O amor não é algo que possamos produzir, provocar ou instituir. Acontece para além de nós, antes de nós, sem nosso concurso e mesmo apesar de nós. E tudo transforma: nossa maneira de ver o mundo, de perceber as coisas e as pessoas, de conhecer.
Maria Clara L. Bingemer
Com a proximidade do Dia dos Namorados, é irresistível a
tentação de falar sobre o amor. Tema tão eterno quanto desgastado; tão
desafiante quanto banalizado; tão indispensável quanto tantas vezes sentido
como supérfluo.
No entanto, o amor, mais que qualquer outra palavra ou
conceito, sempre está de volta. E o que
o faz tão fascinante e capaz de atrair nossa atenção é o fato de que sempre nos
escapa. Não conseguimos circunscrevê-lo
nem tampouco esgotá-lo, cerceá-lo em uma definição qualquer. E isso porque o
amor é maior do que nós.
A tal ponto isto é verdade que, quando ama, o “eu”, ao querer
estar consigo, tem que estar onde o outro bem amado está. Está totalmente descentrado. E neste momento não são apenas seus sentidos,
ou sua razão que o ajudam. O “eu” se
sente totalmente desamparado, justamente porque percebe que nem os sentidos nem
a razão o ajudam.
Pensar ou sentir sensorialmente não o ajudam mais nem lhe
dão segurança sobre si mesmo. Ao invés,
para sentir-se vivo, humano, pleno, o “eu” necessita não exercitar sua
capacidade de pensar, mas sentir-se pensado por outro. E também querido, amado por outro. A partir do momento em que experimenta essa
alteridade que o constitui como pessoa, percebe-se total e radicalmente
modificado em sua percepção do mundo inteiro, de si mesmo e da vida em geral.
Até então autônomo (ou seja, dono de si mesmo), o “eu “passa
a ser heterônomo (ou seja, perdido a si mesmo, regido e guiado e determinado
pelo outro. É então que os parâmetros se rompem: o da igualdade, o da
simetria. A lógica da troca, dos direitos
e deveres está estilhaçada, pois o amor tem o poder de inaugurar outra lógica:
a lógica da graça e da gratuidade. É, em
suma, a lógica do dom.
É apenas quando entra nesta lógica que o ser humano
aproxima-se do ponto a partir do qual poderá ser digno deste nome. Pois, enquanto o que impera é a lógica da
troca, do mérito, dos sentidos despertos, ainda não se entrou naquilo que traz
o selo da originalidade e que faz a criatura humana imagem e semelhança do
Criador.
Pois, o que distingue o Criador senão o fato de que amou
primeiro? Quem é Deus senão Aquele que
decidiu amar sem razão e em primeiro lugar, antes de qualquer sinal do bem
amado de que responderia ou corresponderia a seu infinito amor? Deus ama aquilo
que ainda não existe. E o amor cria, faz
do nada vida, faz existir. Assim também
pelo amor o ser humano de certa forma “cria”, traz o outro à existência. A mais insignificante das criaturas é
infinitamente valiosa e única aos olhos do amante, que a faz existir como bem
amada, querida e desejada.
Entrar nesta lógica de desequilíbrio e gratuidade é uma
ousada aventura. Porém, é a única coisa
que nos faz verdadeiramente humanos.
Pois, só aí estaremos refletindo, como um espelho, o Amor infinito que
nos amou primeiro e que nos fez existir.
Porque existimos, podemos amar, desde que consintamos em entrar na
lógica inenarrável e fascinante do amor.
O namoro pode ser, portanto, poderoso e fecundo aprendizado
para o verdadeiro amor. Se souber resguardar-se da “liquefação“ viscosa que
infecta todas as relações hoje em dia, poderá ser um sadio e amplo laboratório
para o exercício do dom, da gratuidade, da entrega, do perdão, do serviço e de
todas as formas que a humanidade inventou ao longo de sua história.
Pois, o maior dom é o próprio amor. E quando este dom acontece, doador e receptor
passam a segundo plano. Só fica,
resplandecente, o próprio amor que a cada minuto se reinventa e por isso
reafirma em alto e bom som que a vida tem a última palavra.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento
de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'A argila e o Espírito — Ensaios sobre
ética, mística e poética' (Ed. Garamond), entre outros livros.
Fonte: Jornal do Brasil
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