses ambientes para os quais elas vão e são
vendidas dificultam muito o retorno, por que no momento determinado, o preço
que elas valem prevalece sobre a própria dignidade da vida humana. Portanto,
muitos casos que conhecemos são de final trágico, se não com morte. Existe uma
situação de escravidão permanente, da qual é muito difícil se libertar.
Existe algum projeto governamental para investigar esses
casos?
As denúncias que fizeram junto comigo dois irmãos bispos,
Dom Erwin Kräutler, de Altamira (PA), e Dom Flávio Giovenale, de
Abaetetuba(PA), eles também ameaçados de morte como eu, levantaram um forte
clamor que resultou em uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre a
exploração de menores, que é, repito, uma atividade muito conexa com o tráfico
humano, sobretudo de mulheres, e mais particularmente, de adolescentes. Uma das
conclusões da CPI foi que, devido à grande conexão entre as duas atividades, foi
necessário organizar outra comissão para investigar o tráfico humano. Aqui no
Pará, já acontece há nove meses uma CPI para investigar esse tipo de crime e se
descobriu conexões com quadrilhas de tráfico de órgãos. Esta comissão também
tem denunciado abusos contra adolescentes e menores, que iludidos com promessas
de um futuro esportivo brilhante, são transportados irregularmente para São
Paulo e Rio de Janeiro, a fim de serem comprados ou alugados, para jogarem
futebol.
O senhor é apontado como uma das pessoas marcadas pra
morrer, em decorrência de suas denúncias. O senhor tem medo?
Bom, essa é a pergunta que todo jornalista faz. Eu penso na
morte com muita frequência, quando, por exemplo, pela manhã abro a porta para
ir à capela para rezar. Penso: “por traz dessa porta pode estar o meu
assassino”. Quando tenho de atravessar o corredor que me leva para a capela,
tem uma sacada e penso, “dentro daquela sacada, um rifle pode acabar facilmente
com a minha vida”. Tem uma sombra no amanhecer e o pensamento da morte me
acompanha.
Esse pensamento me acompanha muito, mas Deus é mais forte.
Posso dizer claramente que Ele tem tirado toda angústia e ansiedade, pela graça
Dele, unicamente, não tenho perdido um minuto de sono, e mais ainda, penso que
se um dia puder entregar meu sangue por Jesus, que derramou o seu preciosíssimo
sangue por um pecador tão grande como eu, para mim será verdadeiramente o dia
mais feliz da minha existência. Se um dia eu puder dar a minha vida por esse
povo, aqui do Marajó, para mim será o final do meu ministério episcopal, na
maior alegria, na maior glória, para honra de Deus e realização daquilo a que
Ele me enviou. Isso é graça de Deus, sou consciente do perigo que corro, mas,
ao mesmo tempo, estou muito mais consciente da herança para qual Cristo me
escolheu.
Fonte: ihu
Nenhum comentário:
Postar um comentário