“A voz do coletivo sempre é
masculina. Nas marchas. No estádio. Nos shows. Quando junta todo mundo, o que
se ouve é o grave dos todos homens bem mais alto, ocultando o agudo das todas e
a diversidade dos todxs. Sintomático.
MANOELA MIKLOS
Aí, na semana passada, ouviu-se
um brado raro de se ouvir. Agudo. Doce, mas furioso. Era a voz de milhares de
mulheres juntas. Na semana passada, a voz do coletivo foi feminina. Um brado
raro. O meu. O nosso. E foi o som mais bonito que eu já escutei.
Feministas incansáveis que lutam
desde sempre receberam com generosidade novas companheiras como eu. E muitos
homens sensíveis e sensibilizados souberam ser coadjuvantes, emocionaram-se ao
engrossar o coro sem engrossar o coro. Sem roubar nosso protagonismo. Porque o
coro precisa seguir assim como está: agudo. Doce, mas furioso. Feminino e
feminista.
Fomos pra rua contra o projeto de
lei 5069/2013, de autoria de Eduardo Cunha. Aprovado pela Comissão de
Constituição e Justiça, o projeto dificulta o atendimento pelo SUS de vítimas
de estupro e o acesso ao aborto legal e seguro. Perderemos direitos duramente
conquistados e perderemos a vida. Morreremos mais, porque o aborto clandestino
mata. Porque a desigualdade de gênero mata. E como a espiral dos privilégios é
implacável, a mulher negra e pobre vai morrer primeiro. Mas vai ser a última a
ser lembrada pelos centros de poder. Não vai aparecer nos jornais, não vai ser
compartilhada nas redes.
Fomos pra rua pra dizer o que
temos dito on-line: ser mulher é perigoso. É inseguro, arriscado. Ser mulher é
sentir medo. E sentir culpa. Porque quando o tema é a interrupção da gestação,
a escolha não é nossa. Mas quando a mão indesejada passa pela nossa perna no
ônibus, aí nossas escolhas importam: o tamanho da nossa saia, o jeito que a
gente senta, a hora que escolhemos voltar pra casa. Somos seres menos livres.
Falamos do nosso primeiro
assédio, falemos agora desse último: uma onda conservadora quer nos levar, quer
arrancar de nós um pouco mais da nossa pouca liberdade. Não vamos deixar. Uma
parte significativa desse
Congresso quer nos matar. Em
decorrência de um aborto ilegal. De tiro, ao flexibilizar o estatuto do
desarmamento. Quem sobreviver, eles querem matar de desgosto.
Fomos pra rua. E não sairemos
dela -doces, mas furiosas. O brado raro que se ouviu vai deixar de ser raro. E
os machistas que comprem tampões de ouvido. Ou transformem-se.”
MANOELA MIKLOS, 32, é doutora em
relações internacionais e criadora do projeto #AgoraÉQueSãoElas, em que
mulheres ocupam o espaço de escritores e jornalistas homens durante uma semana
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