As redes de exploração sexual e de tráfico de seres humanos tendem a se organizar para recrutar mulheres, crianças e adolescentes para uma demanda que certamente crescerá com a vinda de mais de meio milhão de turistas, pelas estimativas do Ministério do Turismo.
Quando a Copa de 2014 chegar, o Brasil terá provado ao mundo
ser capaz de erguer uma dezena de odes de concreto ao esporte que o notabilizou
como país do futebol. Terá estádios monumentais, mais aeroportos, metrôs e
avenidas. Vai dispor para isso de R$ 27 bilhões, o equivalente a metade da
economia de um ano inteiro de um país como o Paraguai, ou o Bahrein. Mas a Copa
não é para todos. Uma parcela dos brasileiros já saiu perdendo, a começar pelas
170 mil pessoas ameaçadas de perder suas casas para dar lugar às obras. Há
também os que ainda vão perder com a Copa, mas não sabem, e, ao contrário,
pensarão estar tirando alguma vantagem.
O Brasil espera um grande movimento financeiro durante a
Copa e, antes disso, com as obras de infraestrutura nas 12 cidades-sedes. Mas
há uma ameaça por trás de tanta euforia: a concentração de operários nas obras,
a grande movimentação de pessoas nos jogos e a circulação de dinheiro
representam um risco maior às crianças em situação de vulnerabilidade social.
As redes de exploração sexual e de tráfico de seres humanos tendem a se
organizar para recrutar mulheres, crianças e adolescentes para uma demanda que
certamente crescerá com a vinda de mais de meio milhão de turistas, pelas
estimativas do Ministério do Turismo.
Mais vulneráveis
Quem mais vai perder é uma infância já maltratada, que
ficará sem Copa e sem direitos. As condições estão postas desde há muito.
Durante 45 dias, a equipe da Gazeta do Povo percorreu 10.500 km pela costa
brasileira, passando por Rio de Janeiro, Recife, Natal, Salvador e Fortaleza,
as cinco cidades-sede da Copa onde crianças e adolescentes estão mais
vulneráveis ao turismo sexual, um simulacro do turismo convencional que melhor
se qualificaria como turismo predatório, pelo pouco que deixa e o muito que
leva. O sexo turismo existe, ainda que governos e parte do setor turístico não
o reconheçam.
Neste cenário de sol e mar se cruzam dois personagens da
exploração sexual no turismo, numa relação desigual entre quem tem poder
econômico e quem busca a sobrevivência ou uma melhor colocação socioeconômica.
De um lado, o turista à procura de aventuras eróticas em lugares onde possa
transgredir os padrões morais livre de hostilização e sem se submeter ao
escrutínio da consciência; de outro, crianças saídas de um cenário social
caótico, submetidas à miséria, ao alcoolismo, às agressões físicas e ao abuso
sexual, ou, ainda, jovens de classe média atrás de recursos para melhorar o
padrão de consumo.
O pornoturismo segue uma lógica de mercado. Existe porque há
demanda, e o Brasil é um destino barato para quem chega de países com moeda
mais valorizada do que o real. O predador sexual usa a mesma infraestrutura de
outros turistas e, em geral, a atividade depende da cumplicidade por ação
direta ou omissão de guias e agências de viagens, hotéis, bares, restaurantes,
barracas de praia, garçons, porteiros, caminhoneiros, taxistas, prostíbulos,
casas de massagem. E enquanto houver o turismo sexual, a possibilidade de ele
atrair crianças e adolescentes sempre existirá. Cada cidade tem seus pontos
propícios para o sexo proibido com menores de idade.
No Rio, um bar sofisticado de Copacabana atende aos turistas
que buscam sexo. Em maio, a Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (Decav)
recolheu dali quatro meninas de 16 e 17 anos, duas com documentos falsos. A
Decav indiciou três turistas dos Estados Unidos e quatro agenciadores
brasileiros por exploração sexual. Nem isso fez cair o movimento de
estrangeiros atrás de sexo fácil. Também é grande no local o fluxo de carros de
luxo que buscam garotas de programa para levá-las às saunas, hotéis e
condomínios onde os turistas as aguardam.
As garotas assediam os turistas e propõem diversos lugares
para o programa. “Pode ser ali na escada, amor, ali na escada, no carro ou no
motel”, diz uma. “Na beira da praia?”, exclama o repórter. “Não. Aqui, ó, na
calçada, no calçadão”, diz apontando para uma escada de acesso ao subsolo de um
quiosque. “No hotel tem que pagar 80 reais, mais o programa. Ali não, amor, ali
é tranquilo”, assegura. O sexo ao ar livre também é oferecido na Barra da
Tijuca, bairro nobre para onde a prostituição está migrando. Ali, uma travesti
adolescente propôs o programa entre os latões de lixo atrás de um quiosque
fechado, ao lado do calçadão.
