Fui registrar ocorrência contra
ele. À agente, expliquei, constrangida: “Ele nunca me bateu. Mas me insulta
sempre, inclusive na frente da nossa filha”.
Por Patrícia Álvares
Duas amigas me perguntaram este
fim de semana como poderiam ajudar duas amigas delas que estão atualmente
vivendo um relacionamento abusivo. Pensei muito.
Uma delas está muito bem
informada. Sabe o que é abuso psicológico e compartilha textos sobre o tema,
mas não se reconhece nesta situação. A outra desconhece totalmente que a
violência não é apenas física. Que pode ser psicológica e econômica também. E
soltou aquela clássica frase: “Mas ele nunca me bateu”.
As feministas piram de escutar
isso. Precisamos explicar que ele bateu na alma dela. Bateu na autoestima dela.
Bateu na alegria dela de viver. Considero este segundo caso mais simples, se é
que podemos usar esta palavra em uma situação tão complexa.
Sugeri então à amiga do segundo
caso que lhe entregasse algum folheto explicativo e institucional sobre
violência psicológica. Institucional para sair do “achismo” das amigas. É
assombroso perceber que o comportamento do seu companheiro reproduz um padrão
social e que não se trata de um defeito, da personalidade ou da
incompatibilidade de gênios.
Desde que denunciei meu
companheiro para me proteger das agressões verbais dele, carrego sempre comigo
duas cartilhas sobre o assunto na bolsa. Diante da desaprovação que tenho
sentido pela minha atitude de denunciá-lo, surgiu uma necessidade tremenda de
provar ao mundo que eu não estou louca. “Olha, está escrito aqui que o maltrato
psicológico equivale a uma tortura emocional. Diz aqui que é uma forma de
interação que impõe condutas ou normas que, por ação ou omissão, prejudicam o
desenvolvimento da pessoa, deteriorando a autoestima, a forma de analisar, a
plenitude física e distorcendo sua relação con a comunidade. Está estudado. É
comum, mas invisível. É tão real que tem até uma lei. Oi? Não é coisa da minha
cabeça. Não estou louca”.
Eu sabia que estava em um
relacionamento tóxico, mas nunca pensei que chegaria ao cúmulo de registrar
queixa. Pensei que tudo se resolveria com a separação. Fui até à delegacia da
Mulher me sentindo uma dramática ridícula. Ao entrar, encontrei uma moça
esperando com hematomas visíveis na cara. Pensei que o meu problema não era
nada comparado ao que aquela mulher estava sofrendo. Senti muita vergonha de
mim mesma. Acreditei, naquele instante, que era tudo realmente coisa da minha cabeça,
que eu estava exagerando. Que ele tinha razão, que eu estava louca, que não
passava de uma garota mimadinha, malcriada, cheia de caprichos, fazendo
tempestade em copo d’água por uma crisezinha de casal.
Imersa naqueles pensamentos,
antes que pudesse desistir de fazer o boletim de ocorrência, fui chamada.
Entrei em uma salinha com uma policial carrancuda. Ela me perguntou por que eu
estava ali. Bateu uma falta de ar, as palavras desapareceram. Eu quis sair
correndo. Comecei então pedindo perdão. “Desculpa, não é minha intenção fazer
vocês perderem tempo com meu problema.” Ela disse que não tinha nada a ver, que
estavam ali para isso e me perguntou o que tinha acontecido. E então respondi:
“Ele nunca me bateu… Porém me insulta de todas as formas há três anos,
inclusive na frente da nossa filha”. Durante uma das piores explosões dele,
nossa filha me perguntou por que o papai estava falando daquele jeito.
A policial digitava tudo, e eu
continuava me sentindo ridícula de estar ali, e questionava mentalmente a real
gravidade do que eu estava contando. A agente nunca me olhava, tinha os olhos
fixos na tela do computador. Até que eu desatei a chorar enquanto descrevia a
última discussão que me fez tomar a decisão de denunciar o pai da minha filha
por violência doméstica.
