Vítimas de redes internacionais de prostituição relatam o drama de virar escravas no Exterior após promessas de uma vida melhor.
George morreu na Alemanha. Cláudia viveu por lá, mas em
cárcere privado. Outras três mulheres, também gaúchas, foram presas em
Hamburgo. Talita padeceu como escrava na Itália. E uma sexta jovem se viu
forçada a virar dançarina de boate na Espanha.
Parece ficção, roteiro perfeito para ser incluído na novela
Salve Jorge. Mas é a pura realidade. São histórias de quem virou mercadoria nas
mãos de traficantes internacionais de seres humanos.
A Europa é o principal centro deste novo mercado
escravagista do século 21. Alemanha, Itália e Espanha estão entre os países
onde brasileiros são subjugados, como ocorreu com os personagens desta
reportagem.
Todos eles jovens ambiciosos, cruzaram o Atlântico sonhando
alto com uma oportunidade de dar uma guinada na vida. Mas todos foram
enganados. Cláudia Guedes, aos 28 anos, acreditou em um agente de modelos que a
ajudaria a encontrar um príncipe encantado na Alemanha, mas acabou vendida a um
comerciante por R$ 20 mil.
Também na Alemanha, George Teixeira, 23 anos, caiu na
conversa de que seria instrutor de academia e sucumbiu como stripper, até ser
encontrado enforcado. A versão oficial é de suicídio, mas a família nunca
acreditou nisso.
– Mataram meu filho – esbraveja em prantos a cozinheira
desempregada Terezinha Natália de Souza, 59 anos, que jamais viu o corpo de
George, enterrado em Hamburgo, há 14 anos.
Estudos indicam que o Brasil é o maior “exportador” de
pessoas da América Latina. E, este ano, deverá assumir o segundo lugar como
país onde mais são julgados processos criminais referentes ao tráfico de seres
humanos.
A cada cinco dias, uma vítima é alvo deste tipo de crime em
solo brasileiro – seja para o tráfico interno ou externo, conforme levantamento
de outubro realizado pela Secretaria Nacional de Justiça, em conjunto com o
Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC). A maioria é
explorada sexualmente, predominantemente jovens mulatas e negras, um fetiche
dos europeus.
A CPI do Tráfico de Pessoas do Senado, finalizada em
dezembro, listou 867 inquéritos instaurados pela Polícia Federal (PF) sobre
este tipo de crime nas últimas duas décadas, incluindo 29 no Rio Grande do Sul.
Um deles resultou na prisão, às vésperas do Natal, de Ernani
Fernandes da Silva, 49 anos, ex-dançarino em boates da Alemanha que se escondia
em Viamão, onde atuava como xamã – uma espécie de curandeiro. Ernani estava
foragido da Justiça Federal desde 2006, quando foi condenado a seis anos e dois
meses de prisão por aliciar três jovens para prostituição na Alemanha, onde
acabaram presas no aeroporto de Hamburgo e deportadas, em 1999. A pena imposta
a Ernani inclui a acusação de induzir outra mulher que foi trabalhar em uma
boate na Espanha. E foi na casa de Ernani, em Hamburgo, que George desembarcou
para a viagem sem volta à Alemanha.
O tráfico de pessoas é crime, mesmo que a vítima seja
conivente com a situação. E é considerado de difícil repressão, principalmente
quando o destino é o Exterior, porque nem sempre quem é coagido se dispõe ou
tem chance de delatar o algoz.
– A pessoa está em um país estranho, irregularmente, não
fala o idioma local e tem medo de procurar as autoridades. O seu único elo de
segurança acaba sendo o explorador, a quem fica completamente à mercê, sofrendo
humilhações e espancamentos – analisa a delegada Diana Calazans Mann, da
Delegacia de Defesa Institucional, da PF gaúcha.
Diana critica a complacência com os que estão à frente de
casas de prostituição, os cafetões, atividade classificada como crime:
– Existem sentenças de absolvição de donos de prostíbulos
sob o princípio da adequação social. É um contrassenso. Há uma política de
repressão ao tráfico de seres humanos e, ao mesmo tempo, uma leniência com a
exploração sexual. A sociedade precisa refletir sobre isso.
A ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República, lembra que o governo desenvolve o Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, visando qualificar o combater
ao crime.
– Precisamos estar mais articulados com outros países, dar
mais apoio às vítimas, para que elas não se transformem em novas aliciadoras. É
comum retornarem ao Brasil para buscar outras mulheres com intenção de pagar
dívidas com quem as explora – alerta.
A viagem sem volta de George
Egresso do Exército, ambulante, George Teixeira, 21 anos,
tinha pressa em mudar de vida. Queria ajudar a mãe, a cozinheira Terezinha
Natália de Souza, e os dois irmãos a sair da situação difícil de pobres
migrantes catarinenses refugiados em uma casa da Vila São José, em Porto
Alegre.
Não titubeou quando uma vizinha ofereceu R$ 200 por dia como
instrutor de academia na Alemanha, além de cama e comida de graça. George
vendeu um Fusca, comprou passagens de ida e volta, tirou fotos para o
passaporte, e convenceu a mãe de que tinha tomado a decisão certa.
– Ele era muito ambicioso e dizia para mim: mãe, deixa eu
ir, volto em três meses e nossa vida vai mudar – lembra Terezinha, vivendo hoje
em Urubici, na serra catarinense.
Em junho de 1996, George embarcou para a Europa. No voo
estava a vizinha Maribel Fernandes Pinto, cujo irmão, Ernani Fernandes da
Silva, ajudaria George com o emprego.
Terezinha não tinha telefone, e George se comunicava por
cartas. Começou a se queixar da falta de trabalho e dinheiro, disse que virou
stripper em uma boate e que tinham furtado sua passagem de volta ao Brasil.
Quase um ano depois, George apareceu de surpresa em casa.
Para a mãe, tinha o semblante estranho. Ficou apenas um pedaço de uma tarde de
abril de 1997 na casa dela e contou que retornaria logo para a Alemanha porque
viajara com dinheiro emprestado pelo dono da boate e precisava trabalhar para
quitar a dívida. Foi a última vez que Terezinha viu o filho.
Em julho de 1998, George escreveu contando que tinha se
casado com uma alemã, e que pretendia casar-se com a jovem em Porto Alegre,
prevendo chegar em setembro. Em 24 de agosto daquele ano, um fax chegou às mãos
de Terezinha, informando a morte do rapaz. O corpo tinha sido encontrado no
banheiro de casa, com um cinto de roupão enrolado no pescoço. Para a polícia
alemã, suicídio.
– Como pode uma pessoa se casar em julho e se matar em
agosto? Ele foi assassinado, mas não consegui provar nada – afirma, aos prantos.
George foi sepultado em Hamburgo.
Cláudia foi vendida por R$ 20 mil
Julho de 1995. No salão de beleza em que trabalhava, no
bairro Azenha, na Capital, a cabeleireira Cláudia Guedes ouviu de uma amiga
modelo a oferta de “virar mulher de europeu rico, ganhar dinheiro para dar uma
casa para a mãe”.
Cláudia só teria de ir a Europa para ser apresentada a um
bem-sucedido comerciante siciliano, que vivia em Neuss, na região de
Düsseldorf. O interesse do italiano era se casar com uma negra brasileira e
viver na Bahia. Se Cláudia aceitasse, teria vida de princesa. Do contrário,
poderia trabalhar lá ou voltar para casa.
Morena, solteira, 28 anos, com uma criança para criar,
Cláudia cedeu aos apelos e embarcou para a Alemanha. Foi recebida pela irmã do
agenciador de modelos. A mulher levou Cláudia para lojas de roupas, salão de
beleza e depois para a “nova casa”. O futuro marido saiu com Cláudia para um
passeio de carro. Com o dobro da idade dela, o homem decidiu: ficariam juntos,
Cláudia teria carro, moradia, comida, mas não poderiam se casar – ele já era
casado. Estava proibida de sair sozinha da casa da amiga e teria de esquecer o
filho deixado com a mãe:
– Àquela altura, já tinha me arrependido, me desesperei e
gritei: “meu Deus”. Ele, enfurecido, dirigindo a 150 km/h, tirou as mãos do
volante e disse que não acreditava em Deus, que tinha de ser do jeito dele,
porque tinha pago por mim. Perguntava se eu tinha recebido dinheiro.
Desnorteada, Cláudia foi levada ao “cativeiro”. Quinze dias
depois, o agente de modelos apareceu na casa. O italiano cobrou explicações, e
exigia de volta o que tinha pago – R$ 20 mil. Além de Cláudia, Salvatore também
fora ludibriado.
– Aí, teve muita confusão e entendi que tinha sido vendida.
Bateu o pavor.
Foram 25 dias de angústia até que Cláudia recebesse o
passaporte para embarcar de volta. De mãos e bolsos vazios.
Talita, escrava por dois anos
Filha de uma família de classe média da Paraíba, Talita
Sayeg – nome adotado ao assumir a condição de transexual – foi expulsa de casa
aos 15 anos. Ganhava a vida nas ruas de João Pessoa, até ser atraída por Isnard
Alves Cabral, a Diná, travesti paraibano que vive em Roma, suspeito de comandar
uma rede de tráfico para exploração sexual na Europa a partir do Nordeste.
Decidida a se dar bem na Itália – um dos destinos preferidos
de transexuais brasileiros –, aos 18 anos, em 2002, Talita arriscou se
aventurar. Na Paraíba, uma irmã de Diná organizou a viagem. Bancou as despesas
e a colocou em um avião com outros dois travestis rumo à Toscana, cada um com
R$ 2 mil na bolsa para serem aceitos como turistas.
Na chegada à cidade litorânea de Viareggio, teve de entregar
o passaporte a Diná e o dinheiro com o qual passou na alfândega. Talita sabia
que teria de pagar pela viagem, já conhecia histórias de pessoas que se
rebelavam e eram vendidas a redes de traficantes europeus. Mas não esperava que
a conta fosse tão alta: US$ 12 mil, o equivalente a R$ 24 mil. Ainda tinha de
pagar R$ 100 por dia como diária da casa, gastos com alimentação e transporte e
um regalo para agradar Diná, em geral, uma joia ao custo de R$ 3 mil.
Talita conta que trabalhava das 20h às 6h, chegando a 15
programas por noite. Lembra que foi escravizada por dois anos, até conquistar
sua carta de alforria, em Roma.
– Tinha gente que se revoltava, se atirando nas drogas,
desesperada por ganhar o dinheiro, mas vê-lo ir embora. Passavam nas casas
recolhendo a grana todas as manhã.
Diná, o feitor de Talita, foi denunciado em 2010 pelo
Ministério Público Federal da Paraíba com outros quatro paraibanos e um
italiano sob suspeita de traficar dezenas de travestis para a Europa.
Talita ainda chora o dinheiro perdido, mas se considera uma
sobrevivente. Desde maio mora em Porto Alegre, buscando uma nova vida.
Fonte: ZERO
HORA
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