À primeira vista, o Show Medicina,
tradição na FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), é um
evento teatral promovido por alunos do curso desde 1944, ano de sua criação.
Mas por trás das cortinas pretas do teatro da instituição de ensino, onde é
apresentado para uma plateia formada exclusivamente por estudantes, há uma
engrenagem perversa, fortemente hierarquizada, permeada por humilhações e
prostituição, conforme denúncias apresentadas por ex-integrantes do show na
última terça-feira (11).
Os relatos aconteceram durante audiência pública
realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São
Paulo.
O R7 conversou com três
ex-membros do grupo, que, segundo eles, funciona como uma espécie de
fraternidade em que o segredo é regra fundamental do jogo. X. explica que os
que ferem essa norma sofrem “suicídio social”.
— Quando você tem algum contato
com o show, fica bem claro que não pode falar nada do que aconteceu ali dentro.
Eles te ameaçam de suicídio social. Sua reputação vai ser destruída.
De acordo com ele, a questão da
prostituição é um ponto central dentro do Show Medicina.
— Ela atrai um tipo de pessoa e
marginaliza outro tipo. Nem sempre foi assim, com essa banalização do
espetáculo de prostituição dentro dos ensaios. Você vê que as pessoas que são
atraídas, que são levadas a permanecer no show, elas mudaram de perfil.
Departamento de Medicina
Preventiva da USP repudia casos de violência dentro da universidade
Mulheres são proibidas de
participar de seleção para Show Medicina
O universitário acrescenta que,
anos atrás, a contratação de garotas de programa ficava restrita ao chamado SS
(social do show), um tipo de “rito de iniciação” pelo qual todos que ingressam
são obrigados a passar.
— Isso é recente [garotas de
programa levadas para os ensaios]. Antigamente, a prostituição era basicamente
em uma noite, conhecida como social do show, em que as pessoas se vestiam de
terno. Os calouros não eram avisados do que iria acontecer. Eles achavam que
seriam levados a um restaurante chique. Aí, eles faziam uma excursão a algum
lugar com prostitutas. Isso variava de ano para ano. Uma suíte de motel, um
prostíbulo.
X. diz que não há obrigatoriedade
de fazer sexo, mas os alunos são forçados a permanecer no lugar e a presenciar
tudo que acontece.
— É um momento bem delicado. As
pessoas não interagem muito, na verdade.
Indagado se ficou constrangido
quando teve que passar pela experiência, ele respondeu que não.
— No meu caso, não houve um
constrangimento. Mas sei que existem homens homossexuais que não se sentem à
vontade nesse ambiente.
Na avaliação do estudante de
medicina Y., o maior problema provocado por essa situação é a forma como a
figura feminina é tratada.
— Não é nem uma questão da
prostituição em si. É uma discussão complexa. A questão é o espetáculo. É um
espetáculo de misoginia [desprezo ao gênero feminino]. Tem o lance do
espetáculo, de a pessoa transar na frente dos outros, ter esse fetiche de um
voyeurismo misógino.
Para o universitário X., a
prostituição “também é uma ótima ferramenta para comprar favores dos mais
jovens.”
— Você cria uma relação em que
está favorecendo o mais novo e isso te dá poder sobre eles. Uma relação em que
você cobra fidelidade dele, porque você fez um favor a ele. O show é muito
isso. A questão do segredo, não é só por causa da prostituição. O segredo, em
certa medida, justifica o show, porque, no fim das contas, se você assistir ao
espetáculo do show, vai ver que não é uma apresentação teatral tão rica assim.
Dentro dos rituais do show, você está lá, fazendo aquilo que, para alguém de
fora, iria parecer sem propósito. O segredo dá uma liberdade de ação para quem
está ali e ele justifica o show, porque se as pessoas soubessem o que eles
fazem naquele ambiente, elas iriam achar ridículo.
Presidente de comissão que apura
denúncias de abuso sexual na USP pede afastamento da universidade
MP instaura inquérito para apurar
violação de direitos das minorias na USP
Registrada como empresa em junho
de 1995, com direito a CNPJ, a Associação Cultural Show Medicina informa em seu
cadastro que sua atividade econômica principal está ligada à "defesa dos
direitos sociais”.
[A Associação Cultural Show
Medicina foi registrada em 1995]
Suicídio social
O aluno W., que fez parte do Show
Medicina durante seis anos, considera que o grupo “se apropria de uma série de
coisas que poderiam ser contestadoras, progressistas e as colocam de forma
perversa”.
— A apropriação do espaço da
faculdade, que poderia se dar de uma maneira democrática e até questionadora da
estrutura de poder, na verdade, se dá de maneira inversa. É uma apropriação, de
certa forma, privada, porque impede a presença de outras pessoas, intimida as
pessoas, intimida o uso por quem não é a favor do show.
Ele diz se arrepender do tempo
que passou ligado ao grupo e que demorou a se desvincular por medo de não ter
mais amigos na faculdade e de sofrer retaliações profissionais.
— Não vou negar que tive prazer
de compor muitas vezes esse ambiente. Só que, hoje, eu me arrependo. Se eu
pudesse voltar atrás, voltaria. Eu me arrependo totalmente, porque todos os
anos que fiz, certamente, carreguei coisas que compuseram minha consciência,
minha atuação, que me prejudicaram enquanto pessoa, moralmente, eticamente.
Hoje, tento superar o que fui.
W. se deu conta de que suas
concepções pessoais estavam cada vez mais incompatíveis com a cultura defendida
pelo Show Medicina. Ele diz que chegou a ter esperança de tentar implementar
mudanças, mas percebeu que não conseguiria. Ao externar sua crítica ao grupo
publicamente, W. passou a ser hostilizado, a receber ameaças e assédio moral.
— Tem dias que é bem difícil,
principalmente quando seus amigos, que são da sua panela, não querem sequer
tirar mais foto com você. O suicídio social é verdadeiro.
Ele conta que quem se aproxima
das pessoas que resolvem denunciar acabam sendo cobradas.
— Não podem falar comigo em
público. Mas eu aprendi a lidar com isso [...]. Talvez o que tenha mais me
afetado foi que uma grande parcela da faculdade, dos residentes, que eram meus
chefes e professores imediatos, pararam de falar comigo.
Para W., o grupo ajuda a promover
uma formação ética totalmente deturpada e corrompida.
— Acho que a própria existência
desse grupo, a forma como ele atua, a construção das piadas, a cultura que
promove também constroem a graduação. O processo de aprendizado desses grupos e
do restante dos alunos da faculdade se dá de maneira muito perversa, porque
mostra cotidianamente que são as relações de poder, que são acordos de segredo
que vão garantir seu sucesso na vida profissional.
Fonte: http://www.midianews.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário