A escritora Chimamanda Adichie, fotografada em Londres, em 2012. Ela diz que as mulheres são criadas para agradar aos homens (Foto: Richard Saker/REX)
Toda vez que os garçons me ignoram, me sinto invisível. Fico
chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem – e digna de
ser cumprimentada.
Okoloma era um de meus melhores amigos de infância.
Morávamos na mesma rua, e ele cuidava de mim como um irmão mais velho. Quando
eu gostava de um garoto, pedia a opinião dele. Engraçado e inteligente, usava
uma bota de caubói de bico pontudo. Em dezembro de 2005, ele morreu num
acidente de avião, no sudoeste da Nigéria. Até hoje não sei expressar o que
senti. Era uma pessoa com quem eu podia discutir, rir e ter conversas sinceras.
Também foi o primeiro a me chamar de feminista.
>> A nova luta
das mulheres
Eu tinha 14 anos. Um dia, na casa dele, discutíamos –
metralhávamos opiniões imaturas sobre livros que havíamos lido. Não lembro
exatamente o teor da conversa. Mas estava no meio de uma argumentação quando
Okoloma olhou para mim e disse: “Sabe de uma coisa? Você é feminista!”. Não era
um elogio. Percebi pelo tom da voz dele – era como se dissesse: “Você apoia o
terrorismo!”. Não sabia o que a palavra feminista significava. E não queria que
Okoloma soubesse que não sabia. Então disfarcei e continuei argumentando. A
primeira coisa que faria ao chegar em casa seria procurar a palavra no
dicionário.
>> Em defesa do
macho oprimido
Em 2003, escrevi um romance chamado Hibisco roxo, sobre um
homem que, entre outras coisas, batia na mulher, e sua história não acaba lá
muito bem. Enquanto eu divulgava o livro na Nigéria, um jornalista, um homem
bem-intencionado, veio me dar um conselho (talvez vocês saibam que nigerianos
estão sempre prontos a dar conselhos que ninguém pediu). Ele comentou que
diziam que meu livro era feminista. Seu conselho – disse, balançando a cabeça
com um ar consternado – era que eu nunca, nunca me intitulasse feminista, já
que as feministas são mulheres infelizes que não conseguem arranjar marido.
Então decidi me definir como “feminista feliz”.
>> Esquadrões
antiestupro
Mais tarde, uma professora universitária nigeriana veio me
dizer que o feminismo não fazia parte de nossa cultura, que era antiafricano e
que, se eu me considerava feminista, era porque fora corrompida pelos livros
ocidentais. De qualquer forma, já que o feminismo era antiafricano, resolvi me
considerar “feminista feliz e africana”. Depois, uma grande amiga me disse que,
se eu era feminista, então devia odiar os homens. Decidi me tornar uma
“feminista feliz e africana que não odeia homens – e que gosta de usar batom e
salto alto para si mesma, não para os homens”.
É claro que não estou falando sério, só queria ilustrar como
a palavra “feminista” tem um peso negativo. A feminista odeia os homens, odeia
sutiã, odeia a cultura africana, acha que as mulheres devem mandar nos homens;
ela não se pinta, não se depila, está sempre zangada, não tem senso de humor,
não usa desodorante.
Quando eu estava no primário, no começo do ano letivo a
professora anunciou que daria uma prova, e quem tirasse a nota mais alta seria
o monitor da classe. Ser monitor era muito importante. Queria muito ser a
monitora da minha classe. E tirei a nota mais alta. Mas, para minha surpresa, a
professora disse que o monitor seria um menino. Ela se esquecera de esclarecer
esse ponto, achou que fosse óbvio. Um garoto tirou a segunda nota mais alta.
Ele seria o monitor. O mais interessante é que o menino era uma alma bondosa e
doce, que não tinha o menor interesse em vigiar a classe com uma vara –
exatamente o que eu almejava. Mas eu era menina, e ele menino, e ele foi
escolhido. Nunca me esqueci desse episódio.
Se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se
vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal. Se só os meninos são
escolhidos como monitores da classe, então em algum momento nós todos
acharemos, mesmo que inconscientemente, que só um menino pode ser o monitor da
classe. Se só os homens ocupam cargos de chefia nas empresas, começamos a achar
“normal” que esses cargos de chefia só sejam ocupados por homens.
Homens e mulheres são diferentes. Temos hormônios
diferentes, órgãos sexuais diferentes e atributos biológicos diferentes – as
mulheres podem ter filhos, os homens não. Os homens têm mais testosterona e, em
geral, são fisicamente mais fortes que as mulheres. Existem mais mulheres do
que homens no mundo – 52% da população mundial é feminina. Mas os cargos de
poder e prestígio são ocupados pelos homens. A nigeriana Wangari Maathai,
ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, se expressou muito bem e em poucas palavras quando
disse que, quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos.
Então, de uma forma literal, os homens governam o mundo.
