Capital, onde na última semana
foram denunciados dois suspeitos, tem aumento de 20% nesse tipo de crime no
mês. Polícia cita dificuldade de apuração como obstáculo.
A oportunidade em que a vítima
está vulnerável é o trunfo do criminoso, e a falta de testemunhas se torna um
grande desafio de investigação para as autoridades. Sucessivos casos de estupro
em Belo Horizonte chamam a atenção para esse tipo de crime que, diante da
dificuldade de provas, muitas vezes tem de mais concreto a dor da vítima de
violência sexual, submetida a um silêncio agonizante.
Embora estatísticas da Secretaria
de Estado de Segurança Pública (Sesp) mostrem estabilidade nos últimos dois
anos no estado, a capital enfrenta pico desse tipo de ocorrência nos últimos 30
dias, de acordo com a Polícia Civil. Em meio ao avanço, especialistas advertem:
a questão é complexa e não há causa específica. Doença, cultura do machismo e
naturalização de algo grave estão entre as chagas de uma sociedade que ainda
tem muito a debater sobre o problema.
Em todo o estado, foram 3.926
casos de estupro no ano passado, ligeira queda em relação ao ano anterior
(-1,1%), quando houve 3.971. Os dados informados pela Sesp fazem parte da
consolidação dos números de crimes violentos registrados em 2016. Em BH,
ocorreu um aumento dos crimes, que passaram de 550 para 568, no comparativo de
2015 com 2016 (+3,2%). Casos recentes na cidade voltaram a acender o alerta
sobre a questão: na quinta-feira passada, foi preso um homem suspeito de ter
feito pelo menos três vítimas – duas estudantes de 14 e 17 anos e uma mulher de
41 anos – nos últimos 50 dias na Região da Pampulha. Na madrugada de
segunda-feira, uma jovem de 23 anos acusou um segurança de uma boate no Bairro
Santa Terezinha, também na Pampulha, de tê-la estuprado quando saía da casa
noturna. O homem, de 26 anos, foi detido em flagrante.
A titular da Delegacia de
Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (Demid), Camila
Miller, informa que este mês houve aumento de cerca de 20% nos casos de estupro
em BH. “Nos últimos 30 dias estão chegando mais ocorrências e aparecendo mais
na mídia, mas nada que vá impactar as estatísticas. Há períodos com mais casos
e outros com menos”, afirma. A delegada acrescenta que a redução dos números é
dificultada pelas próprias características da investigação. “É um crime muito
difícil de se apurar, pois o autor o comete às escondidas. Se o homem é
conhecido da vítima, temos um elemento. Mas, quando a mulher é abordada no meio
da rua, muitas vezes é impedida até de olhar para o rosto dele. Quando a vítima
não tem muitos dados e não há outros rastros, é complicado”, afirma.
Camila Miller ressalta que é
imprescindível que as vítimas compareçam à delegacia para prestar depoimento e
mudar o quadro de subnotificação dos crimes sexuais. “Muitas ficam com vergonha
e não querem reviver o momento. Algumas vezes, só aparecem depois de ser
encorajadas por algo semelhante que ocorre com alguém. É importante estarem
seguras para vir. Aqui, serão atendidas por mulheres”, explica.
VÍTIMAS DO SILÊNCIO
Criminalista e mestre em ciências
sociais, o advogado Warley Belo destaca que a subnotificação sofre influência
do chamado “escândalo processual”: as vítimas preferem o silêncio a levar o
caso à polícia e à Justiça e torná-lo público. “O crime de estupro é
condicionado à representação. A vítima violentada sexualmente precisa dar
autorização para o início do processo e, muitas vezes, opta pela impunidade,
para não ter o fato divulgado na sociedade”, explica. A abertura de inquérito
só é automática em caso de estupro de menor de idade e de pessoas consideradas
vulneráveis.
Segundo Warley, integrante da
Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB/MG), publicações indicam
que, na maioria dos casos, os autores são conhecidos das vítimas. “O fato de
haver uma Delegacia de Mulheres incentiva as denúncias, pois elas sabem que
chegarão lá e serão recebidas e atendidas por uma mulher”, diz. Outro fato a
que ele atribui o aumento dos casos de estupro é a própria lei.
Modificada em 2009, a redação do
artigo 213 do Código Penal, que trata do assunto, ampliou o universo do que é considerado
estupro. “Abarca desde um beijo mais agressivo, uma passada de mão, uma
encostada abusiva no ônibus ou metrô até a conjunção carnal propriamente dita.
No carnaval, por exemplo, quando muitas mulheres são pegas à força para ser
beijadas, pode ser configurado estupro, que tem uma pena pesada, de 6 a 10 anos
de prisão”, diz. O advogado considera que as punições são desproporcionais. “O
que temos hoje é uma junção da violência no artigo 213, que desperta uma
crítica em relação ao excesso. Talvez em decorrência disso tenhamos números
mais altos”, explica.
MACHISMO
Coordenadora da casa Sempre Viva,
de acolhimento à mulher vítima de violência, a psicóloga Carolina Mesquita diz
que não se pode pensar em uma explicação única para um fenômeno que é recorrente,
mas que passa por uma questão cultural. “Se pensarmos que as mulheres por muito
tempo viviam sexualmente sendo violentadas pelos seus maridos, a perspectiva em
que eu trabalho me faz acreditar que uma das razões é a vivência de uma cultura
machista, segundo a qual o homem pode se apropriar do corpo de uma mulher,
ainda que ela não queira”, afirma.
“Podemos pensar numa doença
mental, mas não dá para fechar a questão só nela. Que doença é essa, que
tratamento haverá para alguém que se comporta dessa forma? Claro que não dá
para pensar em uma ideia de normalidade comportamental, mas será que um
namorado, um marido, um pai, uma pessoa que escolhe alguém na rua e a violenta
entende que há uma anormalidade nesse comportamento?”, questiona.
Para Carolina, há uma cultura
machista que determina que as mulheres tenham cuidado com a roupa que vestem,
com o local por onde circulam à noite, com o ponto de ônibus. “Há uma
naturalização tão grande em relação a como esse machismo está arraigado na
nossa cultura que nos acostumamos, como se fosse normal, a não andar à noite e
a não chegar em casa à noite sozinha, dependendo do lugar, a não ir de short ou
de vestido curto. Porque há uma história cultural e social de que as mulheres
são propriedades dos homens, ainda que não queiram, que se perpetua nos nossos
espaços cotidianos.”
O que diz a lei
Artigo 213 do Código Penal
Constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso: pena de 6 a 10 anos de prisão. Se
resultar em lesão corporal ou vítima for menor de 18 anos ou maior de 14: 8 a
12 anos. Se houver morte: 12 a 30 anos. (O atentado violento ao pudor, usado
até 2009 para caracterizar a violência contra os homens, foi retirado da
legislação, que agora admite que tanto mulheres quanto homens podem ser vítimas
de estupro.)
Violência em números
Ocorrências de estupro nos
últimos cinco anos
» Minas Gerais
2016 3.926
2015 3.971
2014 4.003
2013 4.112
2012 4.135
» Belo Horizonte
2016 568
2015 550
2014 567
2013 553
2012 648
Fonte: Estado de Minas
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