Naquele momento, a policial
agarrou a minha mão com força e disse: “Você é muito valente de estar aqui. Não
chora porque você é muito corajosa. A maioria das mulheres passa a vida inteira
sofrendo e não consegue enfrentar a situação”. Finalmente me senti amparada. Eu
não estava louca. Não estou louca. Precisamos falar sobre abuso emocional.
Depois da denúncia, encontrei
outro problema que me pegou desprevenida. Eu não estava preparada para encarar
a rejeição das pessoas quanto à minha iniciativa. Eu inclusive achava que se a
polícia explicasse pra ele o que eu vinha tentando dizer há anos ele finalmente
entenderia. Eu estava tão concentrada em proteger a mim e a minha filha de um
ambiente tóxico e estava tão confiante de que estava fazendo a coisa certa que
realmente não previ que muito mais gente do que eu imaginava, incluindo
mulheres e pessoas declaradamente feministas e estudiosas de temas de gênero,
pudessem me recriminar.
Observação: meu ex é uma pessoa
maravilhosa. Vale ressaltar este detalhe. Ele é um pai excelente e dedicado, um
ótimo amigo, supergeneroso e prestativo, sempre preocupado em ajudar o próximo.
Eu pensava que a gente se daria superbem depois da separação e que chegaríamos
a ser bons amigos. Eu o admiro muito, apenas não queria continuar uma vida a
dois com ele.
No entanto, precisamente pelo
fato de que ele é uma pessoa formidável e um pai exemplar é que as pessoas que
o conhecem simplesmente não acreditam em mim. Já não me entendiam antes, quando
eu manifestava o desejo de me separar. “Como pode alguém não querer continuar
com um cara tão legal e gato ainda por cima?” Só pode estar louca. E então me
senti completamente abandonada.
Dediquei os últimos quatro anos
da minha vida à família e aos amigos dele neste país que não é o meu, e agora
não acreditavam em mim. Perdi o chão. De uma suposta amiga, feminista
inclusive, que faz mestrado em políticas de gênero, escutei que ele também
deveria ter a versão dele. E claro. De acordo com ele, eu sou uma pessoa
conflitiva, encrenqueira, que não sabe viver em paz, que estou sempre buscando
problemas.
Eu sou, sim, muito questionadora.
Ariana das bravas. Mas nunca baixei o nível de uma discussão, nunca xinguei,
nunca insultei, nunca massacrei. “Merda de pessoa”, “inútil”, “você tem uma
abóbora na cabeça”, “filha da puta”, “você só pode trabalhar porque eu deixo”,
“você está precisando limpar mais e falar menos”, “sua comida é uma merda” são
apenas algumas das coisas que escutei da boca dele.
Ele, porém, insiste que a
abusadora fui eu. Depois eu li que é comum que agressores se sintam vítimas. E
quanto mais desesperada eu fico para provar que eu não sou o problema, mais
louca eu pareço. E acabo dando razão pra ele.
Por que estou trazendo tudo isso
à tona? Para voltar ao primeiro caso da amiga da minha amiga. Sair de um
relacionamento abusivo é muito difícil também por tudo o que implica depois.
Como não duvidar de nós mesmas, principalmente expostas aos argumentos brilhantes
da pessoa que a gente ama? Como ficar firme e manter a decisão de se separar
sem ter recaídas?
No meu caso, tenho certeza de que
se eu não tivesse denunciado meu companheiro, ainda que estivesse separada,
continuaria muito vulnerável é suscetível à influência e às opiniões dele sobre
mim. Todos os fins de semana que passo sem a minha filha, eu sinto uma saudade
horrorosa dos dois. Dá vontade de desistir de tudo, de cancelar o B.O., de
ligar pra ele, de escutar a voz dele e pedir perdão, de dizer que eu o amo.
Então eu olho ao redor a minha
casinha fofa que eu estou moldando aos poucos, de formas que ele jamais
permitiria. E aí começo a relembrar detalhes de uma convivência dolorosa e
desagradável, de momentos absurdos que custo a acreditar ainda que foram reais.
Eu ainda escuto a voz dele no meu ouvido me insultando todas as noites. Passei
duas semanas chorando sem parar. Até que reagi. Talvez tenha coincidido com o
efeito do antidepressivo que me receitaram. E, do pranto passei à raiva.