Isso fazia sentido há 1.000 anos. Os seres humanos viviam num mundo onde a
força física era o atributo mais importante para a sobrevivência. Quanto mais
forte alguém era, mais chances tinha de liderar. E os homens, de uma maneira
geral, são fisicamente mais fortes. Hoje, vivemos num mundo completamente
diferente. A pessoa mais qualificada para liderar não é a fisicamente mais
forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E
não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher
podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias
de gênero ainda deixam a desejar.
Sempre que vou acompanhada a um restaurante nigeriano, o
garçom cumprimenta o homem e me ignora. Os garçons são produto de uma sociedade
em que se aprende que os homens são mais importantes que as mulheres. Sei que
eles não fazem por mal – mas há um abismo entre entender algo racionalmente e
entender emocionalmente. Toda vez que eles me ignoram, me sinto invisível. Fico
chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem e digna de ser
cumprimentada. Sei que são detalhes, mas às vezes são os detalhes que mais
incomodam. Uma amiga americana trabalha com publicidade e tem um belo salário.
Só há duas mulheres em sua equipe: ela e uma outra. Certa vez, numa reunião,
ela disse que se sentira menosprezada por sua chefe, que ignorara seus
comentários e elogiara um dos homens que haviam emitido uma opinião parecida
com a dela. Ela queria se colocar e enfrentar a chefe, mas ficou quieta. Depois
da reunião, foi chorar no banheiro e me ligou para desabafar. Ela não disse o que pensava para não parecer
agressiva. Deixou o ressentimento ferver em banho-maria. O que me impressionou
– em relação a ela e a várias outras amigas americanas – é quanto essas
mulheres investem em ser “queridas”, como foram criadas para acreditar que ser
benquista é muito importante. Isso não inclui demonstrar raiva ou ser
agressiva, tampouco discordar.
Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com
o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece. Não ensinamos os
meninos a se preocupar em ser “benquistos”. Se perdemos muito tempo dizendo às
meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, elogiamos
ou perdoamos os homens pelas mesmas razões. Em todos os lugares do mundo,
existem milhares de artigos e livros ensinando o que as mulheres devem fazer,
como devem ou não devem ser para atrair e agradar aos homens. Livros sobre como
os homens devem agradar às mulheres são poucos.
A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo.
É importante que se comece a planejar e a sonhar um mundo diferente. Um mundo
mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais
autênticos com si próprios. É assim que devemos começar: precisamos criar
nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos
de um outro modo. O modo como criamos nossos filhos homens é nocivo. Nossa
definição de masculinidade é muito estreita. Abafamos a humanidade que existe
nos meninos, enclausuramo-los numa jaula pequena e resistente. Ensinamos que
eles não podem ter medo, não podem ser fracos ou se mostrar vulneráveis,
precisam esconder quem realmente são – porque têm de ser, como se diz na
Nigéria, homens duros.
No ensino médio, quando um garoto e uma garota saem juntos,
o único dinheiro de que dispõem é uma pequena mesada. Mesmo assim, espera-se
que ele pague a conta, sempre, para provar sua masculinidade. (Depois nos
perguntamos por que alguns roubam dinheiro dos pais...) E se tanto os meninos
quanto as meninas fossem criados a não mais vincular a masculinidade ao
dinheiro? O pior é que, quando os pressionamos a agir como durões, os deixamos
com o ego muito frágil. Quanto mais duro um homem acha que deve ser, mais fraco
será seu ego. E criamos as meninas de uma maneira bastante perniciosa, porque
as ensinamos a cuidar do ego frágil do sexo masculino. Ensinamos as meninas a
se encolher, a se diminuir, ao lhes dizer: “Você pode ter ambição, mas não
muita. Deve almejar o sucesso, mas não muito. Senão você ameaça o homem. Se
você é a provedora da família, finja que não é, sobretudo em público. Senão
você emasculará o homem”. Por que, então, não questionar essa premissa? Por que
o sucesso da mulher ameaça o homem?
Uma vez, um conhecido meu nigeriano me perguntou se não me
incomodava que os homens se sentissem intimidados comigo. Não me preocupo nem
um pouco, porque o homem que se sente intimidado por mim é exatamente o tipo de
homem por quem não me interesso. Mesmo assim, fiquei surpresa. Já que pertenço
ao sexo feminino, espera-
se que almeje me casar. Espera-se que faça minhas escolhas
levando em conta que o casamento é o fato mais importante do mundo. O casamento
pode ser algo bom, uma fonte de felicidade, amor e apoio mútuo. Por que
ensinamos as meninas a aspirar ao casamento, mas não fazemos o mesmo com os
meninos?
Uma nigeriana conhecida minha decidiu vender sua casa para
não intimidar o homem que eventualmente quisesse se casar com ela. Conheço uma
outra, também solteira, que, em congressos, usa uma aliança de casamento porque
quer “ser respeitada” pelos colegas. Isso num ambiente de trabalho moderno. Há
moças que, de tão pressionadas pela família, pelos amigos, até pelo trabalho, acabam
fazendo péssimas escolhas. Em nossa sociedade, a mulher de uma certa idade que
ainda não se casou se enxerga como uma fracassada. O homem, se ainda permance
solteiro, é porque não teve tempo de fazer sua escolha.