Praia e sexo
Em Fortaleza, um conjunto de bares anima as noites nos
arredores da Praia de Iracema, a mais badalada da cidade. “Ali é só para o
turismo sexual”, avisa um agente alternativo de turismo que aborda turistas no
calçadão. Ele sabe do que está falando. Ainda na rua dá para ver o balançar dos
corpos em movimentos insinuantes, ouvir os gritos alegres e uma música difusa e
barulhenta que entra pelos ouvidos. Corpos esguios, mal cobertos, transitam
entre os clientes. Pelas portas e janelas vazam nuvens de fumaça e os eflúvios
de álcool. São templos de prazer fácil e fugaz, onde se consegue horas felizes
com pouco dinheiro.
“São todas garotas de programa”, diz um dos taxistas que
aguardam à porta, apontando as duas boates, uma em cada esquina. As casas
simulam algum controle, mas nada que impeça a entrada de menores de idade. As
ruas em frente estão coalhadas de mulheres e adolescentes à espera de clientes
enquanto descansam e comem um cachorro-quente. O cenário se repete na Rua do
Salsa, em Natal, onde casas noturnas para turistas se confundem com bares que
se tornaram pontos de concentração de garotas de programa. Os turistas chegam
por indicação de guias de turismo, barraqueiros de praia, garçons, taxistas,
recepcionistas de hotéis.
Durante o dia, o
assédio aos turistas se dá na Praia de Ponta Negra, a mais badalada de Natal,
comum também nas praias do Meio e Rendinha. A relação das nativas com os
visitantes nem sempre acaba bem. Só o Conselho Tutelar Sul atende a 10 casos de
estrangeiros que brigam na Justiça pela guarda do filho que tiveram com
brasileiras. Em Salvador, o turismo sexual é frequente nas praias de Itapoã e
Barra, onde a reportagem entrevistou mãe e filha fazem programas com
estrangeiros.
Setor carece de
orçamento e política pública
O Brasil desconhece a dimensão da exploração sexual de
crianças e adolescentes porque não dispõe de estatísticas a respeito. “Não se
faz políticas públicas sem dados e sem orçamento”, avalia a advogada
especialista em direitos da infância Jalusa Silva de Arruda, da Universidade
Federal da Bahia. O país carece de ambos. O único estudo do gênero é de 2002.
Desde então, tateia-se em cifras ocultas, mascarando o problema com
subnotificações ao lançar o pouco que se registra no pacote das “violências
sexuais”.
Megaeventos como a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016
tendem a agravar essas discrepâncias devido à vinda dos pornoturistas
imiscuídos no grande fluxo de turistas. “Os casos de turismo sexual, quando
identificados, são enquadrados na categoria de violência sexual”, observa Tiana
Sento-Sé, representante no Brasil da ECPAT Internacional, organização que
trabalha em 20 países no enfrentamento da exploração sexual, da pornografia, do
turismo sexual e do tráfico de crianças e adolescentes.
“Os governos estão na
verdade investindo na exploração sexual, uma vez que trarão um grande número de
turistas sem investir em políticas públicas de prevenção”, analisa o presidente
do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte, o advogado
Marcos Dionísio Medeiros Caldas. O mais grave é que estados e municípios estão
ausentes das discussões, inertes nas ações e omissos em seus orçamentos,
constata o Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN).
Visão judicialista
Os governos resistem em admitir a existência do turismo
sexual porque isso mancha a reputação das cidades turísticas, o que se reflete
na falta de ações governamentais. Para o advogado Carlos Nicodemos, coordenador
do Projeto Legal, a visão judicialista sobre o tema leva à prevalência de um
sistema judiciário com viés criminalizador das vítimas. “Crianças e adolescentes
expostos ao turismo sexual são na verdade vítimas de estupro”, considera. A
origem do problema está na falta de ações de governo que sejam capazes de
protegê-las das redes de exploração.
Os exemplos de descaso governamental se espraiam pelo país.
No Rio de Janeiro, o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente
(Cedca) tem desde 2002 um plano de enfretamento à violência sexual. Mas só 15%
das ações saíram do papel, diz Nicodemos. Os 92 municípios do estado contam com
Conselhos Tutelares, mas sucateados.
