Por que será que ainda pensamos que o estupro só acontece na
vida das outras, em uma realidade distante e incompreensível? Certamente porque
temos medo de encarar o fato de que a prática do estupro está intimamente
vinculada com a reprodução cotidiana do machismo na tentativa de domesticação
violenta dos nossos corpos seja na Índia ou na Suécia e porque o estupro traz
consigo uma outra face dessa violência que é o silêncio de suas vítimas,
extremamente vulneráveis e que temem o sofrimento da exposição pública.
Por Alana Moraes
O recente caso noticiado sobre o estupro coletivo sofrido
por uma jovem indiana de 23 anos parece ter comovido de maneira bastante
intensa a opinião pública internacional. É difícil não se abalar com o caso e
todos os requintes de violência encontrados no corpo da jovem estudante que
bravamente lutou por sua vida durante duas semanas. O estupro talvez seja a
manifestação mais drástica da violência machista, uma violação da integridade
do corpo e da autonomia que pretende anunciar de maneira brutal, entre outras
coisas, o fato de que a mulher não tem possibilidade de escolhas sobre o seu
próprio corpo, o fato de que o corpo da mulher é, no limite, inscrito na ordem
na sujeição, da subordinação e alienação dos próprios desejos.
O que me incomodou, no entanto, foram algumas análises
produzidas sobre o caso indiano. No momento em que acompanhava um noticiário um
amigo ao lado me questionou: “Mas por que será que essas coisas acontecem na
Índia?”. Sua pergunta na verdade revelava o fundo de toda a repercussão dada ao
caso: por que será que ainda pensamos que o estupro só acontece na vida das
outras, em uma realidade distante e incompreensível? Certamente porque temos
medo de encarar o fato de que a prática do estupro está intimamente vinculada
com a reprodução cotidiana do machismo na tentativa de domesticação violenta
dos nossos corpos seja na Índia ou na Suécia e porque o estupro traz consigo
uma outra face dessa violência que é o silêncio de suas vítimas, extremamente
vulneráveis e que temem o sofrimento da exposição pública.
A prática do estupro desmancha as fronteiras entre o norte e
o sul, entre democracias e ditaduras, ricas e pobres, entre nós e as outras e
tudo que ameaça as fronteiras é temerário para uma sociedade ocidental cujos
pilares se constroem a partir das grandes divisões.
Fundamentalmente os casos de estupros só aparecem quando a
mulher violentada é a mulher do outro, seja a esposa ou a fi lha: os estupros
domésticos ainda são cotidianamente silenciados porque de certa forma estão
inscritos dentro do direito legitimo de posse do homem que agride o que
supostamente é seu de direito.
No sábado, dia 12, o caderno Prosa e Verso do jornal O Globo
publicou um artigo de Manu Joseph, editor de uma revista semanal indiana, no qual
ele discutia o problema dos casos recorrentes de estupro na Índia. Para resumir
o autor defende a ideia de que a violência praticada pela ação do estupro é
produto de uma “cultura tradicional, camponesa e atrasada”: “Por que a Índia
não tem cidades de verdade? Porque as cidades necessitam de uma massa critica
de pessoas liberais, ou pelo menos de uma elite, para ser um pouco
independente, livre de suas raízes culturais, familiares e comunitárias.” Uma
outra reportagem produzida pelo NYT e reproduzida pelo portal IG conclui que
“Os maus-tratos e abuso contra mulheres são um grande problema especialmente em
Nova Délhi e no norte da Índia. A mentalidade social patriarcal, uma cultura de
abuso do poder político, um desdém generalizado em relação à legislação, uma
força policial em grande parte insensível e uma população de migrantes sem
raízes, sem lei, são apenas algumas das razões.”
O debate poderia ser longo. Poderia começar, por exemplo,
com o questionamento de que o estupro é fruto de uma “cultura” seja ela de
qualquer tipo. Culturalizar o estupro é, sobretudo um erro político: é tentar
explicar um pratica de violência ancorada nos valores de uma sociedade machista
e patriarcal em uma gramática particularista. Ou se abandona de vez a
explicação “cultural” do estupro ou é preciso admitir que o estupro é uma
cultura universal, masculina e patriarcal, não esquecendo que – segundo a ONU –
os maiores índices de estupros registrados em 2010, por exemplo, estão
localizados nos Estados Unidos.
Uma coisa assustadora acontece quando tentamos compreender o
estupro em uma chave cultural, tradicional e comunitária: acabamos por
invisibilizar o estupro enquanto prática recorrente de nossa sociedade
supostamente “moderna”. Na minha cidade, por exemplo, o Rio de Janeiro, os
índices de estupro estão cada vez mais alarmantes. Em 2010 os casos aumentaram
em 20%, a mesma taxa de crescimento observada na Bélgica. Em São Paulo, essa
pequena cidade tradicional, em média, 11 mulheres são estupradas por dia. Dados
levantados pela Fundação Perseu Abramo revelam que entre as mulheres
entrevistadas em São Paulo e Pernambuco, aproximadamente uma em cada três diz
ter sofrido violência.
Vivemos em tempos difíceis onde o senso comum dominante,
reforçado pela “opinião pública” insiste em consolidar uma ideia de que a
igualdade entre homens e mulheres já foi alcançada, de que a luta feminista é
um tanto quanto fora de moda nos países “modernos” ocidentais. Ainda que a
prática do estupro por vezes seja corroborada por crenças religiosas fundamentalistas,
ainda que a violência contra mulher possua nuances diferenciadas e significadas
de diferentes formas ela ainda é permanente e transcultural, ainda faz parte da
dominação machista sob qual todas nós vivemos. Ela ainda é violência e opressão
sexista: de Bruxelas à Nova Délhi. É assustador para o projeto de civilização
ocidental pensar que a violação dos corpos femininos a partir do uso da força
seja uma pratica constitutiva de nossas sociedades.
Corremos o risco de que a “cultura” seja entendida como algo
imutável e de que a pratica da violação sexual seja etnocentricamente atribuída
aos povos “não-modernos”, como mais um elemento pitoresco de suas praticas. Ao
contrário: ou aceitamos que a violência machista e patriarcal que viola nossos corpos
e nosso direito de ser gente é moderna, porque é peça central da engrenagem da
sociedade desigual em que vivemos ou ficamos com a suspeita de que “jamais
fomos modernos” já que temos que conviver cotidianamente com praticas brutais
de violência e opressão.
Um bilhão de mulheres, ou uma em cada três do planeta, já
foram espancadas, forçadas a ter relações sexuais ou submetidas a algum outro
tipo de violência.
A luta feminista precisa ser mais do que nunca uma luta
internacional porque acreditamos mais na cultura da política – na cultura
militante do convencimento de nossas ideias – do que na política da cultura que
insiste em embalsamar as práticas machistas como se estas pertencessem a um
outro mundo que não o nosso, a um outro tempo que não o nosso.
Continuaremos em marcha até que todas sejamos livres! Por
nós, por Jyoti Singh Pandey, por todas.
Alana Moraes é militante da Marcha Mundial das Mulheres no
Rio de Janeiro.
Fonte: Brasil de Fato
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