Falar é fácil, eu sei, mas as mulheres só precisam aprender
a dizer “não” a tudo isso. A realidade, porém, é mais difícil, mais complexa.
Somos seres sociais e internalizamos as ideias por meio da socialização.
Ensinamos que, nos relacionamentos, é a mulher quem deve abrir mão das coisas. Criamos
nossas filhas para enxergar as outras como rivais – não em questões de emprego
ou realização, mas rivais da atenção masculina. Ensinamos as meninas que elas
não podem agir como seres sexuais do mesmo modo que os meninos. Se temos filhos
homens, não nos importamos em saber sobre as namoradas. E os namorados de
nossas filhas? Esperamos que elas arranjem o homem perfeito para, na hora
certa, se casar. Policiamos nossas meninas. Elogiamos a virgindade delas, mas
não a dos meninos (me pergunto como isso pode funcionar, já que a perda da
virgindade é algo que normalmente envolve duas pessoas).
Recentemente, uma moça foi estuprada por um grupo de homens,
na Nigéria. A reação de vários jovens, de ambos os sexos, foi algo do gênero:
“Sim, estuprar é errado, mas o que ela estava fazendo no quarto com quatro
homens?”. Bem, se possível, tentemos esquecer a crueldade desse raciocínio. Os
nigerianos foram criados para achar que as mulheres são inerentemente culpadas.
E elas cresceram esperando tão pouco dos homens que a ideia de vê-los como
criaturas selvagens, sem autocontrole, é, de certa forma, aceitável.
Ensinamos as meninas a sentir vergonha. “Fecha as pernas,
olha o decote.” Nós as fazemos sentir vergonha da condição feminina, elas já
nascem culpadas. E crescem e se transformam em mulheres que não podem externar
seus desejos. Elas se calam, não podem dizer o que realmente pensam, fazem do
fingimento uma arte. Conheço uma mulher que odiava tarefas domésticas, mas
fingia que gostava, pois fora ensinada que “uma boa esposa” tem de ser
“caseira”. Ela por fim se casou. A família do marido começou a reclamar quando
seu comportamento mudou. Ora, na verdade ela não mudou. Apenas se cansou de
fingir ser o que não era.
O problema de gênero é prescrever como devemos ser, em vez
de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para ser quem
realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero.
Decidi parar de me desculpar por ser feminina. Quero ser
respeitada por minha feminilidade. Porque mereço. Gosto de política e história
e adoro uma conversa boa, produtiva. Sou feminina. Sou feliz por ser feminina.
Gosto de salto alto e de variar os batons. É bom receber elogios, seja de
homens, seja de mulheres (cá entre nós, prefiro ser elogiada por mulheres
elegantes). Com frequência uso roupas que os homens não gostam ou não
“entendem”. Uso essas roupas porque me sinto bem nelas. O “olhar masculino”, como
determinante das escolhas da minha vida, não me interessa.
Muita gente diz que a mulher é subordinada ao homem porque
isso faz parte da nossa cultura. Mas a cultura está sempre em transformação.
Tenho duas sobrinhas gêmeas e lindas, de 15 anos. Se tivessem nascido há 100
anos, teriam sido assassinadas. Há 100 anos, a cultura Igbo considerava o
nascimento de gêmeos como um mau presságio. Hoje, essa prática é impensável
para nós.
Para que serve a cultura? A cultura funciona para preservar
e dar continuidade a um povo. Em minha família, sou a filha que mais se
interessa pela história de quem somos, nossas terras ancestrais, nossas
tradições. Meus irmãos não têm tanto interesse. Mas não posso ter voz ativa,
porque a cultura Igbo favorece os homens, e só eles podem participar das
reuniões em que as decisões familiares mais importantes são tomadas. Então,
apesar de ser mais ligada a esses assuntos, não posso frequentar as reuniões.
Não tenho direito a voz. Porque sou mulher.
A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se
uma humanidade inteira de mulheres não faz parte de nossa cultura, então temos
de mudar nossa cultura.
Penso com frequência em meu amigo Okoloma. Espero que ele e
os outros que morreram na queda do avião descansem em paz. Ele sempre será
lembrado por aqueles que o amavam. Tinha razão, anos atrás, ao me chamar de
feminista. Sou feminista. Naquele dia, quando cheguei em casa e procurei a
palavra no dicionário, foi esse o significado que encontrei: “Feminista: uma
pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos”.
Minha bisavó, pelas histórias que ouvi, era feminista. Fugiu
da casa do sujeito com quem não queria casar e casou com o homem que escolheu.
Ela resistiu, protestou, falou alto quando se viu privada de espaço e acesso
por pertencer ao sexo feminino. Ela não conhecia a palavra “feminista”. Mas nem
por isso não era. Mais mulheres deveriam reivindicar essa palavra. O melhor
exemplo de feminista que conheço é meu irmão Kene. Ele também é um jovem legal, bonito e muito
másculo. A meu ver, feminista é o homem ou a mulher que diz: “Sim, existe um
problema de gênero ainda hoje e temos de resolver, podemos fazer melhor”. Todos
nós, mulheres e homens, podemos fazer melhor.
Fonte: Revista Epoca
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