Em Natal, os Conselhos Tutelares estão à míngua. Até julho,
a prefeitura não havia feito um repasse sequer no ano e o CT Leste sobrevivia
das sobras de 2011. A unidade enfrentou até uma ação de despejo porque o
município não havia pagado o aluguel. O repasse mensal de R$ 14,5 mil cobre
aluguel, combustível, água, luz, telefone material de expediente. (MK)
Falta controle em
hotéis e pousadas
Ainda no elevador do hotel 4 estrelas, na praia de Boa
Viagem, em Recife, o hóspede recém chegado lança a pergunta: “Onde ficam as
meninas?”. De pronto, o mensageiro, um solícito senhor de uns 70 anos, se
apressa para garantir bons préstimos. Dispunha de uma variedade de contatos, a
escolher. Combinam a conversa para logo mais no saguão, a fim de acertar os
detalhes. Tempo para ajustar a microcâmera, de modo a não perder os detalhes e
a naturalidade da negociação.
“Hoje, por ser sábado, tenho que ligar pras meninas pra ver
se elas estão em casa”, avisa o mensageiro no saguão. “Nesse prédio tem uma”,
diz saindo à porta para apontar à esquerda. Remexe a carteira em busca do papel
com o número anotado. “Agora, se for homem que atender, passa pra mim porque deve
ser parente. É porque não é prostituta, de cabaré. São meninas que moram com a
família, estudam, trabalham e saem com o hóspede se a gente chamar”, esclarece.
Liga do celular do hóspede. “Tudo bem minha filha? Olha, eu
tô com duas pessoas ilustres aqui no hotel, tão precisando de uma garotinha pra
fazer uma massagem”, diz. “Olha, aquela menina, será que ela tá em casa, a tua
amiga? Então vamos fazer o seguinte, eu vou passar o telefone pra ele. Eu já
falei pra ele o cachezinho de vocês. É gente da melhor qualidade”, diz. “Essas
duas, quando vêm, passam umas três horas, quatro horas, o tempo que vocês
aguentarem”. No hotel não haveria problema, ele iria garantir o acesso da
menina.
Sem documentos
Há sempre um discurso pronto e uma identidade para atestar a
maioridade, ainda que a aparência as desminta. O documento, em geral falso, é
mais para evitar aborrecimentos com a polícia do que para garantir a entrada no
hotel. Uma adolescente explica as facilidades para entrar no mesmo hotel em que
o mensageiro faz o agenciamento. “Sei onde é, já fiquei lá, não paga taxa não”,
afirma ao descrever o interior do estabelecimento. “Já fiquei lá uma semana com
um italiano”.
“A gente saía pra jantar, ele comprava coisas pra mim no
shopping. Quando foi embora, me deu 800 reais”, diz. O italiano tinha em torno
de 50 anos e até cogitou levá-la para a Itália. “Na época eu não tinha
documento”, revela. Disse que tinha perdido a identidade e assim teve a entrada
facilitada no hotel. Segundo ela, basta colocar uma roupa mais discreta, como
calça jeans e blusa pouco decotada. Por isso, sempre carrega numa sacola
algumas peças próprias para essas ocasiões.
As mesmas facilidades são encontradas em outros hotéis da
praia de Boa Viagem. Uma adolescente que afirma ter 19 anos, mas cuja aparência
revela não ter chegado aos 17, diz já ter frequentado hotéis aparentemente
rigorosos na exigência de documentos das acompanhantes. Dias antes da
entrevista, acompanhou um cliente a um hotel. “Pediram a identidade, eu disse
que eu me esqueci. Aí me deixaram entrar”.
Mesmos vícios
O dono de uma pousada na região central de Recife, um
alemão, faz um discurso moralista ao ser consultado sobre a eventual entrada de
uma garota de programa. Não sem razão. A pousada havia sido fechada anos antes
devido à presença de menores de idade nos quartos. Reabriu com outro nome, mas
com os mesmos vícios. O hóspede recebe uma chave da entrada, já que após as 22
horas ninguém permanece na portaria. Pode-se entrar e sair com quem quiser, sem
restrições. O mesmo acontece em pousadas onde a equipe da Gazeta do Povo se
hospedou em Natal e Salvador.
Loira ou morena?
Em Salvador, o recepcionista de um hotel atende aos hóspedes
que buscam sexo proibido. Após nove minutos de tentativa, conseguiu falar com
uma agenciadora. “Ela em si não faz programa. É aquela mulher que agencia as
meninas. Ela tem morena, tem loira, tem alta, tem baixa”, diz. E justifica os
R$ 200 cobrados pelo programa. “Pra entrar numa boate, o senhor paga quase R$
70, pra tirar a menina paga R$ 100 à boate e mais 250 pra menina. Essa menina
daqui não está em boate, ela vem aqui já, por isso cobra esse valor”, explica.
