"A partir da minha pesquisa, posso dizer que os
movimentos sociais abandonaram o discurso religioso, utópico, marxista-cristão
e assumiram o discurso pragmático-capitalista neoliberal. Então, o discurso da
maioria dos militantes é praticar uma política pragmática, embora muitas vezes
eles nem se deem conta disso", afirma Nadir Lara Junior , pesquisador do
PPG em Ciências Sociais da Unisinos.
Num país como o Brasil, em que 92% dos brasileiros se
declaram religiosos, é difícil desvincular a religião do debate político. Essa
relação de proximidade pode ser explicada, em parte, pela religiosidade popular
e pela influência que o catolicismo e as religiões protestantes tradicionais
exerceram na constituição dos movimentos sociais brasileiros a partir da década
de 1980, sob influência do marxismo e da Teologia da Libertação.
Apesar da influência religiosa, na última década os
movimentos sociais “abandonaram o discurso religioso, utópico, marxista-cristão
e assumiram o discurso pragmático-capitalista neoliberal”, assinala o psicólogo
e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, Nadir Lara Junior. Segundo ele, três
fatores explicam a mudança na atuação dos movimentos sociais: a eleição do presidente
Lula à presidência da República com a incorporação dos movimentos sociais ao
Estado; as ações políticas administrativas do Papa João Paulo II, que
culminaram num recuo da Igreja em relação às Comunidades Eclesiais de Base –
CEBs; e a ascensão dos evangélicos no cenário religioso. Novamente, a religião
voltou a exercer influência na política, a partir do boom do movimento
neopentecostal, que chegou aos movimentos sociais “com um arcabouço político,
ideológico, religioso de sua matriz neopentecostal, que é extremamente
pragmática”.
Diante dessas mudanças conjunturais, a formação dos
movimentos sociais passou a ser “instrumental, ou seja, uma formação para
ensinar a se movimentar dentro das burocracias das políticas públicas. (...) De
certa forma, os movimentos sociais se reduzem a formarem seus quadros não na
oposição, na crítica, na política, mas sim numa certa subserviência travestida
de participação política. A política pública virou a participação política”,
avalia.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU
On-Line, o pesquisador também comenta a ascensão da bancada evangélica no
Congresso e a influência da religião nas eleições municipais deste ano. “Não
adianta os candidatos laicos criticarem os candidatos religiosos, ainda mais
num momento em que o Estado laico está mostrando uma dimensão de desonestidade
política muito assustadora. Quando você debate com um candidato assim, não sabe
se ele é de esquerda, de direita, de centro, se ele está agradando você porque
ele quer seu voto ou porque quer lhe ludibriar. Então, essa diluição da
fronteira política no Estado laico faz com que os candidatos religiosos
cresçam, porque eles não omitem a sua ideologia”, aponta.
Nadir Lara Junior (foto) é graduado em Psicologia, mestre e
doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC-SP, com a tese A mística do MST como laço social. É professor e
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Historicamente, como as religiões e a religiosidade
influenciaram a formação política e constituíram o núcleo ideológico dos
brasileiros?
Nadir Lara Junior – Várias pesquisas demonstram como a questão
da religiosidade marcou a formação do povo brasileiro. A professora Maria
Isaura Pereira de Queiroz apontou as experiências messiânicas existentes no
Brasil desde os indígenas e como eles traziam esses elementos religiosos, os
quais serviram de referência para criar um sentimento de revolta e indignação
contra a opressão portuguesa.
Depois da década de 1950, quando o cristianismo já tinha se
alastrado e criado um tipo de religiosidade mais sincrética, misturando
elementos das religiões afro e indígenas, surge a religiosidade popular, que
constitui o universo do povo brasileiro. Posteriormente, a partir da década de
1970, a Igreja Católica introduz a Teologia da Libertação, quando passa a
observar a experiência das comunidades mais pobres do Brasil e a fundamentar
isso teoricamente, numa experiência cristã mais aprofundada. A Igreja assume
essa realidade não como um elemento negativo, pejorativo da cultura, mas como
um elemento religioso e político, porque a Teologia da Libertação sofre uma
influência do cristianismo e do marxismo. Então, aqueles aspectos que já faziam
parte da cultura brasileira são sistematizados pela Teologia da Libertação, que
começa a organizar o povo a partir desta experiência de religiosidade popular,
que já estava presente na cultura. Tanto que os métodos usados por essa
teologia são ler a Bíblia a partir da realidade, ensinar as pessoas a ler e
escrever, capacitá-las a compreender seus direitos a partir da experiência de
Jesus Cristo, que é visto como o libertador da opressão que está instalada
historicamente.
