Não é fácil ser feminista e católica, e uma luta de poder
vaticana pode piorar ainda mais as coisas.
Francisco descreveu a preocupação da Igreja com a
contracepção, o aborto e a homossexualidade como "obsessiva".
Trata-se, disse ele, de uma distração da principal vocação da Igreja de viver a
alegria dinâmica e a liberdade do evangelho de uma forma que a torne mais
atraente aos outros.
A opinião é da teóloga inglesa Tina Beattie, professora de
Estudos Católicos da Universidade de Roehampton, em Londres, em artigo
publicado no jornal The Guardian, 08-10-2014. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
Uma batalha está sendo travada pela alma da Igreja Católica,
com cardeais influentes cada vez mais abertos na sua oposição contra o Papa
Francisco sobre questões como divórcio, novo casamento, contracepção e relações
entre pessoas do mesmo sexo.
É provável que o desacordo em torno dessas questões venha à
tona nos próximos dias, com a reunião dos bispos em Roma para um Sínodo
extraordinário sobre a família, convocado pelo papa. De forma incomum, o
Vaticano enviou um questionário previamente ao Sínodo, buscando os pontos de
vista dos católicos de todo o mundo sobre família, casamento e sexualidade.
A hierarquia tem sido relutante em publicar as respostas,
mas é evidente a partir dos seus comentários que muitos católicos não seguem os
ensinamentos da Igreja.
Às vezes, os ensinamentos são rejeitados ou ignorados – como
a proibição do controle artificial de natalidade e do sexo antes do casamento
–, mas às vezes as pessoas querem uma abordagem mais compassiva e construtiva
para aqueles que respeitam os ensinamentos, mas não conseguiram cumpri-los, por
exemplo no caso de católicos divorciados e recasados. A mensagem central da fé
cristã, afinal de contas, não é a da perfeição moral, mas sim do perdão, da
misericórdia e da redenção.
Para aqueles que tomam como óbvios os valores do liberalismo
progressista, a Igreja Católica parece ser uma instituição muito anacrônica.
Como feminista, eu sou tratada com incredulidade por parte daqueles que não
conseguem entender por que eu continuo dentro da Igreja, especialmente quando
eu sou repetidamente censurada por falar sobre questões como o casamento entre
pessoas do mesmo sexo e a ordenação de mulheres.
Eu chamei a atenção da Congregação para a Doutrina da Fé em
agosto de 2012, quando – junto com outros 26 teólogos católicos, padres e
figuras públicas – assinei uma carta ao jornal Times, dizendo que os católicos
poderiam, em sã consciência, apoiar a extensão legal do casamento civil para
casais do mesmo sexo. Anteriormente conhecida como a Inquisição, a Congregação
para a Doutrina da Fé é um obscuro grupo de altos bispos e cardeais
encarregados da promoção e da defesa da doutrina católica.
No meu caso, a sua intervenção resultou no cancelamento de
diversas aparições públicas, incluindo uma curta bolsa como membro visitante da
Universidade de San Diego em 2012 e, mais recentemente, uma palestra para a
Associação Newman em Edimburgo. A associação recebeu uma carta do arcebispo Leo
Cushley, dizendo que ele estava agindo de acordo com as instruções da
Congregação para a Doutrina da Fé e que eu não estava autorizada a falar em
qualquer igreja da sua diocese de St Andrews e de Edimburgo.
Esse clima de censura teológica se desenvolveu durante o
papado de João Paulo II, quando o cardeal Joseph Ratzinger (mais tarde Papa
Bento XVI) era o presidente linha-dura da Congregação para a Doutrina da Fé.
Bento XVI nomeou o igualmente autoritário arcebispo (hoje cardeal) Gerhard
Müller a esse posto. Muitos ficaram surpresos quando o Papa Francisco renovou a
nomeação de Müller, pois a sua abordagem de mão pesada parecia em desacordo com
o ethos mais aberto de Francisco.
Francisco descreveu a preocupação da Igreja com a
contracepção, o aborto e a homossexualidade como "obsessiva".
Trata-se, disse ele, de uma distração da principal vocação da Igreja de viver a
alegria dinâmica e a liberdade do evangelho de uma forma que a torne mais
atraente aos outros. Se a Igreja Católica nas últimas décadas pareceu funcionar
como uma força policial global, principalmente preocupada em controlar a vida
sexual das pessoas, Francisco quer que, ao contrário, ela se torne uma Igreja
das pessoas comuns e uma defensora dos pobres e dos marginalizados acima e
contra a tirania do sistema econômico moderno.
Ele deu o pontapé inicial no processo de reforma que se
seguiu ao Concílio Vaticano II (1962-1965), que estagnou durante os papados de
João Paulo II e Bento XVI. Enquanto descarta a ordenação de mulheres, ele
silenciosamente tem insistido na nomeação de mais mulheres a posições de
influência no Vaticano. Por exemplo, o número de mulheres na Comissão Teológica
Internacional, que atua como assessora teológica do Magistério, acaba de
aumentar de duas para cinco.
Aconteça o que acontecer em Roma durante a próxima semana,
isso pode ser decisivo para qualquer direção futura: a Igreja de Francisco ou a
Igreja de Bento? As lutas de poder que estão sendo disputadas sugerem que essas
duas facções podem estar caminhando para um divórcio conturbado.
Então, por que uma feminista permanece em tal instituição
dominada por homens, onde o liberalismo progressista é repetidamente frustrado?
O progresso é um conceito dúbio, e os nossos direitos e liberdades são
diariamente corroídos pela política da ganância, do poder e da riqueza.
A Igreja Católica tem uma rica tradição da doutrina social e
da solidariedade com os pobres, que desafia esses valores corporativos
neoliberais e oferece uma forma diferente de viver. É uma tradição rica e
diversificada, que tece uma vasta família multicultural que desafia a crescente
xenofobia e exclusivismo das sociedades ocidentais modernas. Ela oferece uma
perspectiva a partir da qual se pode avaliar os nossos valores e metas de curto
prazo confusos em comparação com uma visão mais duradoura e esperançosa sobre o
que significa ser humano.
A herança intelectual da Igreja é uma mistura complexa de
teologia, filosofia, arte e ciência que enriquece a mente, mesmo que os seus
próprios líderes tendam a ser os piores inimigos dessa tradição – o escândalo
de abuso sexual revelou uma escuridão maligna no coração da hierarquia. No
entanto, tudo isso é igualmente verdadeiro na vida fora da Igreja. Devemos
esperar mais daqueles que se dizem cristãos, mas, na realidade, nós, humanos,
somos uma espécie com uma propensão peculiar à violência, à vergonha e à
corrupção.
Os cristãos chamam isso de pecado original, e eu encontro na
Igreja Católica uma narrativa poderosa de esperança e de redenção em meio a
tudo isso.
Sem dúvida, vale a pena lutar por isso.
Fonte: Ihu
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