“Se quiser aguardar,
tem outra também”, avisa. “Essas meninas vêm e oferecem o telefone. Às vezes já
saíram dessas casas [boates], a gente pega e fica, e quando aparece alguém
querendo, a gente passa”, observa. O recepcionista também tranquiliza o hóspede
sobre a entrada. “Aqui, não vou cobrar nada de vocês. Até porque se eu fosse
cobrar, ia ficar caro pra vocês”.
Rave e Lua, mãe e filha, são garotas de programa e habituais
frequentadoras de hotéis em Salvador. “Em hotel, eles [turistas] pedem muitas
garotas. Se não conseguir no próprio hotel, eles vêm à Barra e conseguem por
conta própria, chegam lá pagam a hospedagem da garota. Mas se for indicado,
eles dão uma gorjetazinha e tudo certo”, explica Rave. Foi assim que Lua, aos
17 anos, ficou uma semana num hotel de luxo com um prefeito do interior da
Bahia. “Se ele é o homem do pacote, vai ter problema? Não vai ter problema
nenhum”, observa Rave.
Entrada livre
Entrar com adolescente num hotel de Fortaleza não é tão
difícil como deveria. “Tive um cliente da Itália, tava hospedado num hotel na
beira-mar, um hotel cinco estrelas. Passei três meses com ele. Eu ia pro hotel
uma vez na semana, duas vezes na semana. Ele comprou minha roupa completa de
mulher. E me deu mil reais”, diz Leonardo, michê de 18 anos, à época com 16.
“Era mais procurado por turista, tinha mais cliente estrangeiro do que daqui”,
conta. Ele passava a semana nas ruas do bairro onde mora, na periferia, e no
fim de semana fazia ponto na Praia de Iracema.
A três quadras da praia mais famosa de Fortaleza, na Rua
Joaquim Alves, garotas de programa assediam os hóspedes no saguão de um hotel
de padrão médio. “Eu posso subir no quarto, os meninos me conhecem”,
tranquiliza o turista. “Eu fico por aqui (no saguão), ou então quando alguém
quer, eles me ligam, porque eles têm meu número”, diz. Costuma ficar no hotel
até as 22 horas, depois vai para uma boate frequentada por turistas, a duas
quadras da Praia de Iracema. “Um lugar de turismo sexual”, informou um dia
antes um guia informal que aborda os turistas no calçadão da Avenida Beira-Mar.
No Rio de Janeiro, as garotas de programa sugerem três
hotéis em Copacabana. Um deles já foi alvo de investigação da Delegacia da
Criança e Adolescente Vítima (Decav), mas continua a franquear a entrada de
menores de idade. Em Natal, houve um período em que o dono de uma pousada só
hospedava homens solteiros. “As famílias só davam problema e reclamavam quando
eles [os turistas] traziam garotas de programa”, explica. Foi assim que o
negócio prosperou, a quadra e meia da praia de Ponta Negra.
Pornoturistas são
operários em seus países
O pornoturista chega com olhar cobiçoso, sem antes mirar-se
no espelho da consciência. Suas razões estão fundadas numa lógica muito
particular, ao imaginar-se num paraíso de sexo fácil. O típico turista sexual
acorda por volta das 10 horas e vai à praia ciente de que lá encontrará garotas
disponíveis. No fim da tarde, volta com uma delas ao hotel, sai com ela para
jantar por volta das 20 ou 21 horas e dali emenda a noitada. Os que não
encontram companhia já sabem os lugares onde encontrá-las à noite. Seja Rio de
Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza ou Natal, cada cidade tem seus pontos
propícios para o pornoturista.
A maioria dos pornoturistas vem da Itália, Alemanha, Espanha
e Estados Unidos. São, em geral, homens com idades entre 30 e 50 anos, de classe
operária ou média baixa, que aproveitam as férias para uma temporada de orgia a
baixo custo. Já não é comum os voos charter lotados com esses turistas, mas
ainda há disponíveis em alguns países da Europa pacotes que incluem a promessa
de uma garota de programa à disposição no Brasil.
O tempo de umas férias não permite ao estrangeiro itinerante
ter relações prolongadas, daí a opção por uma relação profissionalizada.
Jactam-se de um status de importância, embora não tenham perfil para tanto.
São, em geral, operários em seus países. “É o tipo de pessoa que junta 3 mil
euros o ano todo pra passar uma semana aqui. Traz 3 mil euros e, multiplicado
por duas vezes e meia (diferença do câmbio com o real), vai estar por baixo com
7 mil reais pra gastar em uma semana. “Quer dizer, tem mil reais para gastar
por dia. Dá uma pinta de rico”, diz um taxista habituado a transportar turistas
do gênero em Fortaleza.
Fonte: Gazeta do Povo
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