Duas vítimas da rede de tráfico
internacional de mulheres estudam em uma casa de acolhimento da ONG Projeto
Esperança, na Espanha, em abril passado. CARLOS ROSILLO
Carla, que hoje é agente social,
conta como conseguiu escapar da máfia que a forçava a trabalhar como prostituta
em Madri e Sevilla.
Carla levou uma semana para ser
informada de que não trabalharia como babá. Nem com idosos. Tampouco faria
faxinas, como lhe haviam dito. Não. Teria que se prostituir. Comunicaram isso
sem meias palavras. Intimidaram-na. Ameaçaram fazer mal à sua família. E ela
tinha motivos para acreditar. Muitos. Tinham, sob algum pretexto, retirado seu
passaporte brasileiro assim que aterrissou na Espanha, e ela agora estava num
país desconhecido, à mercê de pessoas que antes acreditava que iriam ajudá-la.
“Eu estava fazendo faculdade, fiquei sem trabalho e uma amiga me ofereceu a
possibilidade de vir trabalhar no serviço doméstico durante seis meses para
juntar um pouco de dinheiro. Achei que seria um período duro, mas que
superaria. Quando cheguei, a realidade era bem diferente. Nunca acreditei que
isso poderia me acontecer. Eu achava que tudo aquilo que se contava sobre
mulheres enganadas era mentira”, diz, com o semblante carregado. Tinha 23 anos.
A brasileira ficou por algumas
semanas em um apartamento de Madri frequentado por homens que queriam sexo em
troca de dinheiro. Depois, em Portugal. Em Sevilha (também na Espanha). E de
volta à capital espanhola. Sempre em apartamentos, como muitas das mulheres
extracomunitárias sem documentos. Quanto mais afastado da vista pública,
melhor. “Não podia sair sozinha. Controlavam tudo. É o que as redes fazem até
te adestrarem. Até estarem seguros de que você não irá fugir. Você fica
aterrorizada”, frisa Carla (nome fictício, como todas as mulheres que falam
nessa reportagem para proteger sua identidade). Esteve nessa situação por mais
de um ano. “Vim com uma mala cheia de sonhos e caí em um buraco do qual não
acreditava que existisse saída”, diz alisando o rabo de cavalo que prende seus
cachos escuros. Ela encontrou.
Carla, uma mulher séria,
eloquente, com voz grave e que tem sotaque suave quando fala espanhol, hoje
ajuda outras mulheres a escaparem das máfias. É agente social na organização
especializada APRAMP e uma das mediadoras que ajudam a identificar as vítimas
dessa chaga e que as acompanham para que possam refazer suas vidas. “Somos
sobreviventes do tráfico sexual e contamos a elas que se nós conseguimos sair,
elas também conseguem”, diz. São 12 na equipe. Existem romenas, brasileiras,
paraguaias, nigerianas e dominicanas; as principais nacionalidades das mulheres
que chegam à Espanha para serem exploradas sexualmente, de acordo com os dados
das autoridades. Quando conseguem sair da rede criminosa que as trouxe começa
sua recuperação. E o processo, conta Carla, é duríssimo. “É preciso recuperar
hábitos perdidos. É preciso voltar a aprender quase tudo, porque quando nos
trazem nos anulam completamente como pessoas, física, psicológica e
economicamente”, diz a mediadora.
Tempos depois de escapar da máfia
que a escravizou, quando estava preparada, Carla contou tudo a sua família. “É
parte do que sou agora. Não tenho vergonha”, diz. A brasileira lembra como se
fosse ontem o dia em que conseguiu fugir. O dia de seu “resgate”. Uma mediadora
da APRAMP, como ela é hoje, procurava indícios de que era uma vítima de tráfico
sexual e um dia falou com ela. “Ela me disse que eu poderia ter uma vida
diferente, que não precisaria estar ali. Recebi um número de telefone para emergências
ativo 24 horas e um dia, em que havia recebido uma tremenda surra e acreditava
que a próxima iria me matar, liguei para que me resgatassem. Não é fácil porque
você está ali por sete ou oito meses, deixa de acreditar em você mesma e nas
pessoas. E quando vê que aparece outra pessoa com promessas pensa que não irá
cumpri-las. Mas eu estava tão desesperada. Chegou um determinado momento de
minha vida em que eu havia esquecido meu nome, os motivos pelos que vim. Não
aguentava mais”, conta.
A APRAMP ativou seu dispositivo
de resgate e Carla foi levada a um apartamento protegido onde começou a terapia
psicológica e onde recebeu a oferta de apoio legal. Na Espanha, diz Rocío
Nieto, presidenta da organização que ajudou Carla, a assistência às vítimas de
tráfico sexual está majoritariamente nas mãos de organizações como a sua e o
Projeto Esperança, com apartamentos em 15 cidades aos quais chegam as mulheres
que estavam sob custódia das forças de segurança e onde recebem cuidados
médicos, aulas de espanhol, oficinas. Isso se forem identificadas como vítimas
de tráfico sexual, algo que nem sempre acontece. Essa falha no sistema permitiu
que mulheres nessa situação fossem detidas nas ruas e internadas nos CIE, como
denuncia uma investigação da Women’s Link Worldwide e como alertou a Defensoria
Pública. E que recebessem multas por “exibição obscena do corpo” por prostituírem-se
nas ruas.
Carla foi identificada como
vítima de tráfico sexual. Uma vez a salvo começou a fazer cursos para manter-se
ocupada e ter uma formação para conseguir trabalhar. Estudou para ser auxiliar
de geriatria e cuidou por um tempo de uma idosa que hoje considera como parte
de sua família. Quando teve condições, começou a formação como agente social
para se tornar mediadora.
Enquanto a brasileira conta sua
história na sede de Madri, em um dos bairros com mais prostituição de rua, sete
sobreviventes fazem um exercício de relaxamento no quarto ao lado. Em outra
salinha, três jovens nigerianas com o cabelo penteado em dezenas de coques
feitos com trancinhas, pintam um desenho. Na entrada, outras costuram vários
vestidos em um dos cursos que a organização – que colabora com empresas como a
Reale e com associações de costureiras e confecções – iniciou. Carla ajusta o
colete, olha seu telefone e sai do local. Poucos metros depois começa a falar
com as mulheres que esperam por clientes na rua. Cumprimenta cada uma. Entrega
seu cartão a duas delas e segue seu caminho. Espera que alguma delas ligue,
como ela o fez. E que voltem a viver.
Fonte: El Pais
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