A atitude de um grupo de
estudantes de uma universidade pública em Minas Gerais gerou polêmica. Eles
cantaram uma música que incentiva o estupro em um lugar onde havia outras
estudantes. Essa história aconteceu na mesma semana em que uma universitária
americana chamou a atenção pela forma como resolveu protestar contra um suposto
agressor sexual.
Belo Horizonte, sábado passado.
As amigas Luísa e Marcela estavam em um bar. “Foram chegando outros jovens
também e muitos deles identificados com a camisa da Bateria Engrenada da UFMG”,
conta Luísa Turbino, estudante da UFMG.
A bateria é um grupo musical
formado por estudantes de engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Esse tipo de grupo - ou charanga, como também é chamado - se apresenta em
festas da faculdade. Só que as músicas, naquela noite, chamaram a atenção.
“Eram músicas de conteúdo sexual
que denegriam as mulheres. Principalmente de outras universidades”, lembra
Marcela Linhares, analista internacional.
“Em determinado momento começou
um grupo menor, começou a cantar a frase: ‘Não é estupro, é sexo surpresa’”,
afirma Luísa.
“Eu fiquei muito chocada, muito
triste, que as pessoas pudessem considerar aquilo uma brincadeira”, lamenta
Marcela.
“Nessa hora, a revolta bateu, a
gente já pediu a conta e foi embora do bar”, lembra o namorado de Luísa Daniel
Arantes Castro.
Ouvir aquela música foi tão
desconcertante que quando a Luísa chegou em casa, ela não conseguia pegar no
sono e decidiu: na madrugada mesmo, fez um protesto nas redes sociais. “Mais
triste ainda foi ver mulheres envolvidas na cantoria e mais ainda, perceber que
ninguém se sentiu incomodado”, diz Luísa ao ler o protesto.
Mas o incômodo se espalhou entre
os alunos depois da postagem de Luísa, que cursa o mestrado de Direito da UFMG.
Em nota, a Bateria Engrenada afirma ‘lamentar profundamente’ o episódio. Diz
que ‘não ignora o ocorrido e que está apurando’ o caso.
A universidade afirma que espera
mais informações para abrir um processo administrativo. “Nós esperamos que os
alunos, que supostamente estão envolvidos nesse episódio, nos apresentem um
relato do que de fato aconteceu”, afirma Sandra Goulart Almeida, vice-reitora
da UFMG.
O assunto estupro em
universidades também ganhou força nas últimas semanas nos Estados Unidos, como
mostra a repórter Renata Ceribelli.
Os casos de estupro e agressão
sexual dentro dos campus das universidades viraram assunto de Estado. O
Departamento de Educação dos Estados Unidos, a pedido do presidente Barack
Obama, está investigando 78 universidades suspeitas de ignorar denúncias feitas
por estudantes.
Uma delas virou símbolo dessa
luta, e estuda na Universidade Columbia, uma das mais importantes do país. Emma
diz que foi estuprada por um colega no quarto da universidade. Ela denunciou o
caso à direção, que considerou o estudante inocente. Para protestar, Emma agora
só anda pelo campus da universidade carregando o colchão onde teria acontecido
a agressão.
“Eu vou levar o colchão comigo
enquanto eu frequentar o mesmo campus que o meu estuprador”, conta a estudante.
Um relatório divulgado pelo
governo americano mostra que uma em cada cinco mulheres sofreu abuso sexual na
faculdade.
Depois da repercussão da história
de Emma na imprensa, a Columbia agora obriga os alunos ouvir palestras sobre
violência contra as mulheres. O brasileiro Guilherme, estudante de Direito,
participou de uma delas. “Não é só porque está em silêncio, um não, um não meio
assim, a menina está um pouco bêbada, significa que você pode fazer o que você
quiser. Então eles entraram bem a fundo, educação mesmo”, explica Guilherme de
Aguiar Franco, estudante.
Emma e outros estudantes montaram
um grupo para ajudar outras vítimas de violência no campus. Uma iniciativa que
também está acontecendo no Brasil, onde esses grupos são conhecidos como
‘coletivos’.
