sábado, 11 de outubro de 2014

Prostituição patrocinada pelo Estado já foi rotina na ilha de Kinmen

Paradise in Service é um filme recente de Taiwan sobre as aventuras de soldados da Guerra Fria num bordel patrocinado pelo Estado. Pode até parecer o enredo de um pornô ou uma comédia adolescente boba pós-Superbad, mas essa película está competindo em vários festivais internacionais. E o mais importante: o exército taiwanês realmente criou uma rede de bordéis gerenciado pelos militares na ilha de Kinmen, e eu estive lá.

Kinmen fica tão perto da República Popular da China que, num dia de sol, você pode facilmente chegar ao continente. A ilha era a primeira linha de defesa contra os comunistas durante a Guerra Fria. Em certo ponto, esse foi o lugar mais militarizado do planeta, com mais de 100 mil soldados ativos estacionados aqui. O lugar era uma fortaleza cercada de abrigos contra bombardeios e de campos minados secretos, recebendo ataques regulares do continente – não era o que a maioria chamaria de um lugar legal.
Então, para relaxar, os soldados visitavam uma das casas convenientemente localizadas na ilha e eram atendidos por uma das prostitutas contratadas pelo Estado. A Unidade 381, a bureau no comando dos bordéis, cuidava de 11 estabelecimentos na ilha. Era uma política criada para resolver um problema: a tensão reprimida de viver sob ameaça de morte constante estava afetando a disciplina e a eficiência militar. Depois de incidentes de soldados estuprando garotas locais, visitas regulares aos puteiros estatais se tornaram uma maneira ostensiva de aliviar essas questões.

A Unidade 381 operou em Kinmen até 1990, quando a pressão de grupos feministas locais finalmente forçou o último bordel a fechar.
Hoje, o legado do 381 é misto. Alguns moradores têm vergonha da história enquanto outros acreditam que as prostitutas eram necessárias. “Acho que elas são heroínas sem nome”, disse Hung Shu-Ting, um estudante de 23 anos da National Quemoy University. “Os soldados precisavam delas; isso é instintivo.” Os locais frequentemente falam das mulheres dessa maneira, como se elas fossem uma mercadoria necessária, e, seja lá qual for a intenção deles, isso pode ser bastante desanimador.


Chen I Chieh, uma guia turística local de 25 anos, pensa de maneira parecida apesar de expressar esses sentimentos de um jeito um pouco problemático: “Todo dia, eu vejo notícias de que alguém foi estuprado. É horrível. Se [os soldados] não tivessem o 381, então eles teriam tido razão para estuprar”, afirmou, passando depois para o elogio tradicional às próprias prostitutas. “Acho que elas são heroínas, porque muitas mulheres não gostam de fazer esse tipo de trabalho.” Ela também apontou que se cada um dos 100 mil soldados pudesse ter sua própria namorada, tudo teria sido “mais simples”.


Syril Hung é um comerciante local que cresceu na ilha, e sua visão da Unidade 381 deveria soar alegremente pragmática. “Os bordéis eram parte do sistema militar. Eles existiam para as necessidades dos jovens adultos”, opinou. O café de Syril fica no terreno do Salão de Exposição do Bordel Militar, um museu dedicado à Unidade 381.


O próprio museu é um antigo bordel. O prédio consiste de um pátio fresco cercado por quartos simples, cada um com cama, armário, espelho e banheiro. O salão de exposição tem placas com informações sobre as dificuldades enfrentadas pelos soldados. Não sei dizer se a escolha de palavras dos cartazes tinha um duplo sentido intencional ou não:

“Os soldados que tinham vindo para Kinmen do continente estavam sempre 'esperando a guerra'.” (note as aspas estranhamente colocadas)

“Numa ilha estranha, longe de suas casas, eles esperavam ansiosamente pelo começo da guerra. A espera deve ter sido insuportável.”

“Para que esses homens não precisassem se cansar viajando até a montanha para saciar seus desejos sexuais, a casa de chá foi aberta para trazer o serviço que eles precisavam para a casa ao lado.”

“Essas jovens mulheres não foram forçadas a se prostituir... Elas iam e vinham discretamente.”

“Jovens filhas, elas se devotaram ao país abrindo sua humilde morada.”


No filme mencionado acima, Paradise in Service, esses duplos sentidos fornecem o alívio cômico. “Eu tenho duas armas de comprimento variado. Uma para as moças e outra para os comunistas”, canta um grupo de soldados marchando.

O protagonista virgem, Pao, está determinado a se guardar para a namorada em sua cidade natal, um objetivo dificultado por estar cercado por copulações suadas, barulhentas e constantes. O filme toca em questões como identidade nacional, obrigação filial, separação, solidão, lutas internas no exército, propaganda política e papéis de gênero. É a primeira produção do tipo a abordar esse período controverso da história taiwanesa, e o diretor Niu Chen-Zer faz isso com sutileza e estilo. A obra tem sido bem recebida e foi escolhida para abrir o 19º Festival Internacional de Cinema de Busan agora em outubro, um dos maiores festivais de cinema da Ásia.



Apesar de seu passado militar, Kinmen hoje é uma região solitária e rural. Seus abrigos estão abandonados e os túneis militares viraram atração turística. Tanques velhos enferrujam em terrenos baldios perto de barricadas cobertas de musgo. Uma campanha de sete anos limpou a ilha das minas terrestres, e moluscos cavoucam nas praias na maré baixa sem correr risco de vida.

A Unidade 381, até recentemente, estava acumulando pó juntamente com essas partes arcaicas da antiga Kinmen. Mas o museu e, especialmente, o filme de Niu Chen-Zer estão espanando um pouco dessa poeira. “As pessoas podem não querer falar sobre o 381 – os chineses não gostam de falar sobre sexo. Mas é verdade”, ratifica Chen.

Fonte: http://www.vice.com/pt_br/read/prostituicao-patrocinada-pelo-estado-ja-foi-rotina-na-ilha-de-kinmen

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