Movimentos sociais e a Teologia da Libertação
A partir da sistematização da Teologia da Libertação e das
leituras que os teólogos fizeram a partir dela, nasceram muitos movimentos
sociais e atores políticos: o Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Sem Teto,
o Partido dos Trabalhadores, a Central Única dos Trabalhadores. São todas
organizações políticas que nascem nessa efervescência de algo que já estava
presente na cultura brasileira e que foi impulsionada pelos teólogos e teólogas
da libertação.
Particularmente falando, eu estudo política, não religião.
Porém, para falar de política no Brasil, não posso ignorar a influência
religiosa que sempre esteve presente. De acordo com o último censo, 92% das
pessoas se declaram religiosas no país. E o próprio conceito de não declarar-se
religioso no sentido de não estar vinculado a uma religião não significa que a
pessoa não seja religiosa. Estamos em um país que é religioso; então, como
falar de política cerceando a religião?
IHU On-Line – Qual foi a influência das religiões no processo de
constituição da identidade e do discurso político dos movimentos sociais
brasileiros? O senhor menciona que há uma crescente apropriação de elementos
religiosos por parte dos movimentos sociais. Do que se trata especificamente?
Nadir Lara Junior – Boa parte dos movimentos sociais
brasileiros nasce de uma influência cristã e da religiosidade popular, assim
como de uma influência marxista. Esses são elementos fortes que marcam os
movimentos sociais das décadas de 1980 e 1990. Entre os fenômenos religiosos,
destaca-se a mística, que está presente no MST e que articula, dentro desse
fenômeno, elementos religiosos, políticos e culturais. A mística é uma
encenação, um ritual coletivo em que as pessoas cantam, celebram, elaboram
hinos do próprio movimento para se prepararem e conseguirem alcançar seu
próprio objetivo dentro do movimento e fora dele. Portanto, a mística é um
elemento de constituição da identidade coletiva do MST e de outros movimentos
que a assumem como elemento fundamental e estruturante. Trata-se de um elemento
próprio do movimento que, assumidamente, faz política costurando esses
elementos cristãos e marxistas.
IHU On-Line – Qual a raiz desta relação do catolicismo brasileiro com o
marxismo? Por que parte da Igreja brasileira buscou elementos teóricos em Marx?
Nadir Lara Junior – Essa situação é complexa e central para
compreender a trajetória da Igreja no Brasil. Na década de 1960 em diante,
vivia-se a chamada guerra fria e o mundo estava dividido entre socialistas e
capitalistas. Nesse período, a América Latina começa a ser influenciada por
pensadores marxistas nas correntes intelectuais existentes. Essa influência se
deu tanto pela vinda de operários europeus para as grandes cidades brasileiras
– que trouxeram o marxismo, o anarquismo, o fascismo – como pelos intelectuais
latino-americanos, que haviam estudado na Europa. Nessa época, o marxismo era
um movimento intelectual que estava pairando pelas universidades europeias,
onde os intelectuais brasileiros e latino-americanos estudavam e, portanto, ele
exerceu muita influência aqui, especialmente porque havia uma tentativa de
pensar uma ciência para a América Latina. É com esse objetivo que diversos
intelectuais formularam teorias para tentar compreender a realidade
latino-americana.
Paulo Freire, com sua pedagogia do oprimido, deu o grande
“pontapé” no movimento intelectual da Libertação através da educação; Gustavo
Gutierrez deu início à Teologia da Libertação; Enrique Dussel, na Argentina,
iniciou os estudos da Filosofia da Libertação; e Ignacio Martín-Baró, que
morreu junto com Ignacio Ellacuría, fundamentou a Psicologia da Libertação.
Então, iniciou-se um jeito de pensar a ciência a partir de um jeito de ser
latino-americano, o qual foi fortemente influenciado pelo marxismo.
Os teólogos latino-americanos, quando chegaram à Europa e
estudaram marxismo, compreenderam que a visão de comunidade, de viver sem
opressão – o que o marxismo propõe –, estava próximo das propostas do
cristianismo. A partir daí começaram a ver uma grande semelhança entre o
comunismo e o comunitarismo cristão. A própria ideia de Jesus libertador é a do
materialismo histórico, ou seja, a de trabalhar com questões da realidade. Em
outras palavras, a Teologia da Libertação torna o Jesus metafísico em um Jesus material,
sem perder a dimensão mística. Eles conseguem trazer Jesus para a materialidade
e passam a atuar com uma força muito grande, especialmente nas periferias.
IHU On-Line – Quais foram as principais transformações no campo
religioso e político da última década, e como elas influenciaram a prática e o
discurso político dos movimentos sociais?
Nadir Lara Junior – Na última década ocorreram três mudanças
muito significativas: o número de evangélicos saltou de 8,5% para 17%, gerando
um boom demográfico; um ex-sindicalista (Lula), que atuava junto às Comunidades
Eclesiais de Base – CEBs, à Central Única dos Trabalhadores – CUT e ao
sindicato, chegou ao poder; e houve um recuo da Igreja Católica em função de
uma ação política administrativa do Papa João Paulo II, que determinou o recuo
de incentivo às CEBs, deixando também de nomear bispos ligados à Teologia da
Libertação – assim, os seminários saíram das mãos de padres da Teologia da
Libertação –, e incentivando o movimento pentecostal dentro da Igreja Católica.
Esses três elementos começam a circular na sociedade
brasileira e afetam principalmente os movimentos sociais porque, antes de Lula
assumir a presidência, eram justamente os membros da Igreja Católica, das
igrejas protestantes históricas e dos sindicatos que ofereciam formação
política para os integrantes dos movimentos sociais. Com a chegada de Lula ao
poder, há uma mudança radical: um recuo dos sindicatos e dos movimentos sociais
e uma associação deles com o governo. Diante dessa nova conjuntura, um ex-líder
sindical vira ministro e passa a negociar a greve com o amigo que deixou no
sindicato. Criou-se um problema, porque as principais lideranças dos movimentos
sociais começaram a ser chamadas para participar do governo e a representar os
movimentos sociais que, até o dia anterior às eleições, eram contra o Estado e,
dias após as eleições, se tornaram o próprio Estado. A partir desse momento,
surge um problema de identificação, de quem são os movimentos sociais e de quem
é o Estado. O Estado, que foi sempre o inimigo (“fora FHC, fora FMI, fora
neoliberalismo”), de repente começa a chamar membros dos movimentos para compor
secretarias, cargos de confiança etc.
Formação instrumental
Diante da nova configuração, há um recuo na formação
política, e o movimento social passa a ter de prover a formação política para
seus membros. Este é o tema da minha atual pesquisa, e já pude constatar que a
formação dos movimentos sociais da última década é instrumental, ou seja, uma
formação para ensinar a se movimentar dentro das burocracias das políticas
públicas. Não nego a importância das políticas públicas. O que afirmo é que os
movimentos sociais, de certa forma, se reduzem a formar seus quadros não na
oposição, na crítica, na política, mas sim numa certa subserviência travestida
de participação política. A política pública virou a participação política. Com
isso acaba-se com toda a história de contestação dos movimentos sociais,
reduzindo-os a um quadro técnico. O próprio movimento acaba profissionalizando
uma pessoa na política pública, e o Estado contrata a mão de obra qualificada
pelo movimento, e ele fica fragmentado. Isso gera um problema porque os
movimentos vão perdendo a dimensão da crítica.
IHU On-Line – Essa mudança diz respeito aos movimentos sociais e
sindicatos do mundo todo ou está restrita ao Brasil?
Nadir Lara Junior – Essa é uma característica brasileira.
Inclusive a atuação dos movimentos sociais no país é bem característica, e
bastante diferente do que existe no exterior. Diante da crise econômica surgem
outras formas de manifestações, como o Movimento dos Indignados, da Espanha, ou
Occupy Wall Street, dos EUA. Os movimentos de ocupação são uma tentativa de
organização popular longe do Estado e dos partidos para demarcar uma fronteira.
IHU On-Line – Esses novos movimentos sociais não têm representatividade
política. Como poderão fazer a diferença?
Nadir Lara Junior – A atuação dos antigos movimentos deixou
de herança uma concepção para os novos movimentos: é preciso mexer na estrutura
do Estado. Por isso a ideia de revolução novamente volta à pauta. Fazer
revolução ou falar de mudança social hoje em dia é um escárnio. Parece uma
ideia de pessoas ultrapassadas, mas nunca se teve tão em voga como hoje a
necessidade de se discutir dois elementos: ideologia política, porque ela foi
sepultada junto com a aproximação dos movimentos sociais com o Estado; e o que
é revolução hoje, ou seja, que tipo de mudança social queremos.