Um deles é o Coletivo Feminista
Gení, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a USP. “Como nunca
foi construída na faculdade essa cultura de acolhimento das vítimas, muitas
vítimas também não se sentiam à vontade para falar sobre uma violência que elas
tinham sofrido”, conta Ana Luísa Cunha, estudante de medicina da USP.
O grupo foi criado no final do
ano passado, a partir da denúncia feita por uma estudante. O abuso, segundo
ela, aconteceu em uma festa dentro da USP no em novembro de 2013. “Bebi
bastante. Eu não estava inconsciente. Eu estava consciente. E aí dois meninos
chegaram em mim e tentaram me convencer para ir no estacionamento com eles. E
eu falava, não quero. E ele falava: ‘Você quer sim, eu sei que você quer. Eu
sei que você gosta’”, lembra a jovem.
Ela diz que estava tonta por
causa da bebida e que não conseguiu resistir. “Eles me beijaram, enfiaram a mão
dentro da minha calça. Passavam a mão, tudo. Por dentro da roupa. E eu lembro
nitidamente na hora que eu estava gritando que não queria e um deles ficou
bravo, falou assim: ‘Para de gritar! Para de gritar!’”, conta.
A estudante escapou quando uma
colega apareceu. “Ela viu que estava estranho, veio ver o que aconteceu e me
chamou. Nisso que ela me chamou eu consegui sair”, afirma.
Quatro dias depois, ela foi
aconselhada por amigas e por um professor a fazer um boletim de ocorrência na
polícia. E, com ajuda do coletivo, a aluna levou o relato até a direção da
faculdade.
“A partir da pressão que a gente
fez, foi criada uma comissão para apurar questões de violência dentro da
faculdade, entre elas violência contra a mulher”, conta Marina Souza Pickman,
estudante de Medicina da USP.
Uma sindicância interna foi
aberta em junho deste ano, seis meses depois da denúncia. A investigação está
sob sigilo. Em nota, a Faculdade de Medicina da USP afirma que está ‘empenhada
em aprimorar seus mecanismos de prevenção de casos de violência’. Diz também
que ‘irá adotar punições disciplinares de acordo com o código de ética da USP’.
Fantástico: Eles têm culpa?
Vítima: Têm culpa.
Fantástico: E você se sente
culpada?
Vítima: Eu já me senti culpada.
Hoje eu não me sinto mais.
“Ninguém tem direito sobre o
corpo do outro. Não é? Quer dizer, as meninas podem beber até cair, porque elas
bebem ou porque os outros, algum outro fez com que ela bebesse, mas isso não
quer dizer que o corpo dela esteja a disposição de ninguém”, afirma Miriam
Abramovay, socióloga.
Não existem estatísticas sobre
agressões sexuais em universidades brasileiras. Mas os casos se repetem por
todo o país: Acre, Bahia, Espírito Santo, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Mato
Grosso do Sul, Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo. Agressões cometidas
pelos próprios estudantes e por pessoas de fora da universidade, que entram nos
campus por falta de segurança.
“A universidade é responsável
também. E ela tem que pensar estratégias de combate para todo tipo de
violência”, afirma a socióloga.
É a insegurança e a falta de
respeito às mulheres que os coletivos combatem em diversos estados. No Coletivo
Iara, da Universidade Federal do Paraná, alunas conseguiram fazer com que a
bateria do curso de Direito parasse de cantar músicas machistas na recepção aos
calouros.
“A partir do momento que a
bateria canta isso e isso gera um coro, isso também afeta diretamente as mulheres.
Só uma reiteração realmente da violência que ocorre na universidade”, diz
Barbara Cunha, estudante de Direito da UFPR.
Enquanto os autores do refrão
‘não é estupro, é sexo surpresa’ não são identificados e punidos, a Banda
Feminista da Universidade Federal de Minas Gerais dá a resposta: canta contra o
preconceito. “Eles me disseram algo que me deu tristeza, que estupro na verdade
é sexo surpresa. Dá uma olhada nisso, é de se indignar. Isso é cultura do
estupro e contra isso eu vou lutar. Fora machismo”, cantam as meninas da banda.
Fonte: Fantástico-Globo
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