Olhe para o lado.
Talvez você não saiba, mas se
mais de três mulheres estiverem no mesmo local que você, pelo menos uma delas
já foi vítima de algum tipo de violência durante a vida. E você não sabe disso
por um motivo simples: de acordo com uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão,
só 35% das vítimas denunciam o agressor à polícia e falam sobre o assunto.
Quando falamos de estupro e violência sexual, menos de 10% dos casos são
notificados.
Para mostrar que a violência
contra a mulher começa desde a infância e adolescência, separamos três relatos
de mulheres que foram abusadas sexualmente antes dos 18 anos. Elas escolheram
compartilhar sua história com o HuffPost Brasil -- que é também a de muitas
outras mulheres.
Patrícia D., de 28 anos
"Eu tinha 17 anos. Morava em
Peruíbe e fui até a academia entregar uma roupa de dança a uma amiga. Eu lembro
que não estava a fim, mas fui mesmo assim. Eu estava de bicicleta e, no meio do
caminho, um maníaco me abordou. Ele foi extremamente agressivo, veio para cima
de mim dizendo que era um assalto, que não era para eu gritar e que tinha mais
gente com ele. Depois, ele ordenou que eu subisse a rua. Ele tinha o dobro do
meu tamanho eu achei que ele fosse roubar a minha bicicleta. Fazia sentido
subir a rua para entregar a bicicleta para alguém, por exemplo. Ele dizia que
não ia me fazer mal, que era só eu entregar a minha bicicleta e pronto.
Assim que chegamos na esquina, eu
parei e entreguei tudo pra ele. Mas ele desconversou e disse que não era só um
assalto. Disse que eu tinha entrado numa "área reservada" e teria que
"prestar contas". E aí ele me conduziu até uma casa, me empurrou no
corredor e, num cômodo nos fundos, me violentou. Eu só pensava que não queria
sair de lá tetraplégica. Eu fiquei com muito medo. Ele tinha um volume no bolso
e dizia que estava armado. Eu queria sair com todas as vértebras no lugar e que
tudo o que acontecesse fosse rápido, que eu saísse andando e que se fosse pra
ele me matar que me matasse logo.
Depois, ele me fez ir até o fim
da rua, onde ameaçou a mim e minha família caso eu contasse algo, dizendo que
conhecia meu pai, minha mãe. Repetiu isso várias vezes. Eu realmente fiquei com
dúvidas sobre contar ou não. Ele tinha levado meu celular, tinha toda a minha
agenda de contatos. Depois, até na minha casa ele ligou para me ameaçar.
Eu procurei meu namorado assim
que eu pude. Fui de bicicleta rápido até a casa dele e, de lá, liguei para a
minha mãe e contei tudo que tinha acontecido. Ela me levou ao ginecologista,
que não quis me examinar e me mandou direto para a delegacia da mulher, mas
antes me deu a pílula do dia seguinte.
Na delegacia, eles me deram
poucas informações sobre o que eu deveria fazer. Não me explicaram nada.
Pediram que eu fosse ao IML (Instituto Médico Legal). É constrangedor, um exame
odioso. Mas ali, ao menos, me explicaram os procedimentos médicos. Tomei todos
os medicamentos que fazem parte do procedimento, mas a pílula do dia seguinte
perdeu o efeito comigo e, um tempo depois, descobri que estava grávida. Isso
aconteceu porque alguns dias antes de sofrer a violência eu tinha tido relações
sexuais com o meu namorado e a camisinha tinha estourado. Naquele momento, eu
optei por tomar a pílula. Com isso, a eficácia do remédio diminuiu.
Descobri que estava grávida dois
dias antes de prestar vestibular. A notícia foi de derrubar. Diante de toda a
situação, o que me foi dito no posto de saúde é que a medicação que eu tomei
poderia atrasar a minha menstruação, mesmo, que era para eu ficar tranquila.
Até que duas semanas depois, minha mãe tomou a iniciativa de comprar um teste
de gravidez. Eu fiz e deu positivo. Fiz o exame de sangue, então não tive mais
dúvidas: deu positivo. Minha mãe levou o exame até o posto de saúde, disse que
eu estava grávida, que gostaria de interromper a gestação e foi aí que fui
encaminhada para o Hospital Pérola Byington. Lá eu fui muito bem atendida.
Depois disso, fui descobrindo que pessoas da minha família também sofreram
violência sexual, mas que não falavam por medo de discriminação. Você ser
vítima de estupro gera uma vergonha sem tamanho. O tempo é uma benção para
superar.
Foi muita barra. Todo o processo
é uma segunda violência. A minha sorte é que eu pude sair de Peruíbe, estudar
em São Paulo e morar no bairro da Liberdade - com toda a licença poética que
isso tem -, e fugir de toda a opressão de uma cidade pequena. Eu estava
superando o trauma do estupro, eu ia para a escola era olhada de forma
atravessada, eu ia no mercado isso também acontecia. Sair de Peruíbe foi um
bálsamo para conseguir passar por cima disso.
A segunda violência que eu sofri
foi quando a juíza que estava julgando o caso só faltou me chamar de vagabunda.
Mesmo sabendo que ele já tinha feito outras vítimas, ela soltou ele alegando
que eu tinha "usado de sedução". Só agora, depois de dez anos é que
eu consegui comprovar que não foi nada disso. Até hoje eu convivo com a dúvida
se a gravidez era do meu namorado, com quem eu continuo até hoje, ou do que
aconteceu. Mas eu tenho pra mim que fiz a escolha certa."