Esses aspectos são importantes porque o Estado brasileiro,
desde seu surgimento, nunca foi reconstruído; ele vive de reformas e está
sempre reformando a educação, a saúde. Basta ver que até hoje o país está
reformando o Estado da ditadura militar. E nós, intelectuais, não paramos para
provocar, no cenário político, uma discussão. Já vimos que não há como fazer
alianças com este Estado, mesmo estando no poder um ex-sindicalista, porque
seremos sempre engolidos.
IHU On-Line – Mas como fugir dessa negociação, se o Estado é
constituído pelas oligarquias?
Nadir Lara Junior – Saber disso já é alguma coisa. Foucault
fala do saber e do poder. Saber que precisamos colocar na pauta a mudança do
Estado já é uma transformação imensa. Mas hoje ninguém quer saber disso. Está
todo mundo fascinado com o Estado, porque a economia brasileira está estável,
todos querem aumento salarial, e todo mundo está satisfeito com essa “coisa”
que o Brasil vive – e eu digo “coisa”, porque não sabemos descrever isso.
Estamos fascinados e não paramos para avaliar o Estado.
Entra campanha, sai campanha, todos os políticos falam de
reformar a saúde, a educação, a moradia e a segurança. Se os políticos
resolvessem esses quatro problemas, não teriam o que dizer nas campanhas
políticas, porque só falam disso. Não se fala em aperfeiçoamento de saúde,
educação, mas do primário. Quer dizer, fala-se de as pessoas terem um teto para
morar, de as crianças terem banheiros nas escolas, e do mais elementar: do fato
de que essas oligarquias continuam com as mesmas políticas há séculos. O nosso
grande desafio é saber disso, diante de uma sociedade que insiste em não querer
saber.
IHU On-Line – O que distingue o discurso dos movimentos sociais
brasileiros hoje de uma década atrás?
Nadir Lara Junior – A partir da minha pesquisa, posso dizer
que os movimentos sociais abandonaram o discurso religioso, utópico,
marxista-cristão e assumiram o discurso pragmático-capitalista neoliberal.
Então, o discurso da maioria dos militantes é praticar uma política pragmática,
embora muitas vezes eles nem se deem conta disso. Alguns intelectuais dizem que
o pragmatismo é necessário. Concordo, desde que se saiba o que se está
reproduzindo com ele. Quando se assume, nesse contexto específico, um discurso
neoliberal, está-se depondo contra esse processo histórico de formação dos
movimentos e favorecendo as oligarquias, o Estado capitalista e o mundo
desigual.
IHU On-Line – Essa é uma tendência crescente no mundo do trabalho.
Nadir Lara Junior – Sim, porque retiramos do mundo do
trabalho as discussões ideológicas que nos unem e nos afastam: quem é esse
Estado? Quem é nosso patrão? Quem é esse governo? A geração atual está pegando
o mundo que a geração anterior deixou: muitos que eram de esquerda hoje estão
abraçados com os de direita. Como os jovens irão acreditar nesse modelo? Diante
de tal conjuntura novas manifestações estão surgindo. As pessoas estão falando
e criticando o sistema de outro jeito, usando as redes sociais. Existem novas
formas de pensar e que são embrionárias.
IHU On-Line – Como ocorre a relação entre política e religião no
cenário político atual? Nesse sentido, como vê a atuação da bancada “religiosa”
no cenário político brasileiro?
Nadir Lara Junior – O boom do movimento neopentecostal
chegou aos movimentos sociais e nas políticas públicas. Como eles chegam a
estes lugares? Com um arcabouço político, ideológico, religioso de sua matriz
neopentecostal, que é extremamente pragmática. O neopentecostalismo nasce com
uma experiência da periferia dos EUA, e o governo estadunidense se apropria
disso, fazendo um canal para divulgar as ideologias neoliberais com seus
elementos: individualismo e pragmatismo. Essa combinação ideológica de
neoliberalismo e neopentecostalismo entra no movimento social e torna tudo
muito pragmático. O evangélico participa do movimento social, porém não quer
discutir questões mais amplas relacionadas à política, mas sim o acesso a casa,
a universidade etc.