Na raiva encontrei uma aliada.
Não é ódio, vejam bem. É raiva. Eu não odeio o pai da minha filha, não lhe
desejo nada de mal, muito pelo contrário. Mas é a raiva que eu tenho de tudo o
que eu passei que tem me dado forças para me levantar da cama todos os dias,
para cuidar da minha filha, para trabalhar, para não dar marcha ré, para não
ligar pra ele desesperada de remorso, para não dar razão a ele de que eu mesma
não me aguento e que nunca vou ser feliz na vida. Ainda tenho crises de choro
que me paralisam. Mas a raiva tem me ajudado a voltar ao normal, por mais
insano que pareça. A raiva é um motor. Mas use com moderação.
Por que estou contando tudo isso?
Porque estou convencida de que, no caso da primeira amiga, ela sabe, lá no
fundo, que ela vive uma situação de abuso emocional. Mas acho que ela ainda não
consegue enfrentar o problema. Depois da separação a gente ainda tem que
encarar a nossa própria cabeça, os nossos dramas, os medos, as inseguranças,
tem que encarar a gente mesma. É uma decisão muito difícil de tomar e mais
difícil ainda de manter. E, nesse caminho, as recaídas são muito normais. Não
se assuste se sua amiga vítima de violência aparece, logo depois de uma crise,
em uma linda foto romântica com o namorado/marido que a faz sofrer. Ela não é
idiota. Só que é muito difícil enfrentar o desconhecido e ela ainda tem
esperança de recuperar o projeto de vida que ela construiu com o companheiro.
Como ajudar então? Como não ser
invasiva? Apoio incondicional e paciência, em primeiro lugar. Se você
presenciar uma discussão e perceber algum desrespeito, tem que meter a colher,
sim! Muitas vezes, a pessoa que maltrata não percebe que está passando dos
limites. Como ela não costuma escutar a companheira, escutar alguém que está de
fora pode ajudar. Se o agressor reage à intervenção de forma pior, isso também
servirá para mostrar à vítima a gravidade do problema, além de fazê-la se
sentir protegida e amparada.
Gostaria que esse fosse um
desabafo útil. De alguém que passou e está passando por uma experiência muito
ruim e está se expondo para que outras mulheres possam se empoderar também. Eu
ainda sinto muita necessidade de me justificar, de me explicar, de provar que
não estou louca. Ainda estou muito carente de colo, de me sentir compreendida,
apoiada, de escutar: “eu te entendo” ou “eu acredito em você”. Agradeço
infinitamente aos que estão me acompanhando nesse processo.
Falemos sobre violência
psicológica, por favor. Recordemos quantas vezes for necessário que não tem
classe social nem gênero. Que agressores não são monstros nem pessoas doentes,
e não são somente homens. Pode ser qualquer um/a. Casais de mulheres lésbicas e
feministas, por exemplo, também podem cair nesse mesmo ciclo tóxico.
Aproveitemos a abertura que está surgindo. Até a Globo encarou o tema no Big
Brother.
A militância virtual tem dado
resultados. Uma prova disso é o movimento #NemUmaMenos, que começou com a
hashtag em espanhol na Argentina para convocar uma marcha, em 2015, que
transcendeu as fronteiras internacionais. Batamos de novo na tecla de que o assassinato
de mulheres é apenas a ponta do iceberg de uma violência estrutural. E que a
violência psicológica também pode ocasionar a morte da vítima, seja porque o
maltrato evolui à agressão física ou porque a própria vítima se mata de tão
deprimida que fica. Eu desejei morrer e foi assustador me flagrar com tal
pensamento.
Vivas nos queremos. Cuidemo-nos.
Não estamos loucas, e se ficamos histéricas é porque dói muito ser mulher nesta
sociedade. Dói na carne ou na alma. Dói demais.
*Este artigo é de autoria de
colaboradores do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do
veículo. Mundialmente, o Huffington Post é um espaço que tem como objetivo
ampliar vozes e garantir a pluralidade do debate sobre temas importantes para a
agenda pública.
Fonte: Huff Post Brasil
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