Andreia M., 23 anos.
"Eu tinha oito anos, ainda
morava na Bahia e cursava a segunda série do ensino fundamental na época. Ele
era pai de uma amiga minha. Depois da aula, eu fui para a casa dela estudar
como fazíamos sempre. Ele trabalhava na escola que eu estudava, inclusive. E,
em um determinado momento do dia, ele disse que era para cada uma parar de
estudar e começar a ajudar a arrumar a casa. Ele pediu para eu estender a
roupa. Eu acabei ficando contra a parede, onde o varal ficava preso, para
estender a roupa, e foi quando ele veio e ficou se esfregando em mim enquanto
eu estava de costas. A penetração em si não aconteceu, mas o que ele fez comigo
durou mais ou menos cinco minutos. Eu fiquei imóvel. Não conseguia me mexer,
não conseguia pensar. Só me sentia muito estranha e muito mal porque eu sabia
que aquilo não era certo, mas eu não tinha força para reagir. Além de ele ficar
esfregando o pênis em mim, ele ficava fazendo sons como se estivesse fazendo
sexo comigo. Foi horrível.
Fiquei tão traumatizada com o que
aconteceu que eu tive a minha memória reprimida. Assim que ele saiu, a minha
mente bloqueou o que aconteceu. Eu não lembrava. Voltei pra casa, continuei a
minha vida normal, e foi quando eu tive um pesadelo e lembrei de tudo o que
aconteceu. Eu acordei, fui para a escola, e não parei de pensar um minuto no
sonho que eu tive. Quando eu cheguei em casa à noite, comecei a chorar
compulsivamente. Meu pai e minha irmã ficaram sem entender. Ele me perguntou o
que tinha acontecido. E, assim que eu contei, ele disse com certa rispidez:
“Como você não me contou isso antes?”. Mas eu entendi que era mais preocupação
do que qualquer outra coisa.
Meu pai ficou muito revoltado,
mas viu que não poderia fazer nada. Já a minha mãe, não agiu muito diferente. E
como eles são muito religiosos rolou aquele papo de “entregar para Deus, que,
de alguma forma ele seria punido”. É aquela velha história de que Deus é um
tirano e vai punir quem faz o mal. Eu não acredito muito nisso, sabe? Eles não
fizeram nada. Tentaram falar com ele, que disse que eu era uma mentirosa, e o
meu pai disse que eu não estava inventando, me defendeu. Mas denúncia, essas
coisas, não. Nada foi feito.
Hoje, quando eu vejo alguém falar
“ah, você tem que provar que sofreu abuso”, eu fico perplexa. Existem casos que
não tem como comprovar. Só quem já passou por isso é que sabe como é. Eu
passei. E eu não tive como provar. As pessoas pensam que ou você chega toda
“rasgada”, com a cara inchada, foi estuprada e tudo ou não aconteceu nada. Como
no meu caso não foi. Estava só eu e ele, como eu ia provar, sabe? A mesma coisa
que aconteceu comigo, acontece ainda hoje com muitas meninas e ninguém fica
sabendo."
Maria C., de 32 anos
"Aos 12 anos eu sofri uma
tentativa de estupro do meu avô. Eu nunca me senti 100% confortável quando ele
pedia para sentar no colo dele, mas, tentava sempre confiar que era um ato de
carinho, já que eu era neta dele. Isso acontecia com frequência e, para mim,
não existia maldade. Até o dia que ele não me deixou levantar, apertou o meu
corpo contra o dele e começou a passar a mão em mim enquanto minha avó não
estava. Mesmo assustada, eu contei imediatamente para minha mãe, que ficou
desorientada e sem saber direito o que fazer. Eu vivia a maior parte do tempo
na casa dos meus avós e quando aconteceu, fui induzida a não falar sobre o
assunto com ninguém e minha mãe não quis denunciar para a polícia. Nada foi
feito. Foi assustador.
Após um tempo, o meu
comportamento ficou diferente, mudou, principalmente com ele e a família
começou a perceber. Todo mundo sempre me questionava e eu me esquivava, fingia
que estava tudo bem. Meus tios cercavam a minha mãe o tempo todo para saber o
que estava acontecendo. Ela sempre negava que algo estava acontecendo, por não
querer expor uma situação desconfortável, mas acabou contando. Um deles duvidou
de mim e resolveu confrontar o meu avô, que confirmou o que aconteceu. A partir
desse momento, eu só quis esquecer tudo o que me aconteceu.
O assunto nunca mais foi tocado
em família e, de certa forma, sempre fui forçada a um certo convívio com ele.
Ninguém nunca tomou nenhuma atitude e me induziram a calar, guardar isso
sozinha, me senti extremamente culpada, mesmo com um cenário ao meu favor -- já
que ele assumiu o que tinha feito e eu deixei de ser a mentirosa da situação.
Mas, aos 12 anos, tudo isso é muito confuso. Eu ainda era uma menina, sabe?
Essas coisas são muito complicadas. Eu ainda acho que tive sorte que aconteceu
apenas uma vez. O tempo passou e as imagens vão e vêm. Tive muitos momentos de
depressão, hoje faço acompanhamento psiquiátrico e tomo remédios. Mas ainda me
incomodo quando vejo meus tios se referindo a ele como "o grande herói da
família".
Fonte: Brasil Post
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