Bancada religiosa
Há poucos dias li a tese de doutorado de Bruna Dantas sobre
a bancada evangélica no Congresso. Ela analisa a ideologia da bancada
evangélica, hoje, e mostra como os evangélicos se estruturam para pautar
algumas políticas dentro do cenário nacional baseados em ideias religiosas. Por
isso que uma série de temas com implicações morais não são aprovadas, como a
questão do aborto e a da homossexualidade.
Muitos votos começam a ser direcionados aos pastores das
igrejas. Começamos a remontar um novo tipo de voto de cabresto, como tinha
antigamente no interior do Brasil. Mas como disse, não podemos culpá-los nem
praguejá-los, porque estão exercendo tudo aquilo que o Estado lhes permite
fazer. Da mesma forma que os evangélicos defendem questões morais, os
ruralistas defendem pautas de seus interesses. Só os trabalhadores não se
organizam para se fazer representar.
IHU On-Line – São os membros evangélicos, e não as igrejas, que se
relacionam com os movimentos sociais? A atuação é diferente daquela do
catolicismo?
Nadir Lara Junior – É diferente. O pastor vai aos encontros
do movimento para rezar, dar um apoio, mas ele não representa o apoio da igreja
ao movimento. A igreja apoia o seu fiel para que ele consiga algo pontualmente.
IHU On-Line – A influência evangélica cresce em diversos movimentos
sociais?
Nadir Lara Junior – Sim. O MST há muito tempo tem uma
influência evangélica; os movimentos de moradia de São Paulo também. Da mesma
forma, os evangélicos se aproximam dos movimentos LGBT, nos cultos específicos.
IHU On-Line – Como vê a representatividade das igrejas tradicionais
junto dos movimentos sociais?
Nadir Lara Junior – A Igreja enquanto instituição se retira
dessa discussão, mas isso não quer dizer que padres, freiras e religiosos façam
o mesmo. Ainda há um grupo importante de padres e religiosos que dão suporte a
esses movimentos. Tenho um colega antropólogo que estuda a relação das freiras
nas favelas do Rio de Janeiro e a liderança que elas ainda exercem nesses
locais. Isso demonstra que têm muitos religiosos resistindo, especialmente no
interior e nas áreas de fronteiras. A Igreja Católica e as protestantes
históricas ainda são referência nessas questões enquanto congregações.
IHU On-Line – Quais os limites da interferência religiosa no cenário
político? Como fica a discussão acerca do Estado laico no Brasil?
Nadir Lara Junior – Nós temos de entender o Brasil. Somos um
Estado laico com 92% de pessoas que se declaram religiosas, cujo lema nas
cédulas de dinheiro é “Deus seja louvado”. Então, temos uma realidade própria e
só sabemos fazer política se tivermos os atravessamentos religiosos. Não quero
ser reducionista e dizer que a política é de um jeito ou de outro, mas temos de
considerar as questões que estão postas. O Brasil é um país complexo, porque na
Europa, se observarmos os teóricos políticos, há uma ideia de que as coisas são
mais divididas, disciplinadas, organizadas. Foucault mostra como o
disciplinamento na Europa aconteceu muito cedo, só que nós vivemos em um país
em que o ordenamento social é outro: as pessoas pensam e se relacionam de outro
jeito, e a política ainda é muito embrionária, porque o país saiu de uma
ditadura há pouco tempo. Tudo no Brasil é muito próprio e característico. Não
sou um defensor da religião, mas temos de olhar para ela, porque exerce
influência.
IHU On-Line – Como o senhor vê o uso do espaço público, como a
televisão, pelas religiões?
Nadir Lara Junior – Vivemos num Estado democrático capitalista.
O que isso significa? Significa que quem paga tem, e quem não paga não tem;
quem tem dinheiro faz o que quer, e quem não tem dinheiro não faz nada. Os
evangélicos neopentecostais entenderam muito bem essa linguagem. Eles pagam
para ter acesso a determinados horários na televisão, no rádio. E dentro de uma
sociedade capitalista, quem vai regular isso?
Em um país em que há liberdade religiosa, como dizer que
eles estão errados e que não podem utilizar esse espaço? Tem de cuidar para que
não se crie uma guerra religiosa. Por isso não podemos ficar restritos a essa
questão, temos de ampliar o debate, discutir se esse Estado está funcionando
para todos. O capitalismo e o neoliberalismo que estamos implantando a cada dia
na universidade, na escola, estão formando que tipo de sujeito?
De acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS, a doença
do século XXI são as doenças mentais. Temos visto pelas notícias da imprensa
que quanto mais capitalistas são os Estados, mais psicopatas eles formam. E aí
eu pergunto: Como vamos formar uma geração sem valores, sem escrúpulo? Nesse
sentido, Marx ajuda a compreender algumas coisas a partir da realidade
histórica, material. O capitalismo cria ideologias para que se considere um
psicopata como algo normal, natural, parte da história, da mesma forma que ser
oprimido pelo patrão é natural, e o importante é consumir. Vivemos a base de
ideologias desse tipo, que nos fazem viver num engodo praticamente
irreversível.
IHU On-Line – A religião determina o voto? Como explicar ascensão de
candidatos evangélicos, como Celso Russomanno em São Paulo?
Nadir Lara Junior – O ministro José Eduardo Cardozo já disse
que é preciso fazer uma reforma política, mas não se pode tocar em questões
religiosas. Isso diz alguma coisa. O candidato à prefeitura de São Paulo, Celso
Russomanno, é abertamente um candidato da Igreja Universal do Reino de Deus.
Uma igreja que está fazendo aquilo que sempre quis fazer e se propôs a fazer:
formar lideranças políticas e chegar ao mais alto dos cargos possíveis. Eles
estão fazendo isso com muita competência, com muito dinheiro, e estão chegando
lá.
Gostaria de destacar que não sou contra ou a favor dos
evangélicos; apenas estudo o fenômeno político. A sociedade democrática é feita
por disputas, e elas são vencidas por quem está melhor organizado. Por que os
movimentos sociais estão pagando seu preço? Porque eles se retiraram das
periferias mais pobres, se retiraram dos debates mais prementes, negaram as
origens políticas que os colocaram no poder.
Adversário político
Os que se opõem aos evangélicos não devem percebê-los como
um inimigo a ser destruído, mas como um adversário. É legítimo se opor a eles
no cenário político, debater, porque eles sempre disseram de onde vêm, o que
fazem e o que vão fazer. O Edir Macedo nunca negou que queria chegar à
presidência da República. Eles nunca deixaram de cobrar dízimo; foram sempre
explícitos. O que quero relativizar nesse sentido é que esses fatos são
públicos, e todo mundo sabe. O que não é público é o nome do político que rouba
a merenda escolar. Quero colocar o debate na instância política. Então, não
adianta os candidatos laicos criticarem os candidatos religiosos, ainda mais
num momento em que o Estado laico está mostrando uma dimensão de desonestidade
política muito assustadora. Quando você debate com um candidato assim, não sabe
se ele é de esquerda, de direita, de centro, se ele está agradando você porque
ele quer seu voto ou porque quer lhe ludibriar. Então, essa diluição da
fronteira política no Estado laico faz com que os candidatos religiosos
cresçam, porque eles não omitem a sua ideologia – isso não quer dizer que eu
concorde com ela.
IHU On-Line – Diante da atuação política dos evangélicos, o que podemos
esperar para as próximas eleições municipais? Uma ascensão de políticos
religiosos?
Nadir Lara Junior – Sim, e o Russomanno, em São Paulo, é a
prova cabal disso. Este candidato está derrotando – a princípio, as pesquisas
mostram isso – candidatos tradicionalíssimos, como José Serra, e está
desbancando inclusive o candidato do PT, mesmo com o apoio de Lula e de toda a
máquina governamental. Isso quer dizer alguma coisa. O que isso quer dizer? Que
o Russomanno, em nenhum momento, nega sua filiação à Igreja Universal, e isso
mostra uma honestidade política – não quer dizer que eu concorde com isso. Ele
nunca disse que deixará de defender os valores da bancada evangélica. Então o
povo começa a perceber que entre ele e os outros, há ainda um princípio de
honestidade que falta nos demais políticos.
IHU On-Line – Quais as relações entre religião e política no cotidiano?
Como essa relação, de um lado, emancipa os cidadãos e, de outro, aliena?
Nadir Lara Junior – O nosso cotidiano está recheado de
questões religiosas. Há algum problema nisso? Não, depende do uso que se faz
disso. A nossa religiosidade está sendo leiloada pelo marketing, pelo governo,
ou por pessoas que já entenderam que essa pré-disposição religiosa rende lucro
ou voto. Esse é o grande problema. Com esse recuo da formação política nas
bases, a propensão da religião alienar aumenta muito, e há um cenário muito
fértil para que religião seja tomada como ópio do povo. Estamos diante de um
problema gravíssimo que precisa ser pensado.
Fonte: Ihu
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